À Rússia interessa encerrar conflito; aos EUA, prolongar para desgastar Putin

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O cientista político Luis Fernandes contextualiza os interesses estratégicos dos EUA, Europa, China e Rússia para compreensão do andamento do confronto entre Putin e a Ucrânia. Em sua opinião, Putin gostaria de resolver rapidamente o conflito, como fez na Geórgia, mas EUA e OTAN agem para escalonar e adiar a resolução, dificultando ainda mais a estabilidade do sistema econômico global abatido pela pandemia.

Em entrevistou ao Portal vemelho o cientista político e professor da PUC-RJ e UFRJ, Luis Fernandes, para avaliar o conflito deflagrado pela Rússia e expectativas de evolução, a partir da análise do contexto geopolítico na região, desde o golpe que levou a Ucrânia a romper com a Rússia em 2014. 

O especialista em Relações Internacionais e autor de livros sobre a ascensão e queda da União Soviética, aposta num objetivo estratégico de Putin neste conflito, que não envolve a anexação da Ucrânia como insistem propagandistas ocidentais que defendem uma escalada maior da guerra. 

Ele também explica como a política de sanções econômicas tem alcance limitado e acabam por prejudicar ainda mais o sistema que mantém a hegemonia do dólar e das potências ocidentais em decadência. Para ele, excluir a Rússia do Swift apenas fortalece mecanismos alternativos que já despontam na China. 

Ele ainda analisa as entrelinhas da votação da resolução da ONU que condenou a intervenção russa na Ucrânia, com seus 140 países favoráveis, mas críticos às sanções como um fomento da escalada da agressão. A maioria defende o princípio da não-intervenção, mas critica a hipocrisia dos EUA e potências europeias. 

Ele ainda é contrário aos analistas que consideram que a China tem interesses na escalada desse conflito, ao observar que o gigante asiático está vencendo a competição econômica global e precisa da estabilidade do sistema para continuar avançando. Ele aposta na possibilidade da China assumir um papel protagonista na busca pela paz naquela região. 

Ao agradecer a entrevista, Luis Fernandes fez um apelo pela busca da informação qualificada sobre este tema, num momento de predomínio da narrativa de um dos lados. “Faço esse apelo para que todos procurem as informações as mais variadas possível porque infelizmente esta predominando uma narrativa única na cobertura midiática desse conflito, que não interessa ao Brasil. É como se o Brasil estivesse através do seus meios de comunicação absorvendo a agenda estratégica de outros. Temos que pensar os problemas do mundo a partir da ótica dos interesses do Brasil”.

A gente fica com a impressão de que não havia uma necessidade premente do ataque russo, mas havia uma pressão ocidental interessada contra a Rússia, que acabou sendo gatilho para a invasão. O confronto que se observa hoje teve uma motivação clara de defesa da Rússia, ou ocorreu agora por uma agenda geopolítica?

Luis Fernandes: A lógica fundamental e o cálculo estratégico que orientou a decisão russa de intervenção na Ucrânia, foi de antecipar-se aos movimentos incessantes que vinham ocorrendo, ao longo dos últimos quinze anos, para a incorporação crescente de países que integravam o antigo bloco soviético, e na sequência Repúblicas que integravam a antiga União Soviética (URSS) à aliança militar da OTAN, – que é uma aliança criada na Guerra Fria, para contenção da URSS e da expansão do próprio bloco soviético. 

Embora, garantias tivessem sido oferecidas, ainda à época, ao dirigente da URSS, Mikhail Gorbachev, de que a reunificação da Alemanha esgotaria o limite territorial da expansão da OTAN, – ou seja, a aliança militar se expandiria só até as fronteiras da Alemanha reunificada, portanto, incorporando o que era a antiga República Democrática Alemã -, na sequência, mesmo a URSS tendo desarticulado o Pacto de Varsóvia, – que era o pacto militar que sustentava o campo socialista no contexto da Guerra Fria -, o que houve foi uma frustração de todas as tentativas de negociação de um acordo de segurança europeia envolvendo a Rússia e União Europeia, e para firmar um arranjo que atendesse às preocupações principais de segurança da Rússia.

