Concepção redutora da tecnologia apenas como utensílios técnicos justifica invasão de interesses privados na escola pública. Ao contrário, parcerias com movimentos sociais são inovações capazes de promover aprendizado, humanização e cidadania
O mercado sempre esteve embrenhado ao ensino público. Mesmo a construção da noção de “público” não deve estar desconectada do processo de subjetivação que passa pelos desígnios capitalistas, principalmente no século XIX, em que aconteceu a união deste sistema econômico ao binômio ciência e técnica. Aliás, o complexo de sucesso do capitalismo só é possível ser pensado a partir desta associação. A relação público-privada é mais complexa do que essa bipolarização de categorias sociais supõe. O nascimento de um mundo “público” aponta para o reconhecimento dos critérios e parâmetros que estabelecem o tipo de comunidade que deve ser modelada para que ele exista. Forma-se o público para que ele assuma “a coisa pública”.
Os valores escolhidos e operados na administração de uma sociedade nos levam à política e ao poder e, portanto, é de nossa responsabilidade, como educadores e professores, problematizar o tipo de cidadão idealizado como uma categoria conceitual que tenta englobar a todos, mas que fracassa historicamente. Pois, quando a sociedade passa a uma socialização dada pelo mundo do trabalho e por sua divisão em classes sociais, vemos também o surgimento dos “desqualificados”, dos “outsiders”, dos “perigosos”, dos “esquecidos”, “invisibilizados” e dos “comunistas”. A ideia de “cidadão”, embora nascendo “para todos”, restringe o mundo público a um grupo muito bem definido de pessoas: estudadas, proprietárias, alfabetizadas.
Mesmo assim, a utopia ilustrada não pode ser deixada de lado. Modelar uma cidadania ilustrada que deve debater sobre os seus planos sociais e políticos, conviver com as diferenças, com suas próprias contradições, ampliar a noção de cidadão e melhorar a sua comunidade não é o pior dos planos. O que assistimos ao longo do século XX foi um progressivo e não pouco violento processo de qualificação da cidadania dentro do histórico de lutas pela declaração de direitos: a luta dos trabalhadores por um trabalho regulamentado e digno, a luta das mulheres pelo direito de voto, a luta dos negros pelos direitos civis, dos indígenas pela demarcação de terras, dos sem-terra pela reforma agrária, por novos modelos de família, o crescimento do orgulho LGBTQI+, a apresentação de um estatuto para crianças e adolescentes etc. Simplesmente não existiram concessões de direitos na história da democracia brasileira e o mesmo pode ser dito sobre a história da escola pública.
Não se pode esquecer que o mundo público, escolarizado, tanto reproduziu como tentou reverter esse processo, viveu e prosperou nessa contradição, entre desfazer a ideologia dos privilégios sociais e políticos e nos amarrar a ela. Entre coibir novos critérios de cidadania e, ao mesmo tempo, apresentá-los como possíveis e sonháveis. Entre ser uma instituição coercitiva e libertadora em todos os tempos. A invenção da escola é a história da pedagogização das relações que demarca uma nova configuração social para a infância, apresentada por um espaço especificamente pensado para o desenvolvimento artificial das vontades. A história da escola é a própria história de uma sociedade que sinaliza essa instituição como imprescindível, estando hoje ostensivamente presente no espaço social e sendo, atualmente, uma das práticas mais promissoras no mercado de ações em Wall Street. Quando falamos sobre a sua artificialidade, falamos sobre a convocação de formas especializadas de apresentar saberes e imprimir conhecimentos. A escola cria e amplifica os códigos estéticos que marcam o regime sensorial de ver e ser no mundo. Modo específico e pretensamente universal de organização da educação, vastamente o mais reconhecido, é o local onde se fixam os discursos apresentados como o desejo geral da sociedade. Um plano tão ambicioso talvez não tenha sido possível sem suas relações com o mundo do capital, já que a escola nasce também como um sonho liberal, com suas eternas apresentações de inovações, principalmente as tecnológicas.
