Professores devem assumir a efetiva posição de educadores para resistir à ideologia burguesa no âmbito escolar
Uma das consequências da deterioração que afeta parcela considerável dos trabalhadores da educação é o seu aparente desinteresse (ou desmotivação) em relação ao ato político de ler. Não nos referimos à indispensável “leitura de mundo”, de que falava Paulo Freire; estamos a refletir sobre a resistência de alguns colegas em consumir reportagens de jornal, estudar artigos disseminados em periódicos científicos e fruir livros de ficção e não-ficção (para além dos best-sellers reproduzidos pela indústria cultural, que inclui receituários coach).
Sempre que nos deparamos com situações feito essa, estaremos autorizados a questionar atitudes que já se tornaram lugares-comuns: (1) como o educador/professor pode cobrar de seus alunos que sejam disciplinados e façam as tarefas extraclasse, se ele mesmo, de quem se espera o maior exemplo, não faz a sua lição de casa? (2) por que parte do professorado confunde a consulta a livros e periódicos com ação de gente pedante, restrita a espaços “privilegiados”, como a universidade? (3) desde quando estimular a criticidade dos alunos passou a ser algo negativo?
Não ignoramos as condições precárias a que o professorado é submetido, neste país, pelo menos desde os anos de 1970. Mas, o que buscamos defender é o argumento de que, se a situação da categoria é reconhecidamente ruim, ela tampouco será transformada enquanto não houver mudança da postura de seus profissionais. E o primeiro passo para isso é estimular as oportunidades de diálogo e convergência, objetivando à maior unificação possível dos pares.
Uma boa alternativa para isso seria estimular grupos de leitura, com vistas a fomentar o trânsito de livros e de ideias e, de quebra, ampliar as oportunidades de convívio para além das atividades compulsórias do pequeno-grande mundo escolar (reuniões, cursos preparatórios, preenchimento de relatórios, correção de provas, registro de faltas e conceitos etc.).
Evidentemente, lidaremos com a reação de colegas que não veem sentido em estudar e refletir sobre a própria prática. Mas quem diz “unificação” também diz coesão. Não é preciso reiterar o truísmo de que uma categoria efetivamente unida não estaria resignadamente à mercê de estratégias mirabolantes a cargo da Direção Escolar; nem se colocaria passivamente na expectativa de atitudes incisivas dos líderes “politizados”, para depois segui-los.
Por isso mesmo, é compulsório fazer as perguntas mais incômodas. Por exemplo, “será a escola um fim em si mesmo?” Supomos que não. A instituição de ensino deveria ser concebida institucionalmente e compreendida por seus “clientes” como correia de transmissão; lugar ideal para a construção e compartilhamento de saberes. Retirando-se a postura crítica de alunos e professores, é de se perguntar qual o propósito do ensino-aprendizagem.
Sim, porque o educador não pode se furtar ao ato de “professar”, ou seja, de se expor. Enquanto ele leciona matérias de seu efetivo conhecimento, também revela modos de conceber o mundo. Afinal, o professor ainda é uma referência para seu aluno. Por isso mesmo, o profissional da educação é um ser em constante mudança, que se atualiza, dentro das possibilidades, incorporando as novas linguagens, tecnologias e métodos de aprendizagem, sem jamais perder de vista a situação que a categoria vivencia.
Em 2019, João Adolfo Hansen introduziu sua Aula Magna para os alunos de Letras da FFLCH, USP, resgatando a etimologia da palavra que traduz o nosso ofício: “Falo como professor. Professor, lembro com Derrida, é o que professa. Palavra de origem latina, “professar” liga-se ao verbo profiteor, professus sum, profiteri, composto dos termos pro, “frente a”, e fateor, “falo”, ou “falo frente a”, “declaro abertamente”, “declaro publicamente”. A declaração de quem fala ou declara publicamente como professor é performativa, ou seja, é uma ação. Como ação ou ato de fé que nada tem de religioso, a declaração empenha um testemunho, como um atestado, uma promessa. Em sentido forte, a declaração é um compromisso, pois professar é empenhar a responsabilidade”.[i]
Antes de tudo, o educador é aquele que reconhece o ensino como um processo e não como tarefa pronta. Sabemos como é desgastante reproduzir tópicos ao longo de uma longa jornada de trabalho, simulando neutralidade feito um autômato, sem expressar qualquer ponto vista sobre o próprio conteúdo em cena. Deveríamos saber, desde Aristóteles, que não há discurso neutro, politicamente, ou isento de intenções. Justamente porque educar é um ato de pesquisa e fala, como disse Roland Barthes,[ii] que tanto o teor da matéria, quanto os métodos de ensino, precisam ser constantemente revistos, durante nossa atuação dentro e fora da sala de aula.
