Washington visa implodir a economia russa e rachar elites próximas a Putin. Mas a aposta é de alto risco. Moscou pode iniciar processo de desdolarização e imprimir os rublos para pagar salários e desenvolver suas indústrias
Os impérios muitas vezes seguem o curso de uma tragédia grega, provocando precisamente o destino que eles procuraram evitar. Esse certamente é o caso do Império Americano, que se desmancha em movimentos não tão lentos.
A suposição básica da previsão econômica e diplomática é que cada país agirá no seu próprio interesse. Tal raciocínio não ajuda nada no mundo de hoje. Observadores de todo o espectro político estão usando frases como “tiro no próprio pé” para descrever o confronto diplomático dos EUA com a Rússia e seus aliados. Mas ninguém pensou que o Império Americano se autodestruiria tão rapidamente.
Por mais de uma geração, os mais proeminentes diplomatas norte-americanos têm advertido sobre o que eles pensavam que representaria a última ameaça externa: uma aliança da Rússia e da China dominando a Eurásia. As sanções econômicas e o confronto militar dos Estados Unidos aproximaram estes dois países e estão levando outros países para sua órbita eurasiática emergente.
Esperava-se que o poder econômico e financeiro norte-americano evitasse este destino. Durante o meio século desde que os Estados Unidos saíram do padrão ouro, em 1971, os bancos centrais do mundo operaram com base no padrão dólar, mantendo suas reservas monetárias internacionais sob a forma de títulos do Tesouro dos EUA, depósitos bancários dos EUA e ações e títulos norte-americanos. O Padrão de Bilhetes do Tesouro resultante permitiu aos Estados Unidos financiar seus gastos militares estrangeiros e a aquisição de investimentos de outros países simplesmente através da criação de IOUs (documento informal reconhecendo dívidas) em dólares. Os déficits da balança de pagamentos dos EUA acabam nos bancos centrais dos países com superávit de pagamentos como suas reservas, enquanto os devedores do Sul Global precisam de dólares para pagar seus credores e conduzir seu comércio exterior.
Este privilégio monetário – a senhoriagem do dólar – permitiu à diplomacia dos EUA impor políticas neoliberais ao resto do mundo, sem ter que usar muita força militar própria, exceto para capturar o petróleo do Oriente Próximo.
A recente escalada das sanções dos EUA bloqueando a Europa, Ásia e outros países que mantém comércio e investimentos com a Rússia, Irã e China impôs enormes custos – o custo das oportunidades perdidas – aos aliados norte-americanos. E a recente confiscação do ouro e das reservas estrangeiras da Venezuela, Afeganistão e agora da Rússia [1], juntamente com a busca de contas bancárias de estrangeiros ricos (na esperança de conquistar seus corações e mentes, atraídos pela esperança do retorno de suas contas sequestradas), acabou com a ideia de que as posses em dólares – ou agora também os ativos em libras esterlinas e euro, satélites do dólar da OTAN – são um porto seguro de investimento quando as condições econômicas mundiais se tornam instáveis.
Por isso, fico um pouco decepcionado ao observar a velocidade com que este sistema financeiramente centrado nos EUA se deslegitimou ao longo de apenas um ou dois anos. O tema básico do meu livro, Superimperialismo (1972), é como, nos últimos cinquenta anos, o padrão do Tesouro dos EUA canalizou a poupança estrangeira para os mercados financeiros e bancos norte-americanos, dando à Diplomacia do Dólar uma passagem livre. Pensei que a desdolarização seria liderada pela China e a Rússia que se moveriam para assumir o controle de suas economias e evitar o tipo de polarização financeira que impõe austeridade aos Estados Unidos [2]. Mas as autoridades norte-americanas estão forçando a Rússia, a China e outras nações a não se fecharem na órbita dos EUA para verem a escrita na parede e superarem qualquer hesitação que tenham tido de desdolarizar.
Eu esperava que o fim da economia imperial dolarizada viesse ocorrer com a ruptura de outros países. Mas não foi isso que aconteceu. Os próprios diplomatas norte-americanos escolheram acabar com a dolarização internacional, enquanto ajudavam a Rússia a construir seus próprios meios de produção agrícola e industrial autosuficientes. Este processo de fratura global está em curso há alguns anos, começando com as sanções que bloqueiam os aliados da OTAN e impedem que outros satélites econômicos dos EUA negociem com a Rússia. Para a Rússia, estas sanções tiveram o mesmo efeito que as tarifas protecionistas teriam tido.
A Rússia permaneceu bastante encantada pela ideologia neoliberal do livre mercado para tomar medidas para proteger sua própria agricultura e indústria. Os Estados Unidos forneceram a ajuda que era necessária, impondo autoconfiança interna à Rússia. Quando os estados bálticos obedeceram às sanções norte-americanas e perderam o mercado russo para seus queijos e outros produtos agrícolas, a Rússia rapidamente criou seu próprio setor de queijos e laticínios – ao mesmo tempo em que se tornou o principal exportador mundial de grãos.