As inovações tecnológicas são apresentadas como uma grande amálgama desse mundo das maravilhas que se diz “moderno”; mundo este, nascido do desenvolvimento industrial, que prega pela “civilização”, “progresso”, “ciência” etc. Posicionadas como uma inevitabilidade, mostram-nos uma nova relação com a natureza, uma cultura de melhorias, uma ciência profissional, um conhecimento prático que necessita se expressar pelo acesso direto com sua materialidade. Louvar a ideia de inovação é por si mesma uma grande inovação no século XIX e, desde então, elas estão presentes em todo o corpo histórico da escola, como testemunha física, sólida, do longo processo do uso mercantil deste espaço. Mesmo a Pedagogia, que se instala como “científica”, passa a ser a ciência da incorporação do novo, do mais moderno, da inovação nos discursos e práticas escolares, como dispositivo que reposiciona a educação escolar sempre pela ideia de “renovação”, colocando-a nos trilhos de um tipo de tempo, também inventado, em que é progressivo, linear, evolutivo.
Ainda que, durante um século, pudéssemos ver o grande embate entre a escolarização pública e privada, o mundo das tecnologias escolares, ou melhor dizendo, dos produtos industriais voltados à escola ou incorporadas por ela, sempre passou como uma necessidade inerente a esta disputa, algo visível, mas pouco questionado na história da escola. Não é de hoje que se capitaliza com o mundo escolar, principalmente, levando em conta que ele é um centro consumidor perene.
Tecnologias e inovações nas escolas, um histórico
Na história da escola, no século XIX, temos o registro da infinidade de materiais que foi preciso comprar como parte intrínseca aos processos de consolidação do ensino público, como nos fala a historiadora da educação Rosa Fátima de Souza. Uma lista repleta de tecnologias interessantes:
para o ensino de aritmética, do sistema métrico decimal e da geometria: cartas de Parker, compassos, contadores mecânicos, quadro de geometria, tabuinhas, contador de mão e pé, caixa de formas geométricas, cadernos de aritmética. Para o ensino de linguagem: coleção de abecedários e de cartões parietais para leitura, ardósias, cartas de alfabeto, cadernos de caligrafia. Para o ensino de geografia e história: globo terrestre, tabuleiros de areia, quadros de história do Brasil, mapas. Para o ensino de ciências físicas e naturais: laboratórios, museus, quadros Deyrolle, estampas, quadros de história natural, esqueleto humano, bússola, microscópio, peças anatômicas, mapas de física. Para o desenho: esquadros, modelo para desenho em gesso, coleção para desenho. Para trabalhos manuais: caixas de tornos, pranchetas para modelagem, máquinas de costura.1
Na sua relação com os diferentes métodos de ensino, por exemplo, como o “método intuitivo” e suas “lições de coisas”, por sua vertente interessada no ensino das ciências, era impossível concebê-lo sem o desenvolvimento da indústria dos materiais científicos de todos os tipos. São introduzidos instrumentos de precisão para metrificação, máquinas voltadas à demonstração em exercícios aplicados para todos os sub-ramos da Física; inúmeras vidrarias e materiais diversos para a montagem de laboratórios de Química; animais taxidermizados (conhecidos por animais empalhados) para estudos de História Natural, dá-nos a dimensão dos processos de construção de novos materiais escolares. A possibilidade de compra de animais taxidermizados como material escolar, por exemplo, mostra o seu poder técnico ao apresentar os animais para o ensino de classificações das espécies por sua morfologia. Esse tipo de objeto cultural é um material didático que já teve os seus dias de glória e que serve muito bem ao ensino das espécies e seus habitats. No entanto, o que este material didático nos conta, pelo apagamento, é a história do amplo comércio internacional, forçando o estoque de caça, como matéria prima para o oferecimento do produto que era reservado às escolas. Eles foram usados para aulas e vendidos por casas de comércio transnacionais. Isso descontado o fato de que o mesmo objeto inculcava no público a ideia de uma natureza plena, repleta de bens de consumo, ao nosso bel prazer. No século XXI estamos pagando caro pela prosperidade desse tipo de ensino que foi amplamente divulgado como uma “inovação pedagógica”. Em outras palavras, uma inovação não é simplesmente boa e traz bons resultados sociais só porque se apresenta como “nova”.