A partir de 1997, uma política ofensiva de expansão da OTAN para o leste, se dirigiu à fronteira russa, numa expansão em países e regiões que integravam a antiga União Soviética e procurando estabelecer um cerco sobre a Russa atual. 

Em 2008, o encontro realizado pela OTAN, em Bucareste, já havia acenado com a adesão da Geórgia e da Ucrânia à OTAN. A Rússia respondeu duramente, desde então, que isso era inaceitável, do ponto de vista da Rússia, porque implicaria numa situação de insegurança brutal nas suas fronteiras imediatas. Fazendo um paralelo, seria como a crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, no início dos anos 1960, que foi vista pelo governo americano como uma ameaça direta a sua segurança, e, portanto, o mundo esteve à beira de uma conflagração militar à época. Mas, os EUA prepararam, claramente, planos de invasão de Cuba que poderiam ter levado o mundo a uma guerra global, nuclear com efeitos destrutivos para a humanidade como um todo. Quando uma ameaça de segurança se apresenta tão próxima de uma grande potência, ela procura reagir para preservar seus interesses de segurança. 

Em última instância, a decisão estratégica tomada por Putin foi de se antecipar a uma eventual adesão da Ucrânia a OTAN, porque isso significaria uma grave ameaça à segurança da Rússia. 

É claro que isso não quer dizer que essa era a única alternativa de ação política estratégica possível. Evidentemente, uma intervenção como a que está em curso viola princípios do direito internacional, viola princípios que estruturam o sistema internacional, como os princípios da não-intervenção, os princípios da solução pacífica de conflitos negociada, e o princípio do respeito à integridade territorial dos estados membros da comunidade internacional. 

Agora, dito isso, de fato a crítica virulenta que é desferida contra a Rússia, por conta dessa intervenção, é absolutamente hipócrita. Porque, ao longo dos últimos 30 anos, desde o fim da Guerra Fria, os EUA e as potências europeias se envolveram, e se envolvem até hoje, em seguidas violações do direito de soberania das nações e recurso ao uso da força para impor interesses geopolíticos próprios. 

Talvez, o caso mais evidente disso seja a invasão do Iraque em 2003. E não se viu da parte da União Europeia ou das principais potências europeias uma condenação equivalente ao que hoje está sendo dirigida contra a Rússia pela intervenção na Ucrânia. 

Tivemos também a ação dos países membros da OTAN, e da própria União Europeia, na Iugoslávia, que determinaram, já na passagem do século XX para o século XXI, o desmembramento da Iugoslávia. Não houve respeito à integridade do território, naquele momento, mas houve, pelo contrário, o envolvimento crescente no fomento de movimentos separatistas de Repúblicas que integravam aquele país. Houve, inclusive, uma intervenção direta no conflito, com estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, que é essa que, agora, o presidente da Ucrânia quer que a OTAN pratique, – o que, na prática, seria uma declaração de guerra da OTAN contra a Rússia, e uma generalização do conflito que hoje está localizado no território da Ucrânia. 

A questão de fundo é que não haverá solução para essa crise, sem que as preocupações legítimas de segurança da Rússia sejam levadas em consideração. Desse ponto de vista, embora a OTAN formalmente não esteja em guerra com a Rússia, ela fomentou essa guerra, a partir do aceno e estímulo que foi feito, para mudanças políticas nesses regimes para aderir à União Europeia e à própria OTAN. 

Vamos ver o desfecho. A guerra está em curso. Como em qualquer guerra, há um conflito de versões sobre o que está acontecendo. Mas eu diria que deveria haver um esforço da comunidade internacional no sentido de tentar evitar a escalada do conflito. 

Essa política ocidental dos EUA e da União Europeia de adotar sanções duras para punição da Rússia, em primeiro lugar, afeta o mundo todo e não só o governo russo. Ela é uma aposta no escalonamento do conflito, e não na pressão por uma busca rápida e negociada para por fim ao conflito. 

É sempre importante procurar preservar vidas, porque a população civil é a principal vítima de qualquer conflito dessa natureza. Esse acordo que foi estabelecido para formar um cessar-fogo, viabilizando corredores humanitários para fazer o escoamento da população civil dos centros urbanos, que agora estão sob crescente cerco das tropas russas na Ucrânia, é um desenvolvimento importante. A expectativa é que isso possa evoluir para um cessar-fogo geral, e ter um termo de fim das hostilidades que possa restabelecer algum tipo de estabilidade na região, e por fim ao conflito que está em curso. 

