Considerações sobre a experiência da vida moderna na obra de Walter Benjamin
O espetáculo moderno é um canto épico, mas não canta – como a Ilíada – os homens e suas armas, e sim a mercadoria e suas paixões, imbuídas de animismo, totetismo e fetichismo. É Karl Marx que assinala a passagem da religião à ideologia desencantada do mundo. Mais: a constante criação de novas necessidades, que geram pseudoprazeres e, com isso, ruínas econômicas, de modo que a libido está em toda parte onde possa haver consumo, menos no sexo. Marx chega mesmo a afirmar que “a mercadoria ama o dinheiro, motivo pelo qual lança olhares amorosos para o consumidor”. Daí para prescindir da realidade – para romper com ela, até – é um passo. Vige, então, o mundo da aparência, consumado.
Nisso, René Descartes, considerado pai da Modernidade, seguia em sentido oposto. Tome-se como exemplo a bela e famosa página em que descreve a cera que derrete. Ela que ainda conserva algo “do doce mel da colmeia e do aroma das flores”. Do contrário, a mercadoria espetacularizada, desprovida de origem, originalidade, natureza, identidade, subjetividade, consciência, pois, com a técnica, o que prevalece é a profusão de imagens, cuja origem deve à iconofilia bizantina dos séculos VIII e IX.
Evidente que, nesse sentido, a Modernidade não é cartesiana, tampouco, aliás, platônica. Afinal, tais correntes filosóficas caracterizavam-se exatamente por combater os simulacros. Assim, são as sociedades em que as mercadorias estão encobertas, dissimuladas, esquecidas, que levam o nome de “sociedades do espetáculo”.
Daí o surrealismo da cidade já no início do século XX, como nota Walter Benjamin sobre Paris, em que “faz tempo a hera das folhas doutas embaralham-se com o cais do rio. “Paris” – enfim – “é a grande sala de leitura de uma biblioteca que atravessa o Sena. Por isso, a importância de interpretar sua psique, em que erotismo e fetichismo confundem-se.
Nisso, Benjamin é literal. Tanto que emprega o método de Sigmund Freud de A Interpretação dos sonhos” para cumprir tal tarefa, em que pesam os monumentos como símbolos mnemônicos – e “histéricos”, uma vez que eles expõem a cidade em suas formas passadas que, materializadas nas pedras, apresentam novos presentes. Mas não tão facilmente, uma vez que disso decorrem “recalques antigos”. Eis, então, a luta entre o mito substancial e o efêmero, o que não implica, para Benjamin, que Paris seja menos do que um lugar absoluto ou uma obra de arte total – em que tudo é artifício e irrealidade, uma vez que sustentada pelo capital, que, sem passado nem futuro, sustenta-se, por sua vez, nas costas de classes sociais cujas horas são mortas.
Nesse sentido, “é interessante notar que a teoria marxista contemporânea frequentemente concorda com a economia dos habitantes das ilhas Fiji, que usam uma só palavra para referir-se tanto a trabalho quanto a ritual” – escreveu Marshall Sahlins.
O espetáculo moderno, escreveu Guy Debord, é um canto épico, mas não canta, como a Ilíada, os homens e suas armas, e sim as mercadorias e suas paixões.[1] Animismo, totemismo, fetichismo enfeitiçam as mercadorias. Analisando a migração do conceito, da história da religião para a ideologia contemporânea, Marx não só compara o fetichismo da mercadoria ao fetichismo religioso, como revela a permanência do encantamento do mundo nos valores religiosos: os homens os produzem e adoram, atribuindo poderes sobrenaturais a objetos materiais. Assim, nas sociedades ditas primitivas — como as da Melanésia —, o mana é uma força imaterial, sobrenatural e impessoal, espécie de “fluido invisível” ou de aura; concentra-se em determinadas pessoas e coisas, transmitindo-se a objetos e, se tratado inadequadamente, pode produzir efeitos negativos e desagregadores que pedem sacrifícios. Por isso ao mana associa-se um tabu, e a este, a transgressão.