Para uma escola ativa, foi imprescindível a compra de materiais também. Aqui, damos outro exemplo, o de Maria Montessori. Todos que trabalham com educação sabem algo de sua vida como educadora e pedagoga atuante. Interessou-se ativamente pela condição sensível das crianças e pela captação de conhecimento por meio do estímulo da atenção, dentro de ambientes preparados à aprendizagem. Fez observação sistemática da apreensão de conhecimento em crianças com necessidades especiais, era ativa militante pela atuação produtiva das mulheres, dedicou toda sua vida à educação e ao método que inventou. Teve valorosa atuação ao longo da vida. Mas o que pouco se fala é que a educadora, com a sua preocupação de pesquisa sobre a atenção, pensando-a como elemento de intervenção pedagógica, também inventou um processo de gestão de indivíduos. Em certa oportunidade, o seu método foi apresentado com crianças expostas em uma ampla sala de vidro, publicamente, na Feira Mundial de São Francisco, em 1915. Tanto os materiais inventados por ela, dando valor ao tato como sentido de aprendizagem, quanto suas hipóteses, foram exibidos em uma feira de produtos para averiguação pública, obtendo enorme sucesso, dando vistas, também, ao seu empreendimento comercial.2 Esse último exemplo serve para destacar, mais uma vez, que a relação entre o público e o privado, o mercado e o ensino, possui entremeios, amálgamas que são estabelecidas na sociedade civil, ao longo do processo de disseminação da educação escolar, não sendo crível, separar esses dois mundos de maneira tão categórica, como se o empresariado ficasse por um século inerte, de maneira pura e complacente, fornecendo ao Estado os materiais escolares necessários para a formação em massa.
Mas, ainda assim, em seu esconderijo, lançado à sombra das coisas não questionadas, não eram os produtos nem os seus produtores e comerciantes que diretamente pautavam os processos de inovações pedagógicas e as políticas públicas em nome da escola. Os proprietários de indústrias e comerciantes não eram reconhecidos como as lideranças competentes e socialmente validadas para ditar o que deveria ser a melhor educação pública neste país, pensando as políticas governamentais. Mesmo que eles estivessem relacionados ao jogo de interesses de mercado no seio da sociedade civil e por meio da disputa concorrencial, o que tínhamos era a luta política entre quadros competentes, intelectuais orgânicos, instituições variadas, à direita e à esquerda, movimentos sociais, que brigavam por posições na luta em nome da escola pública, como um espaço separado dos processos da educação privada. Isso porque o rumo dado aos processos históricos da escola pública, com muita luta, foram paulatinamente se direcionando em nome da “democratização” do ensino.
Também não eram as empresas e seus proprietários as instituições que tinham a permissão social para ditar, até mesmo, o que era uma “inovação pedagógica”. Esse processo exige uma atenção para ao quadro de relações sociais que permitia o seu adequado posicionamento no jogo político, de modo a receber vantagens, ganhar vendas, licitações etc. Além disso, não há uma regra pétrea que nos obrigue a pensar em “inovações pedagógicas” que sejam, imediatamente, as “inovações tecnológicas”. O próprio termo “tecnologia educacional” surge como elemento discursivo nas décadas de 1960 e 1970, dando vulto aos aparelhos voltados às técnicas audiovisuais. “No entanto, o conceito foi se redefinindo, tendo em vista a abrangência que a abordagem passou a ter, aplicando conhecimentos científicos fundamentados na psicologia da aprendizagem, na teoria da comunicação e na teoria sistêmica na solução de problemas educacionais”.3 Em outros termos, essa ideia de ligar imediatamente a inovação à tecnologia tem que ser percebida a luz da história.
Está correto dizer que a ideia de “inovação”, descrita por Schumpeter, nasce no âmago do capitalismo industrial do século XIX. Este pensador introduz a noção de inovação como geradora de processos “positivos” à economia, pensando como uma desestabilização do ato empreendedor em algum equilíbrio do processo capitalista. Ele está pensando a economia como ato de obtenção de lucros e concebe essa possibilidade dentro da produção, seja pensando a introdução de uma nova matéria-prima, uma nova forma de modelar o produto, uma nova forma de circulação de bens, a dissolução de monopólio etc. A ideia de tecnologia educacional está ligada a esse processo, muito embora a criação deste último termo tenha aparecido tempo depois, como já dissemos.