Putin mantém um governo forte e nacionalista, com perfil desenvolvimentista, e os especialistas se contradizem e dizer que ele já saiu derrotado ou vitorioso desse conflito. Como você acredita que ele sai da guerra, até o momento, em particular porque existe uma pressão para que a população russa tenha uma opinião ruim sobre ele? Isso pode enfraquecê-lo como líder?

Em primeiro lugar, o conflito está em curso. E faz parte de qualquer guerra e conflito o confronto de narrativas sobre o que está acontecendo. Do ponto de vista estratégico, nós podemos dizer o seguinte: do lado russo, interessa concluir essa intervenção o mais rápido possível. 

No início da guerra, foram feitas referências à intervenção russa na Georgia, em 2008. Acho que é uma referência importante, porque o aceno que foi feito à expansão da OTAN foi dirigido à Georgia e à Ucrânia. Na sequência desse aceno, o governo da Georgia escalou uma ofensiva militar contra uma região separatista, que existe dentro da Geórgia, chamada Ossétia do Sul. A Rússia respondeu se envolvendo no conflito. 

Uma guerra que durou cinco dias, fundamentalmente, e deixou como resultado uma situação em que a Geórgia, efetivamente, não evoluiu para integrar a OTAN, mas não foi ocupada militarmente pela Rússia. Ou seja, a Rússia restringiu seus objetivos estratégicos a impedir a adesão da Georgia à OTAN e manteve o reconhecimento das duas repúblicas, a Ossétia do Sul e a Abecásia. Embora a comunidade internacional não reconheça, existe uma estabilidade na situação. 

É possível que o desfecho da guerra na Ucrânia seja semelhante, embora a guerra seja muito mais dura, porque a Geórgia é um país com 4 milhões de habitantes, menos da metade da cidade de São Paulo, e uma força militar muito mais reduzida e limitada. No caso da Ucrânia, é um país com 45 milhões de habitantes, e que foi pesadamente armada pelas potências ocidentais, e viveu um processo de militarização crescente desde o golpe que foi desferido em 2014, até aqui. Então, houve quase oito anos de estruturação de uma máquina bélica mais poderosa, embora saibamos que não há padrão de comparação com a força militar russa. 

Do ponto de vista do governo da Ucrânia e dos seus apoiadores no ocidente, em particular os EUA e as potências europeias, o interesse é prolongar o conflito para tentar gerar desgaste interno na Rússia para o governo Putin e dificuldades diplomáticas no cenário internacional para seu governo. 

Do lado do governo Putin, interessa uma solução, o mais rápida possível, desse conflito. Ele está com a iniciativa estratégica e domina os objetivos estratégicos da iniciativa. A nos inspirar no que aconteceu na guerra da Georgia, é possível que seu objetivo principal seja uma solução negociada, em que a Ucrânia permaneça fora da OTAN, e que haja um acordo para por fim à guerra, com uma relativa desmilitarização da Ucrânia. E que sejam reconhecidos um conjunto de direitos da população russófona, – a população de cultura russa da Ucrânia – e que foram fortemente restringidos e atacados, ao longo dos últimos oito anos, desde o golpe desferido em 2014. Proibiu-se o ensino de língua russa, um conjunto de ações de ataque à minoria nacional russa, dentro da Ucrânia, o que inclusive estimulou a declaração da independência das duas repúblicas ao leste. 

É possível que a Russia mantenha o reconhecimento dessas duas repúblicas, numa situação de estabilidade construída a partir do acordo de paz firmado. Sem a adesão da Ucrânia à OTAN, esse resultado significaria a vitória russa no conflito. 

Então, o desfecho ainda não está claro.

Evidente que, aqueles analistas que vaticinam uma derrota russa, é porque embutem na estratégia de Putin uma expectativa de anexação da Ucrânia; possivelmente, anexação das repúblicas bálticas, restabelecimento da esfera de influência que tinha a antiga URSS na Europa central e do Leste. Eu, sinceramente, não acredito que este seja o objetivo estratégico da Rússia no conflito.

