As guerras hoje são prolongamentos racionais da globalização financeira, criando e extinguindo mercados
Na pequena aldeia de Zimmerwald, em setembro de 1915, em função do dissenso na Segunda Internacional Socialista sobre a Guerra de 1914, os partidos italiano e suíço convocaram uma Conferência para examinar a gravidade da crise mundial e buscar uma definição política estratégica sobre aquela hecatombe. Lênin, um dos líderes da social democracia ali presentes, defendia denunciar a guerra como “guerra imperialista” e chamar os proletários dos respectivos países em conflito, para negar-se a lutar e protestar contra a guerra.
Roberto Grimm era o líder centrista, majoritário na reunião, que queria saísse dali apenas uma proclamação pacifista, em abstrato, se opondo a uma manifestação concreta contra a guerra concreta, encobrindo sua posição “patriótica” com a defesa da reativação da Internacional Socialista. Lenin se opunha frontalmente, tanto ao pacifismo em abstrato de Grimm, como à negativa de condenar fortemente a guerra concreta, que abriria o sangrento Século XX.
Para Lênin era impossível conviver com correntes políticas complacentes com a carnificina em curso, que promoveram a chacina engendrada pelos governos nacionais, que disputavam espaços de dominação imperial, semeando os campos e as montanhas da Europa com milhões de cadáveres de todas as nações envolvidas no conflito. Com as bombas que moveram as placas tectônicas e os gases venenosos, que criaram as condições para a emergência do nazismo e a tragédia da Segunda Guerra Mundial.
Este momento da história europeia pode ser considerado um marco que materializou a diferença de princípios entre o socialismo e a democracia liberal-representativa – que está hoje, nos dois lados da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas não estão presentes, nos dois lados, nem Robert Grimm com seu pacifismo abstrato, nem Lênin com sua repulsa concreta às guerras imperialistas.
“A guerra é a continuação da política por outros meios” (Clausewitz) diz a definição celebrada, originária de quem se ocupava em pensá-la como ciência. Observá-la com rigor, todavia, não garante que – se a definição foi correta na época da sua emissão – possa ser repetida como verdade para todo o sempre. Nos diferentes ciclos históricos as guerras adquirem certos contornos, que exigem mudanças no juízo sobre a sua dinâmica. Nos tempos atuais, tudo indica que a política é que se tornou, predominantemente, “guerra por outros meios”.
São tempos curtos de guerra sujas e “clínicas”, apresentadas como “limpas”, que logo se insinuam como jogos virtuais. Nestes, a distância entre os beligerantes e o espectador não tem nexo temporal, no qual se visualiza a morte: tudo parece – ao mesmo tempo – ficção para o lazer e crueldades sem dor, que não nos aproximam do humano, que se torna apenas uma parte de um espetáculo lúdico e perverso.
A sucessão interminável das guerras se prolifera “de forma quase compulsiva, a despeito de que a maioria das sociedades humanas considera e defende a paz como um valor universal”. É o que torna a política – hoje – uma “guerra continuada”, assevera Fiori. Se é certo que “as guerras são uma catástrofe” e que, em princípio, constituem um “mal” para a Humanidade, também é certo que podem ser formalmente justas e defensivas, desencadeadas contra agressões injustas.
A busca da paz, em cada tempo concentrado de guerra, concretiza uma oposição de valores (agressão x paz – conquista ou defesa) que tornam a ação política das partes, na guerra, decisiva para conquistar o legado que advém da sua barbárie. O problema maior, porém, está no “motor” da guerra, como decisão política e militar que a justifique em termos civilizatórios: como ela se legitima para suscitar as emoções militantes que estão nos porões agressivos do inconsciente do povo?
Vem a pergunta: de onde os atores da economia global tiram legitimidade social e política para a suas decisões estratégicas?”, pergunta o Gilberto Dupas em Atores e poderes na nova ordem global (Unesp). E responde: a natureza do mandato desses atores vem da “racionalidade econômica e do sucesso comercial”. Concluo: as massas de soldados e os sentimentos da maioria, que compõem o cenário histórico da guerra, são sempre manipulados
A seguir, Dupas lembra – com Urlich Beck – que o mandato da economia global (ou da “democracia global”) “se baseia no voto econômico dos acionistas, que se manifesta pelas altas e baixas de ações nos mercados financeiros mundiais. Ao consumidor, diz ele, “só sobraria uma forma organizada de poder expressar o seu direito de voto, a saber, comprar ou não comprar”. O keynesianismo de Guerra de Reagan, que alimentou a economia americana no seu tempo, volta assim com força total no mercado planetário da morte.
Integrada por interesses muito concretos, nesta guerra o que interessa mais é “em que mercado estou lutando”, do que o “porque estou lutando”, ao contrário do que ocorreu nas duas Grandes Guerras do século passado. Com diferentes formas e argumentos, protagonistas de posições políticas até opostas entendem – de forma crítica ou apologética – que é necessário, “para maximizar o poder (dos acionistas), maximizar (também) as conexões entre capital e direito”.
Esta conexão imediata entre o capital e o direito exige rapidez dos atores políticos. Não só para promoverem, em cada país, reformas constitucionais e da legislação ordinária, para viabilizar as guerras entre os mercados, mas também para abrir brechas no Estado de Direito, através de decisões “de exceção”, mais moderadas ou radicais, para subordinar o Estado ao mercado.
Há um Direito Internacional que rege a guerra e protocolos que tentam humanizar o que é impossível tornar humano. O inumano exige, na sua facticidade, a morte de inocentes, a perversão do reconhecimento do outro só como desigual e não se comove com as fileiras fúnebres das crianças mortas, nem com a suprema degradação da natureza: a guerra estará sempre mais perto do “estado de natureza” do que do “estado humano”, pactuado pela ideologia da virtude e da justiça.
É neste contexto histórico, hoje, no qual não mais se opõem “blocos” comunistas reais de um lado e, de outro lado, imperialismos da expansão industrial, – neste contexto – é que as guerras assumem uma outra feição. Elas não são mais projetos nacionais ou internacionais em expansão, através de choques militares planejados, mas prolongamentos racionais da globalização financeira, criando e extinguindo mercados, dominando e liberando a reprodução virtual do dinheiro especulativo que os alimenta. E em todos os mercados morrem jovens e crianças e viceja a hidra do fascismo!
por Tarso Genro | A Terra é Redonda
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