O discurso da inovação e a quem ele serve
Voltando ao argumento do texto, temos que analisar a associação automática da ideia de “inovação” com as tecnologias e, por conseguinte, como uma necessidade imprescindível. São ferramentas importantes. Mas a pandemia nos fez ver que não são de uso comum. O acesso a elas não é amplo, nem democrático. E a gerência dos processos para sua distribuição na escola, menos ainda. Além disso, questionarmo-nos por que os próprios produtores e seus agenciadores sociais, institutos e fundações que “lutam pela educação” passaram a ser um componente tão fundamental no seio das reformas educacionais nos últimos tempos. Antes devemos questionar os motivos de empresas, indústrias de materiais tecnológicos, institutos e fundações com mentalidades corporativas passarem à dinâmica social como sendo os novos reformadores da educação. Quem tem o poder de puxar para si esse reconhecimento social?
O bilionário Paulo Lemann é um bom exemplo para entender como se processa essa valoração de discursos inovadores que destacam os executivos como profissionais da educação.4 Dele irradia uma série de ações que, interrelacionadas, mantêm o seu oligopólio educacional. Essa macroinstituição tem sua sofisticação e, por conseguinte, gera a validação do empresário como um sujeito interessado em educação. O seu “negócio educacional” tem quatro frentes. A Fundação Estudar, voltada ao financiamento de jovens com empreendedores. Depois, há a Lemann Center for Entrepeneurship and Inoovation in Brazil, que financia a Universidade de Stanford para o recebimento de jovens estudantes brasileiros. Há a Gera, que é uma “venture de capital brasileiro focado exclusivamente em educação”, visa à ativação de startups empreendedoras. Um dos chamarizes da Gera é a Escola Eleva, escola de elite com duas unidades no Rio de Janeiro. Esta escola dá nome ao Grupo Eleva que se diz “uma holding de educação básica coordenadora de redes escolares de alta qualidade acadêmica, apoiada por uma plataforma educacional de impacto”. Isto é, o grupo possui escolas, mas também oferece conteúdo com um currículo “socioemocional”, que fornece tecnologias e experiências criativas, com programas “makers”, baseados em projetos. Distribui-se e ganha valor social, disseminando conteúdo, produzindo materiais didáticos, formando professores etc. Como se pode constatar, um conglomerado produz mais do que dinheiro; ele produz e reproduz a sua própria respeitabilidade. Para tanto, há investimento perene em novos quadros, a distribuição desses agentes em diferentes espaços políticos, a validação de conhecimentos feita em instituições exemplares, o financiamento de pesquisas que validem esses interesses etc. A questão é ter o poder de produzir e autenticar, generalizadamente, todas essas ações como benfeitorias e excelentes iniciativas em nome da educação.
Já a Fundação Lemann se articula junto aos índices da educação no Brasil, quando descreve um quadro de baixos níveis de aprendizagem e altos números de evasão escolar. Apresenta-se como um agente solucionador de problemas com “soluções tecnológicas na educação”, articulando parcerias e oferecendo consultoria técnica especializada e de formações para secretarias de educação “que querem conectar suas escolas à internet de alta velocidade”. De onde vem essa consultoria e todo esse agenciamento? Não seria surpreendente que seja criado no esteio de suas próprias instituições. Essa parceria é viabilizada por produtos desenvolvidos pela “Khan Academy, Árvore Educação, Letrus, Movva, RBAC, entre outros”. Não me surpreende a “boa intenção” em capitalizar com cada aluno do ensino público o consumidor de todos esses produtos e cujos investimentos saem dos cofres públicos. Nada mais conservador do que transferir dinheiro público para as boas ideias de empresários com seus “Laboratórios de Inovações”.5 São esses os novos reformadores quem devem se estabelecer como os sujeitos mais importantes e atuantes na produção dos discursos pedagógicos? São esses os sujeitos que vão tomar conta do ensino público no estado de São Paulo (e no Brasil)? Nada do que é “novo” ganha esse vulto, sem uma expressão de interesse, sem política, sem financiamento de publicização de sua própria competência. E mais! Quando um discurso desse tipo ganha esse destaque, isso claramente significa que existem muitas outras inovações produzidas pela escola, em nome da escola, para a escola, que estão sendo apagadas, invisibilizadas para que este discurso de tecnologização das relações sociais sobressaia. A expressão “por que destacar esses valores e não outros” precisa ser posicionada como guia de uma resistência e manifesto propositivo.
