A geração que se rebelou contra a herança maldita de Pinochet chega ao governo no Chile. Como primeiro ato oficial, o jovem chefe de Estado reúne-se com movimentos sociais e acena para uma profunda mudança da cultura política do país
Gabriel Boric chegou ao Congresso do Chile às 11h26, num terno sem gravata e de mãos dadas com a namorada, Irina Karamanos. Aos 36 anos, seria empossado presidente do Chile e se transformaria no mais jovem chefe de Estado da América do Sul. Diante da entrada principal, Boric fez um gesto no qual nem todos repararam: olhou para o teto do prédio do Congresso, em Valparaíso, e se deteve por alguns segundos. Foi como se tivesse que se convencer do que estava acontecendo.
Três meses antes, no domingo, 19 de dezembro, passava das cinco e meia da tarde e já havia saído a terceira parcial de votos na eleição presidencial. Os números confirmavam que Gabriel Boric, o candidato da esquerda, ex-líder estudantil, seria o próximo presidente do Chile. A população celebrava nas ruas e os jornalistas esperavam na saída do comitê. Simón Boric, 33 anos, timbre de voz idêntico ao do irmão Gabriel, apareceu nervoso diante das câmeras.
— Estou feliz — e sua voz ficou trêmula.
Mais tarde, numa terça-feira de março, a três dias da posse, Simón admitiu que naquele dia estava à beira das lágrimas, transbordando daquela felicidade palpável pelo sonho cumprido – o próprio ou o de alguém que amamos. Mas, além de felicidade, havia medo. O triunfo de José Antonio Kast, representante da extrema direita chilena, significaria o retrocesso em temas como políticas migratórias, o futuro do feminismo e questões LGBTQIA+, para citar apenas alguns.
— Gabriel saiu da outra sala e disse: “Quero dizer que estou preparado e que estamos preparados.” Ali nos chamou para que nos juntássemos: meus pais, Irina, meu irmão Tomás, nossas companheiras, e nos abraçamos em círculo — conta Simón, fazendo o gesto com os braços, como fazem os jogadores de futebol americano.
Na cabeça de Simón também passaram outras lembranças, muitas da infância em um território a 3 mil km de Santiago: Punta Arenas, a entrada do continente Antártico. Há uma foto de ambos, no meio da neve, em que Gabriel Boric abraça seu irmão num gesto protetor. Na escola, Gabriel também protegia o irmão mais novo, contou Simón, que se preparou para levar à transmissão de cargo uma bandeira de Magalhães, a região onde a família nasceu.
Gabriel Boric com o pai, a mãe e os irmãos Simón e Tomás — Crédito: Foto cedida por Simón Boric
Gabriel e seu irmão Simón quando crianças, na neve — Crédito: Foto cedida por Simón Boric
Na véspera da transmissão de cargo, no Centro de Santiago, havia carabineiros em cada esquina. Chegavam as primeiras comitivas internacionais.
Numa das mesas de um café do Barrio Bellas Artes encontrei Javier Velasco, 35, amigo de universidade de Gabriel Boric e militante, como ele, da antiga Esquerda Autônoma. Velasco, advogado, com mestrado em direito em UC Berkeley, também foi candidato a conselheiro regional pela Zona Norte de Santiago. Disse que ainda lhe parecia meio surreal pensar numa pessoa tão próxima de si com a faixa presidencial. Gabriel Boric foi seu confidente na Faculdade de Direito da Universidade do Chile. Velasco lembra que o amigo é um leitor voraz e que isso o formou como orador. Destacou sua capacidade de observação, algo que o converte em alguém muito lúcido. Tudo isso, em sua opinião, pavimentou seu caminho à presidência.
Poderia dizer muitas coisas do companheiro. Há lembranças de passeios, das ocupações… Mas decide contar primeiro como ambos, assim como o amor pela política, compartilham o gosto pela poesia.
— Algo muito característico de nossa geração é o romantismo, muito da América Latina. Era o Chile de 2004, um país que estava muito adormecido, e vivíamos a política com muita paixão — lembra.
Uma das lembranças que o fazem sorrir é a da ocupação da faculdade em 2009, com Gabriel Boric à frente, como presidente do centro de estudantes. Durou 42 dias, e seu objetivo era que a escola recuperasse seu papel na produção de conhecimento e na atuação política. E que, em definitivo, investisse em livros.