A Rússia está descobrindo (ou está prestes a descobrir) que não precisa de dólares norte-americanos como suporte para a taxa de câmbio do rublo. Seu banco central pode criar os rublos necessários para pagar os salários domésticos e financiar a formação de capital. A confiscação de suas reservas em dólar e euro pelos EUA pode finalmente levar a Rússia a acabar com sua adesão à filosofia monetária neoliberal, como Sergei Glaziev vem defendendo há muito tempo, em favor da Teoria Monetária Moderna (MMT).
A mesma dinâmica de redução dos objetivos ostensivos dos EUA ocorreu com as sanções dos EUA contra os principais bilionários russos. A terapia de choque neoliberal e as privatizações dos anos 1990 deixaram os cleptocratas russos com apenas uma maneira de descontar os bens que eles haviam tirado do domínio público. Isso foi através da incorporação de suas aquisições e da venda de suas ações em Londres e Nova York. As economias domésticas haviam sido dizimadas, e os consultores dos EUA persuadiram o banco central russo a não criar seu próprio dinheiro em rublo.
O resultado foi que o patrimônio nacional russo de petróleo, gás e minerais não foi usado para financiar uma racionalização da indústria e habitação russa. Em vez da receita da privatização ser investida para a criação de novos meios de proteção russos, ela foi queimada em novas aquisições de bens e imóveis de luxo britânicos, iates e outros ativos de capital de vulto global. Mas o efeito das sanções que tornaram as participações em dólares, libras esterlinas e euros de bilionários russos reféns foi tornar a cidade de Londres um local muito arriscado para manter seus ativos – e para os ricos de qualquer outra nação potencialmente sujeita às sanções dos EUA. Ao impor sanções aos russos mais ricos e próximos de Putin, as autoridades norte-americanas esperavam induzi-los a se opor à sua separação do Ocidente, e assim servir efetivamente como agentes de influência da OTAN. Mas para os bilionários russos, seu próprio país está começando a parecer mais seguro.
Há muitas décadas, o Federal Reserve e o Tesouro dos Estados Unidos lutam contra o ouro, que recupera seu papel nas reservas internacionais. Mas, se a Índia e a Arábia Saudita vão encarar suas posses em dólares, como Biden e Blinken tentarão forçá-los a seguir a “ordem baseada em regras” dos EUA em vez de seus próprios interesses nacionais? Os recentes ditames norte-americanos deixaram poucas alternativas a não ser começar a proteger sua própria autonomia política, convertendo as reservas em dólares e euros em ouro – como um ativo livre da responsabilidade política de ser mantido refém das exigências cada vez mais onerosas e perturbadoras dos EUA.
A diplomacia norte-americana tem esfregado o nariz da Europa em sua abjeta subserviência, dizendo a seus governos para que suas empresas vendam seus ativos russos por centavos de dólar depois que as reservas estrangeiras da Rússia foram bloqueadas e a taxa de câmbio do rublo baixou. A Blackstone, Goldman Sachs e outros investidores norte-americanos se moveram rapidamente para comprar o que a Shell Oil e outras empresas estrangeiras estavam descartando.
Ninguém pensou que a ordem mundial do pós-guerra, entre 1945-2020, cederia tão rapidamente. Uma ordem econômica internacional verdadeiramente nova está surgindo, embora ainda não esteja claro qual será a sua forma. Mas os confrontos resultantes da “caça ao Urso” com a agressão dos EUA/OTAN contra a Rússia extrapolaram o nível de massa crítica. Não se trata apenas da Ucrânia. Ela é apenas o gatilho, um catalisador para afastar grande parte do mundo da órbita dos EUA/OTAN.
O próximo confronto pode vir dentro da própria Europa enquanto os políticos nacionalistas procuram liderar uma ruptura com o super-impulso dos Estados Unidos em relação a seus aliados europeus e outros para mantê-los dependentes do comércio e dos investimentos baseados nos Estados Unidos. O preço de sua obediência contínua é impor a inflação aos custos de sua indústria enquanto subordinam sua política eleitoral democrática aos procônsules estadunidenses da OTAN.
Estas consequências não podem realmente ser consideradas “involuntárias”. Muitos observadores apontaram exatamente o que aconteceria – liderados pelo presidente Putin e pelo ministro das Relações Exteriores Lavrov, explicando exatamente qual seria sua resposta se a OTAN insistisse em encurralá-los enquanto atacava os russófonos ucranianos de língua oriental e movimentava armamento pesado para a fronteira ocidental da Rússia. As consequências foram antecipadas. Os neoconservadores no controle da política externa dos Estados Unidos simplesmente não se importaram. Reconhecer as preocupações russas seria considerado um Putinversteher [neologismo político alemão, que refere-se àquele que compreende o presidente russo].