Vemos nítido este caminho de empresariamento da educação pública por meio do currículo do Novo Ensino Médio, no estado de São Paulo, pelos exemplos de algumas de suas matrizes. O “Novo Ensino Médio” apresenta na área de “Ciências da Natureza e suas Tecnologias” (CNT), um chamado à “Ciência em ação”. Esta tem como indicador as “habilidades para o mundo do trabalho” e sua unidade curricular visa à “criação de sites e plataformas digitais”, com licenciaturas prioritárias indicadas à Física, à Química, à Biologia e às Artes. Em outra área, de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHS), o lema é “superar desafios” também com “habilidades para o mundo do trabalho”, tendo a unidade curricular “marketing digital” com licenciaturas prioritárias indicadas à Filosofia, Geografia, História, Sociologia e Língua Portuguesa. Em outras palavras, o que no discurso de apresenta como integrador e transdisciplinar é, na verdade, a união de pessoas em bloco artificial que destitui o professor da sua função de especialistas pelas disciplinas científicas, fato que possui um longo histórico de constituição e que é um elemento importante de sua identidade docente. Além disso, desconsidera totalmente que o professor tem um “saber docente” que é para além do disciplinar, ou melhor, está relacionado a ele, e é um saber manual, gestual, de técnica, de atividade autônoma: para a montagem de projetos de interesse local, para a criação de clubes de leitura, para a organização de festas etc. São muitas as tecnologias criadas pelo saber docente: há truques, gambiarras, ou como dizem, professores são “hackers”. Os sujeitos responsáveis por essa reforma educacional deveriam se envergonhar por gerar essa indecência. Por essas matrizes, o conceito de tecnologia é fraco, porque não enxerga as artes manuais, as artes do corpo, as performances, a vocalização. Além disso, priorizar o trabalho, visto como empregabilidade, não é o único critério que deve moldar a vivência de um aluno. O aluno não é um estagiário mirim, precarizado. Ele tem o direito de saber e conhecer as ciências, de gozar a poesia, entender os processos históricos…
Em outro texto, discutindo as inovações educacionais, falávamos sobre o processo histórico de gerência das relações sociais para que algo apareça ao público como sendo “novo”, seja ele um processo, um modelo, um objeto, um projeto etc. Da mesma forma, lembramos que as reformas educacionais visam às reformas sociais. A disputa pela novidade é a apresentação de um novo instrumento ora intelectual, ora técnico, ora social para nos fazer enxergar coisas que ainda não foram percebidas. E, nesse processo, temos que levar em conta a composição do poder político, social, empresarial, financeiro que faz destacar a tal novidade, mas que, muitas vezes, acaba minando outras boas ideias que já estão sendo levadas a cabo nas comunidades, pensadas em berço comum. A história das inovações é a história das relações sociais em disputa pela criatividade.
Portanto, o que dizer de outros processos inovadores, de cunho social, que são invisibilizados? Pois, afinal, há inovações sociais, criativas, frugais, que servem à escola ou foram feitas para a escola, que se processam por intermédio dela, mas não ganham destaque e sequer são percebidos como fundamentos de processos experimentais para a obtenção de conhecimento, virtuosidade e força política. Devemos lembrar que não existem apenas inovações de tipo econômico e precisamos pensá-las na sua forma mais afetiva, gerada no seio da necessidade, ou do uso do espaço, na melhoria significativa da conexão cooperativa entre as pessoas. São estas as tais inovações pedagógicas que sofrem da falta de destaque, pois estão em desvantagem na disputa. E quando falamos em disputas apontamos as perspectivas mais ricas, mais poderosas, que possuem investimento que direcionam fluxo de grandes capitais para gerar todas as boas soluções.
Outras inovações e os movimentos sociais
Exemplos de inovações sociais, não corporativas, mas colaborativas, que podem servir à escola, podem ser vistos, por exemplo, no projeto Las Aventuras de Aprender. Este projeto tem como objetivo destacar as comunidades e seus agentes, com suas próprias práticas e protocolos, ambientes e espaços, fazendo-as funcionar coletivamente. Isso porque todos os projetos, apresentados na forma de guias práticos e experimentais, mostram o relacionamento do conhecimento com coisas interessantes, cotidianas, banais, que procuram o desenvolvimento de habilidades colaborativas, são coletivas, abertas. O projeto dá ênfase à criatividade social. Convida-nos à investigação para a solução de problemas do nosso cotidiano. As inovações não são as coisas, as instituições financeiras e fundações de filantropocapitalismo, mas sim as pessoas. E neste caso, estamos falando das pessoas dos bairros, das comunidades, de escolas, professores e alunos.