O mecanismo de sanções está sendo tratado como a panaceia para evitar um confronto bélico maior. A Rússia, por outro lado, diz que vem se preparando para isso. Qual a eficácia dessa estratégica de impor sanções econômicas? Existem também essas sanções que se impõem sobre a sociedade civil russa, o aporte, a cultura, a mídia, a intelectualidade. Como o senhor vê tudo isso?

As sanções, como instrumento de pressão e intervenção geopolítica, não são novas e ocorrem há muito tempo na história. 

Aliás, a própria União Soviética foi vítima de políticas de sanção muito duras. Tinha um organismo do governo americano, o COCOM, que controlava quais mercadorias poderiam ser vendidas para os países socialistas e para a União Soviética. Então, a Rússia tem uma longa experiência de lidar com sanções dos países capitalistas centrais, desde o período soviético. 

Isso não é uma experiencia nova. A Rússia já vem sofrendo sanções mais seletivas, desde 2014, quando o desdobramento do golpe desferido na Ucrânia, com o apoio aberto e envolvimento direto dos EUA naquele golpe, ela avançou para reanexar a Crimeia ao território russo. 

Historicamente, a Crimeia sempre foi parte do território russo. Ela só foi incorporada à Ucrânia, em 1954, numa decisão do Nikita Krushev, que era o então dirigente principal da URSS e era ucraniano de origem; mas a população da Crimeia sempre se reconheceu como russa. Aliás, a decisão de incorporação foi tomada pelo parlamento da Crimeia, sancionada pela Rússia. 

Mas, a partir daquela anexação da Crimeia, a Rússia já vem sofrendo um conjunto de sanções. 

As sanções alcançam uma escala inaudita, pelo seu volume e abrangência, mas elas são praticadas num momento em que as posições de forças dos EUA, e da própria União Europeia, na economia global, não são as mesmas de 30 anos atrás. Os últimos 30 anos têm assistido a uma transformação bastante profunda e significativa da economia global, com ascensão de novos polos econômicos mais dinâmicos e mais inovadores, com destaque evidente da própria China, mas há outras experiências importantes como Índia, Coréia do Sul, e outras. 

No caso do sistema de pagamentos, o Swift é uma operação. A exclusão parcial da Rússia, por tempo determinado, evidentemente gera prejuízo para a economia de imediato, mas a Rússia tem alternativas. Ela já vinha se preparando para essa possibilidade, há algum tempo. 

A China tem um programa de compensações de pagamentos equivalente ao Swift, ainda não tão abrangente, mas que pode servir de canal alternativo. É possível que este sistema seja bypassado [desviado] pelo desenvolvimento de novos mecanismos de compensação. Ele não é um sistema único de compensação de operações de financiamento de investimento e de comércio, necessariamente. Com o tempo, haverá adaptações a restrições que foram impostas pela exclusão parcial da Rússia do Swift. 

O congelamento, por sua vez, de metade das reservas da Rússia que estão registradas em bancos ocidentais, representam um prejuízo e uma apropriação indébita de patrimônio russo, a partir de seu depósito em bancos ocidentais. Mas há mecanismos para mitigar e driblar os prejuízos causados por essa medida, desde envolvimento crescente em operações de comércio e investimento não referidas às moedas fortes que foram congeladas nos depósitos do Banco Central russo, até a recomposição das reservas russas se distanciando das moedas ocidentais, aumentando a proporção de reservas em yuan e ouro. Quer dizer, há vários outros mecanismos de compensação de ações de comércio e de financiamento e investimento que podem ser mobilizadas. 

Embora tenha um efeito imediato importante, é um efeito que pode ser mitigado e que, à medio e longo prazo, enfraquece o poder estrutural dos EUA e do dólar sobre a operação do sistema financeiro e do sistema monetário internacional. Por isso, houve muita relutância dos próprios operadores do Swift em aceitar essa exclusão, porque eles se apresentavam como operadores imparciais, imunes à politização dessas operações financeiras e de comércio. Então, essa politização desse sistema de compensações e sua subordinação a uma determinação estratégica por parte dos países membros da OTAN, dos EUA e das potências europeias, aumenta a incerteza sobre esse sistema de compensação e pode fortalecer sistemas alternativos, à medio e longo prazo. 