Nesse sentido, o professor – mais do que um título atribuído aos que realizam um curso de licenciatura, devidamente autorizado e reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) – é um educador. E os que educam assumem um compromisso com os alunos. Esse compromisso vai além do ato de transmitir conteúdos através de metodologias que não necessariamente dialogam com a realidade dos educandos. O ato de ensinar é político e deve ser discutido a partir dessa perspectiva. Não o fazer é negar o compromisso estabelecido e abdicar da função de educar criticamente.
A palavra “educador” difere muito dos termos impostos aos professores com a finalidade de diminuir a importância de seus saberes e práticas para a sociedade. É o que vemos em “facilitador”, mas também na mais nova nomenclatura utilizada pelo Estado para legitimar a atuação de profissionais que, supostamente, possuem conhecimento específico em uma determinada área: os “Profissionais com Notório Saber”.
Eles estão autorizados a lecionar; mas ensinarão o quê e como, se não compreendem a dinâmica do processo educativo? Se a educação é um ato político como tal, sua primeira tarefa é questionar a estrutura e a organização da sociedade. Sobretudo quando essa organização tende a reproduzir, senão a defender, os “valores”, “iniciativas” e “reformas” das classes ditas dominantes.
Como alertava Aníbal Ponce, “um povo manso e resignado, respeitoso e discreto, um povo para quem os patrões sempre tenham razão, como não haveria ele de ser o ideal de uma burguesia que só aspira resolver sua própria crise, descarregando todo o peso sobre os ombros das massas oprimidas? Só um povo “gentil e meditativo” é que poderia suportar sem “discussão” a exploração feroz. É esse povo de que o fascismo necessita e o que a sua escola se apressa em preparar”.[iii]
Graças ao “Novo Ensino Médio”, o profissional com notório saber, chancelado pelos sistemas de ensino, recebe a missão alienante de ministrar conteúdos relacionados ao Empreendedorismo e à Educação Financeira. Em um país como o Brasil, marcado pela profunda desigualdade social e pela fome, propor aos mais desassistidos disciplinas com o objetivo de “despertar a criatividade para empreender” reforça a responsabilização individual pelo fracasso do Estado.
O profissional “com notório saber”, agora nomeado “professor”, tem a função de modelar indivíduos pacíficos e incapazes de compreender o processo de exploração aos quais são submetidos. Ao mesmo tempo, os educadores assistem atônitos ou, pior, crédulos ao desmonte da educação. A escola se torna um local destinado a formar uma massa que, se tiver sorte, poderá ser explorada em trabalhos precarizados sem direito algum.
Em suma, é urgente que nós, professores, assumamos a efetiva posição de educadores para resistir à ideologia burguesa no âmbito escolar. Ao mesmo tempo, é preciso nos rebelarmos contra o jugo imposto às classes populares. O ato político de educar é fundamental para a conscientização e mobilização para a luta de classe.
Originalmente em Outras Palavras
Notas
[i] João Adolfo Hansen. Aula Magna. Rio de Janeiro/Copenhague, 2019, p. 5-6.
[ii] Roland Barthtes. Aula. 14ª ed. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2009.
[iii] Aníbal Ponce. Educação e Luta de Classes. 18ª ed. Trad. José Severo de Camargo Pereira. São Paulo: Cortez, 2011, p. 171.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!