Esse é o tipo de proposta que visa observar outras fontes de inovação criativa. Pensa a escola como um ambiente permeável a diferentes mananciais de informação e inspiração, na produção de um conhecimento ativo. Aqui, os movimentos sociais poderiam se integrar ao sistema educacional. Não falamos de pedagogizar movimentos, mas entender que a escola é espaço legítimo para que ambos se desenvolvam de maneira conjunta. Movimentos sociais é o nome que damos aos grupos que levantam suas plataformas visando à luta, seu pertencimento ao movimento de declaração de direitos dentro das democracias. São agentes políticos. Mas, em relação à escola pública eles também podem ser pensados como agentes cognitivos porque exibem a sua capacidade e competência no momento de buscar soluções para problemas, para desejos comunitários, para justiça e ações de solidariedade, para a expressão da arte. Esses são conhecimentos do seu entorno imediato e que sempre podem gerar a dinâmica para investigações, estudos e fruição poética. A relação entre a escola e os movimentos sociais detonam perguntas, podem trazer as soluções dos problemas e apresentar novas respostas. Não é desprezível que uma comunidade possa gerar processos inovadores dentro de seus próprios espaços, tendo a escola como espaço agremiador desses diferentes sujeitos problematizadores. As escolas podem ser “Laboratórios Cidadãos”: local para o convívio de diferenças, ambiente para a apresentação e a busca coletiva de soluções de problemas, espaço de intervenção e produção de arte, conhecimento, poesia etc.
A escola, como espaço público, pode e deve manter essa relação com a sua comunidade. Aliás a escola possui a liberdade de fazê-lo com o seu projeto político. Mais ainda, muitos espaços escolares já exibem essa configuração. Mas os seus agentes interpretam essa relação social como uma “inovação pedagógica”? Isto é, ver os movimentos sociais, coletivos, comunitários, artísticos de seus entornos como potenciais de conhecimento e de práticas que são disparadoras e estruturadoras de atividades pedagógicas experienciais e experimentais, e mais que isso, libertadoras? Não é um projeto tão distante de muito de nós, bastando lembrar a atitude do movimento estudantil com a luta pela escola pública nas práticas das ocupações em 2015.
Aqui, não se está descartando nem demonizando as novas tecnologias da informação. Entretanto, jogamos luz a um complexo de inovação e da aprendizagem que está diante de nossos olhos e não no colo de agentes alienígenas que enxergam a escola como um órgão de agitação do capital neoliberal. Precisamos questionar radicalmente os processos que regem essa ideologia que nos cega diante do óbvio. O relacionamento do ensino público com os movimentos sociais é uma inovação social e pedagógica que pode servir à contenção de problemas locais, para a descoberta coletiva de soluções, para a dinamização do espaço como lugar de se fazer fluir a poesia, a música, novas estéticas e outras qualificações de cidadania que não sejam as ligadas ao empreendedorismo privado e este léxico de “marketing”, “influencers”, “startups” e outros. Até porque todos esses termos são um conhecimento descontextualizado. O tipo de inovação social colaborativa visa à criação de novos patrimônios que pensam a polissemia do termo: pode ser tanto um estímulo para gerar valores que dignifiquem as relações comunitárias e suas práticas e edificações (materiais e imateriais), quanto um processo para a organização de economias sustentáveis, locais e de vizinhança. Pensemos a escola como um lugar para sonhar a eliminação das violências urbanas, de cuidado para com os seus espaços, territórios (escola, praças, terrenos), à reversão do racismo ostensivo e o assassínio de jovens negros, à produção de hortas e jardins comunitários e de usufruto aberto etc., em outras palavras, para a criação de novos patrimônios.