Tudo ainda está em curso. A Rússia estava preparada para essa política de sanções, tanto discursivamente, quanto praticamente. Claro que tem efeitos sobre a economia russa, que está integrada na economia capitalista global, mas são sanções e ações ofensivas de investimento no escalonamento do confronto com a Rússia, oriundas de países que estão em declínio na economia capitalista global, o que reduz a eficácia desses mecanismos. 

Claro que todos devemos condenar isso. Aliás, boa parte dos 140 países que condenaram a invasão russa na Assembleia Geral da ONU, também condenaram as sanções do ocidente. O próprio Brasil, que foi crítico à invasão da Ucrânia, também foi crítico às sanções unilaterais que estão sendo aplicadas pelas potências ocidentais, por entender que isso é uma ação que alimenta o conflito. 

Um risco que o mundo deve evitar a qualquer custo, é a possiblidade desse escalonamento envolver outras potências e outros países no conflito. Desse ponto de vista, o apelo do presidente ucraniano de que a OTAN estabeleça uma zona de exclusão aérea no território ucraniano, equivale a uma declaração de guerra da OTAN contra a Rússia. A Rússia está no controle do espaço aéreo da Ucrânia, e isso é parte da intervenção e parte da assimetria de forças no conflito. Se a OTAN entrasse na disputa desse espaço aéreo, essa guerra se generalizaria para um confronto com risco de uso de armas nucleares, que seria uma tragédia completa para a humanidade. 

Então, nos interessa investir em todas as iniciativas que permitam desescalonar o conflito em curso e pressionar para que haja, não só uma trégua, mas um acordo de paz, que seja estabelecido o mais rápido possível. 

Sobre a resolução da ONU, foi celebrada como sendo a maior parte do mundo, 140 países, condenando a intervenção russa. Mas houve 40 países que se abstiveram, sendo alguns contra a resolução, alem de haver nações gigantes como a China, o Paquistão e a Índia, assim como grande parte da África. O senhor acredita que há um recado desses países ao ocidente?

Centro e quarenta é um número elevado, de fato. Foi uma votação expressiva. Em termos de comparação, a resolução que condenou em 2014 a anexação da Crimeia pela Rússia teve 100 votos favoráveis. 140 é um número expressivo e não podemos minimizar a importância do número. 

No entanto, o que move boa parte desses votos? Não são necessariamente um alinhamento desses 140 países a uma agenda agressiva dos EUA e das potências europeias contra a Rússia, porque muitos desses 140 países, incluindo o próprio Brasil, também condenaram a política de sanções adotada pelos EUA e pelos países europeus contra a Rússia.

Eu entendo essa votação como expressão da defesa do princípio da não-intervenção. A intervenção da Rússia na Ucrânia, não tendo sido atacada pela Ucrânia, violou o princípio como ordenador do sistema internacional. 

Isso levou muitos países que são críticos da hipocrisia da resposta dada pelos EUA e pelas potências europeias a essa intervenção, a votarem a favor da condenação da intervenção russa na Ucrânia. Mas também são países que foram críticos da intervenção dos EUA e de países europeus no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria e no Iêmen, que está acontecendo neste momento. Eles também são críticos dessa hipocrisia das potências ocidentais. 

Dos BRICS, a Rússia votou, evidentemente, contra a resolução, e todos os demais (Índia, China e África do Sul), menos o Brasil, se abstiveram. O Brasil votou a favor, embora com várias restrições no seu voto à política adotada pelas potências ocidentais no conflito. 

Eu me lembro de um debate feito em 2003, por ocasião da invasão do Iraque, quando o chanceler alemão se opôs, e o governo Bush reagiu dizendo que a Alemanha estava se isolando no mundo. E o Schroeder, na época, perguntou como ele estaria se isolando no mundo, se estava junto com a China, a Índia, a Rússia, o Brasil, um conjunto de países mais populosos do mundo que condenavam a guerra do Iraque. 

De uma certa forma, isso também vale hoje, embora eu ache que não podemos diminuir ou subestimar esse número expressivo de países membros da ONU. Agora, esses 140 não implicam uma adesão a uma política agressiva dos EUA e da Europa para punição da Rússia e para escalonar o conflito para proporções maiores. 