As autoridades europeias não se sentiram desconfortáveis em contar ao mundo sobre suas preocupações de que Donald Trump estava louco e atrapalhando a diplomacia internacional. Mas parecem ter estado cegas quanto ao ressurgimento da Rússia, odiada pela administração Biden através do secretário de Estado Blinken e de Victoria Nuland-Kagan [esposa de Robert Kagan, então embaixador da OTAN e próxima a Blinken]. O modo de expressão e os maneirismos de Trump podem ter sido incultos, mas a gangue neocon norte-americana tem obsessões por ameaçadores confrontos globais. Para eles, era uma questão vitória sobre a realidade: a “realidade” que eles acreditavam que poderiam fazer, ou a realidade econômica fora do controle dos Estados Unidos.
O que os outros países não fizeram por si mesmos para substituir o FMI, o Banco Mundial e outros braços fortes da diplomacia norte-americana, os políticos norte-americanos estão forçando a fazer. Em vez de países europeus, do Oriente Próximo e do Sul Global se separarem ao calcularem seus próprios interesses econômicos de longo prazo, os Estados Unidos os estão afastando, como fez com a Rússia e a China. Mais políticos estão buscando apoio dos eleitores, perguntando se seus países estariam melhor servidos por novos arranjos monetários para substituir a dolarização, o investimento e até o serviço de pagamento de dívida exterior.
O aperto dos preços de energia e alimentos está impactando os países do hemisfério sul de forma especialmente dura, somando-se aos problemas gerados pela covid-19 e o iminente serviço da dívida dolarizada que está vencendo. Em que isso pode dar? Por quanto tempo estes países imporão a austeridade para pagar os credores estrangeiros?
Como as economias norte-americana e europeia enfrentarão suas sanções contra as importações de gás e petróleo, cobalto, alumínio, paládio e outros materiais básicos da Rússia? Os diplomatas norte-americanos fizeram uma lista de matérias-primas que sua economia precisa desesperadamente e que, portanto, estão isentas das sanções comerciais que estão sendo impostas. Isto fornece ao senhor Putin uma lista útil de pontos de pressão dos EUA para usar na remodelação da diplomacia mundial e ajudar os países europeus e outros a se libertarem da Cortina de Ferro que os Estados Unidos impuseram ao fechar seus satélites que dependem de suprimentos norte-americanos de alto preço?
A inflação Biden
Mas a ruptura final com o aventureirismo da OTAN deve vir do interior justamente dos Estados Unidos. Com a aproximação das eleições de meio de mandato deste ano, os políticos encontrarão um terreno fértil para mostrar aos eleitores norte-americanos que a inflação de preços capitaneada pela gasolina e energia é um subproduto da política de bloqueio das exportações russas de petróleo e gás pela administração Biden. (Más notícias para os proprietários de grandes SUV’s bebedores de gasolina!) A gasolina é necessária não apenas para aquecimento e produção de energia, mas para fazer fertilizantes, dos quais já existe uma escassez mundial. Esta situação é exacerbada pelo bloqueio das exportações de grãos russos e ucranianos para os Estados Unidos e Europa, fazendo com que os preços dos alimentos subam.
Já existe uma desconexão marcante entre a visão do setor financeiro sobre a realidade e a promovida pela grande mídia da OTAN. Os mercados de ações da Europa mergulharam em sua abertura na segunda-feira, 7 de março, enquanto o petróleo Brent subiu para 130 dólares o barril. O noticiário do BBC “Today”, na manhã de hoje, apresentou o deputado conservador Alan Duncan, um comerciante de petróleo, alertando que a quase duplicação dos preços de gás natural no futuro próximo ameaçava levar à bancarrota as empresas comprometidas em fornecer gás para a Europa com as velhas taxas. Mas voltando ao noticiário militar Em “Two Minutes Hate”, a BBC continuou a aplaudir os bravos combatentes ucranianos e os políticos da OTAN pedindo mais apoio militar. Em Nova York, a Média Industrial Dow Jones despencou 650 pontos, e o ouro subiu para mais de US$ 2.000 a onça – refletindo a visão do setor financeiro de como o jogo dos EUA provavelmente se desenvolverá. Os preços do níquel subiram ainda mais – 40%.
Tentar forçar a Rússia a responder militarmente – e assim parecer má para o resto do mundo – está se tornando uma proeza destinada simplesmente a garantir que a Europa contribua mais para a OTAN, compre mais equipamentos militares norte-americanos e se tranque mais profundamente na dependência comercial e monetária dos Estados Unidos. A instabilidade que isso causou está fazendo com que os Estados Unidos pareçam tão ameaçadores quanto a Rússia mostrada pelo Ocidente-OTAN.
Notas
- O ouro da Líbia também desapareceu após a queda de Muammar Gaddafi pela OTAN em 2011.
- Ver mais recentemente Radhika Desai e Michael Hudson (2021), “Beyond Dollar Creditocracy”: A Geopolitical Economy”, Valdai Club Paper No. 116. Moscou: Valdai Club, 7 de julho, repr. em Real World Economic Review (97), https://rwer.wordpress.com/2021/09/23.
Por Michael Hudson, no The Saker, traduzido pelo Dossier Sul