Eram de uma geração de transição. Por um lado, tinham o olhar bem posto no futuro; por outro, ainda eram jovens tentando se desvencilhar do medo dos pais da militância, dos enfrentamentos com a polícia. Pais que falavam de tiroteios e desaparecidos.
— Quando estive em Punta Arenas, uma vez a mãe do Gabriel me perguntou se eu não achava muito perigosa nossa militância em Santiago. Respondi que não, nem um pouco, mas agora, olhando para trás, sinto que a violência que vivíamos era muito invisível.
A mãe de Gabriel, María Soledad Font, é uma figura forte na família. Na véspera da posse, disse à Piauí que entregou à divindade o destino do filho.
— Eu pedi a ela que seja o melhor para o Gabriel e o melhor para o Chile. Aceitei tudo com humildade, não sei se com alegria ou com tristeza. Simplesmente aceitei.
Antes mesmo de tomar posse, Gabriel Boric teve sua primeira reunião, na manhã desta sexta, com dirigentes sociais de Viña del Mar, num aceno aos movimentos sociais e ressaltando a importância de “abrir as portas”, que é a marca que ele quer dar ao novo governo. No Congresso, as pessoas o aguardam com cartazes e bandeiras alusivas a ele e à Convergência Social. Muitos jovens e pessoas da terceira idade.
Enquanto isso, a televisão fala dos convidados. Longe de todo esse glamour também estão os marginalizados de sempre da quinta região, os moradores dos morros e das ocupações: Manuel Bustos e Felipe Camiroaga em Viña; Violeta Parra e Newen Curruf em Valparaíso. Para Javier, essa assimetria de poder se rompe quando “os meninos” — ou seja, “os estudantes” — entram no Congresso. Entre eles Camila Vallejo, uma das líderes dos protestos estudantis junto com Boric.
Para Velasco, é uma sinalização de mudança na forma de conduzir o país. Ele disse que, há alguns dias, quando Boric foi se despedir dos funcionários do Congresso, mostrou a ruptura dos esquemas formais e o fim da verticalidade.
— Eu trabalhei quatro anos no Congresso, e lá contavam que antigamente os deputados nem sequer cumprimentavam os funcionários quando entravam e tinham um elevador só para eles. Todos esses hábitos vão sendo removidos — diz.
A uma semana do fim do prazo de inscrição da candidatura de Boric, ainda faltavam 10 mil assinaturas para ele poder participar das primárias. Ao lado — e não atrás dele — estavam também mulheres como Antonia Orellana (atual ministra da Mulher), Javiera Cabello e Constanza Martínez, feministas e companheiras militantes.
Finalmente superaram o desafio e as assinaturas chegaram. Até mais que o esperado.
Às 12h30 desta sexta, Gabriel Boric recebeu a faixa presidencial e a medalha de Bernardo O’ Higgins, que o ungem como novo presidente do Chile. Levantou a mão esquerda ao término do hino nacional, e a mão direita pousou sobre o coração. Depois do hino, de máscara, abraçou os presidentes de Argentina, Alberto Fernández, Paraguai, Mario Abdo Benítez, Bolívia, Luis Arce, Uruguai, Luis Lacalle Pou e Equador, Guillermo Lasso. O vice-presidente Hamilton Mourão representou o governo brasileiro, e a ex-presidente Dilma Rousseff, o PT. Na posse estavam ativistas de direitos humanos, líderes de organizações não governamentais e representantes de povos originários, além da escritora Isabel Allende, sobrinha do presidente Salvador Allende, derrubado pelos militares em 1973. Uma neta de Allende, Maya Fernández Allende, assumirá a pasta da Defesa. O ministério de Boric terá mais mulheres que homens.
Na Avenida Morris, mulheres, adultos e jovens esperam Boric com bandeiras. Três adolescentes, duas garotas e um rapaz, parecem ansiosos e perguntam aos carabineiros se o novo presidente passará por ali no Ford Galaxie presidencial – pela primeira vez dirigido por uma mulher. Esperam como se se tratasse de uma banda de K-pop. Para muitos é rara a proximidade de Boric com os jovens; para outros é parte de sua juventude e de certo charme. Os adolescentes correm até a Avenida Argentina para esperá-lo.
— Ai, eu o amo! — diz uma jovem morena com cabelo liso.
Corre e se perde pela Avenida Morris.