O relacionamento da escola com sua comunidade é um processo vigoroso que já está arquitetado na mente de muitos docentes. Mas estes projetos não estão representados nesses discursos modernizadores, sempre maquiados pelo manto da caridade e da benevolência. O professor que se esforça em relacionar a sua escola aos interesses de sua própria comunidade pode ser chamado até de “comunista”. Os estudantes secundaristas do movimento de ocupação foram constantemente chamados de “desocupados”. Lembramos que os termos “comunista” e “desocupado” estão sempre na boca de quem quer desqualificar as contradições democráticas que surgem na forma de lutas sociais.
Para finalizar, há um vídeo na página da TED (Tecnologia, Entretenimento, Desenho) chamado Educational Innovation in the slums (2010) em que está posto o potencial criativo surgido em comunidades, mas como resultado de empreendimentos sociais, individuais. Charles Leadbeater, o palestrante, é reconhecido por seus estudos sobre inovação e criatividade. Durante a palestra, ele fala da relação entre a educação e as formas inovadoras e frugais perpetradas em comunidades pobres em diferentes locais do mundo, iniciando pelo Brasil. Sua posição como pesquisador e divulgador de inovações sociais mostra a ambiguidade dessas disputas em nome do que é melhor para a educação. O palestrante parte de uma crítica ao sistema de ensino que é metrificado, pautado por metas e que tem características de ensino bancário. Indica e valoriza as relações entre inovação social e educação, mostrando o seu caráter prático, fecundo, mostrando-as ativadas em vários lugares carentes do globo, descentralizando essa discussão do modelo finlandês ou do Vale do Silício. Ainda assim, vários dos seus exemplos possuem essa margem corporativa, de iniciativas sociais que são progressivamente capturadas pelas franjas das fundações privadas. Ele mesmo diz que a sua pesquisa é financiada pela Cisco, que é uma empresa global com interesses generalizados nas telecomunicações. A impressão que temos é que essas empresas sabem muito bem sobre o potencial mercadológico da criatividade social e da inteligência coletiva. E querem saber mais ainda sobre como “inovar” a despeito da carência de ferramentas e materiais. Este é mais um exemplo que nos mostra que há permeabilidade do mercado na disputa pela escola, no interesse de incorporar a criatividade social como mais um dos seus produtos, de modo que nem sempre percebemos esses novos patrimônios, a não ser quando se transformam em patrimônios deles.
Permitir a tomada da educação pública pelo empresariado é reconhecer o baixíssimo nível dos critérios que estão pautando aquilo que chamamos de “cidadania”. Ao tratá-la pelo caminho real, empírico, resta-nos uma pergunta: que espécie de cidadão é esse, formado pela escola pública, que deve estar sob a tutela de empresários? Quais são as qualificações de cidadania que uma criança no ensino público passa a responder pela mão de quem coordena holdings e bancos? E como fica essa sensação de que estamos sendo expropriados de um grande celeiro de ideias antes mesmo de percebê-lo como uma inovação educacional?
1 SOUZA, Rosa Fatima de (2007). História da cultura material escolar: um balanço inicial. In: BENCOSTTA, Marcus Levy Albino (org.). Culturas escolares, sabres e práticas educativas: itinerários
históricos. São Paulo, Cortez.
2 SOBE, Noah W. Challeging the Gaze. The subject os Attenton and a 1915 Montessori Demonstration Classroom. Cadernos de História da Educação, 15(1), 166-189. Edição bilíngue. Traducação: Katya Braghini, Milena Belo, Paulo Jorge de O. Carvalho Disponível em https://seer.ufu.br/index.php/che/article/view/34631 Acessado em 21/01/2022
3 Cf. SOUZA, Rosa Fátima de. Objetos de ensino: a renovação pedagógica e material da escola primária no Brasil, no século XX. Dossiê: Cultura Material Escolar: abordagens históricas • Educ. Rev. (49) • Set 2013 https://doi.org/10.1590/S0104-40602013000300007
4 Sobre a atuação do bilionário Paulo Lemann na educação, vale a indicação da pesquisa de Bruna Werneck Canabrava, intitulada “O projeto Lemann e a educação brasileira. Rio de Janeiro”, publicada pela Oficina Raquel, em 2021.
5 As informações listadas foram retiradas das redes sociais e sites das próprias instituições.
por Katya Braghini | Além da Mercadoria – Outras Palavras
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