A abstenção também revela o seguinte: eu não endosso a invasão da Ucrânia, mas não posso me alinhar com uma crítica hipócrita, que toma medidas de escalonamento do conflito. Nós devemos ter uma posição que favoreça a mediação e a proteção da população civil, em primeiro lugar, e que promova o fim mais rápido possível das hostilidades que estão em curso. 

Existem tantos conflitos acontecendo, e esse da Ucrânia ganha uma atenção desproporcional em relação a outros. Tenho a impressão que esse conflito vai deixar um legado muito forte para a geopolítica. Fala-se que a China se beneficia dessa crise, na medida que, com o desvio da atenção dos EUA da contenção da China para a Rússia, existe também um desvio militar da Ásia para a Europa. Esse raciocínio faz sentido? A China sai ganhando com essa história?

Eu diria que o maior interesse estratégico da China está na estabilidade do sistema internacional e da economia global. Porque a China está vencendo a corrida econômica. A China já detém a maior participação do PIB mundial medido por paridade de poder de compra, do que os EUA e a União Europeia como um todo. 

O cenário de transição vem sendo favorável à China. Por isso, não acredito que a China tenha interesse na deflagração desse conflito. Acho inclusive que a China pode ser um fator mediador da paz muito importante nesse conflito. E esse é um papel que ela vai assumir na evolução seguida da crise nos próximos dias e semanas. Ela terá um papel importante de mediação do fim do conflito. 

Agora, do ponto de vista do interesse nacional dos EUA, eu me alinho com os pensadores realistas dos EUA, entre eles o próprio Kissinger, que são muito críticos dessa agenda de expansão da OTAN. O que eles apontam, inclusive o próprio George Kennan, que foi o formulador da política de contenção da União Soviética, dizia que a URSS era o inimigo principal da Guerra Fria. Na transição em curso na ordem mundial, o principal adversário dos EUA não é a Rússia, mas a China. Então, esses autores defendem que os EUA deveriam estar adotando uma outra política em relação a Rússia, que era uma espécie de diplomacia de ping-pong invertida. 

Nos anos 1970, a diplomacia do ping-pong, os EUA se aproximaram da China, na época do Kissinger, que era o secretário de estado do governo Nixon pra isolar a URSS. Isso teve da contraparte chinesa a formulação da teoria dos três mundos, que estabelecia o social-imperialismo soviético como inimigo principal. Estabeleceu-se uma aliança estratégica entre EUA e China, naquele momento, para isolar a URSS, que teve papel importante no enfraquecimento do campo socialista e eventual derrota da própria União Soviética.

Esses autores realistas acreditam que os EUA deveriam estar fazendo este movimento. A aproximação com a Rússia para isolar a China, e eles estão fazendo o oposto. Desse ponto de vista, há um ganho estratégico da China. Há um conjunto de tensões, inclusive de fronteira entre a Rússia e a China, que já deram no período soviético no início de uma guerra que foi contida no final dos anos 1960.

Pelo contrário, essa política de expansão da OTAN, uma política militar agressiva de potências que estão em decadência no sistema internacional, tem levado a uma aproximação estratégica crescente entre a China e a Rússia. Desse ponto de vista, a Rússia ganhou uma aliança estratégica muito mais firme que fortalece a China. 

Mas o interesse principal da China ainda é na manutenção da estabilidade internacional.

É claro que há o tema de Taiwan envolvido. Taiwan é reconhecida como território chinês. Aliás, no discurso, a China diferencia isso. Uma coisa é a intervenção da Rússia na Ucrânia, por razões de segurança nacional, em contraposição à expansão da OTAN e a ameaça que isso representa para a segurança russa. Outra coisa é Taiwan que é reconhecida por todos como integrante do território chinês. A China propõe uma reintegração pacífica de Taiwan a sua jurisdição. Taiwan está sob proteção militar dos EUA, e, portanto, uma situação bem mais delicada. 

Vamos ver como isso evolui. Essa sinalização agressiva da OTAN e dos EUA em relação à Rússia pode também se materializar no sudeste da China e em Taiwan, também, como um incremento de ações de provocação e agressão dirigidos contra a China.

Entrevista publicada originalmente no Portal Vemelho

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