A mercadoria é o totem capitalista ao qual o indivíduo se sacrifica: “Toda pessoa especula sobre a possibilidade de criar no outro uma nova necessidade, a fim de obrigá-lo a um novo sacrifício, de impingir-lhe uma nova dependência, de induzi-lo a uma nova forma de prazer, levando-o assim à ruína econômica”.[2]
Na pessoa do capitalista “o prazer submete-se ao capital, o indivíduo que usufrui, àquele que capitaliza”.[3] A categoria do fetichismo é o centro da crítica de Marx aos fundamentos das sociedades capitalistas.[4]
A “religião capitalista” inscreve-se em meio aos crescentes processos de secularização, demitização, desencantamento do mundo — que, em sua radicalização, atinge não apenas representações religiosas, mas também as ideológicas consideradas seu prolongamento. O capitalismo é uma religião profana, pois tem seus objetos de contemplação e de desejo — as mercadorias e suas imagens; a libido, que está em toda parte, exceto na sexualidade, como já o notara Barthes. Isto significa que a tecnologia da sensualidade está a serviço da “estética da mercadoria”,[5] estética que deve produzir fascinação, que arrebate as sensações dos “indivíduos” assim mobilizados.
A manipulação dá-se pela promessa estética do valor de uso, da utilidade da mercadoria, por um lado, e da beleza agregada a serviço da realização do valor de troca, por outro, a fim de suscitar o desejo de posse. Aquele que compra pretende suprir uma necessidade, sendo-lhe o objeto, então, útil; mas, no que diz respeito ao valor de troca, a finalidade desse objeto é alcançada quando se transforma em dinheiro. A mercadoria como valor de troca representa e realiza a diminuição qualitativa e quantitativa da utilidade das mercadorias, o que vem a ser compensado por seu embelezamento e sensualidade: “A mercadoria”, escreveu Marx, “ama o dinheiro” ao qual ela “acena” com seu preço, lançando “olhares amorosos” ao consumidor.[6]
Essa inversão, na qual os humanos imitam os jogos amorosos dos objetos materiais, faz também com que as pessoas retirem sua expressão estética das mercadorias. Estas, desde os produtos de embelezamento corporal até os modelos da moda, por meio da publicidade, induzem comportamentos, bem como são coletivamente adotadas. Por um “amor de transferência”, o charme da manequim magicamente migra para aqueles que imitam seu estilo. Benjamin considera essa empatia com a mercadoria, escrevendo: “Se a mercadoria tivesse aquela alma de que Marx fala, ocasionalmente, em tom de brincadeira, ela seria a mais empática já encontrada no reino das almas. Pois teria de ver, em todos, o comprador em cuja mão e em cuja morada gostaria de ajeitar-se”.[7]
Ansiando pelo dinheiro, a mercadoria é criada à imagem da ansiedade do público consumidor, oferecendo-lhe o que espera: a ideologia do prazer pelo consumo, sem o que não suscitaria o sentimento de felicidade pelo consumo. Para tanto, seu “conteúdo de realidade” torna-se cada vez mais sutil, chegando a prescindir da realidade, e mesmo rompendo com ela.
O mundo contemporâneo é o mundo da aparência, inteiramente realizado, o que se atesta na separação entre mercadoria e publicidade, a coisa e sua imagem, o pré-prazer prometido pela imagem é dissociado da posse real. Desfazem-se da maneira mais extrema os fundamentos do mundo moderno, elaborados por Descartes, cujas Meditações constituem o esforço de separar a verdade do erro, o conhecimento da ilusão, no esforço em desvincular-se do sensível e de suas imagens enganadoras, como se lê na Segunda meditação, quando o filósofo se dedica a analisar o pedaço de cera que acaba de ser retirado de uma colmeia: “Não perdeu ainda a doçura do mel que continha, ainda retém algo do aroma das flores de que foi produzido, sua cor, sua figura, sua grandeza são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, algum som produzirá […]. Mas eis que o aproximamos do fogo: o que restava de sabor desfaz-se, o odor se dissipa, sua cor se altera, sua figura se modifica, […] mal o podemos tocar e, se nele batermos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação?”[8]
Se a cera mantém sua identidade primeira, é possível sabê-lo pela razão, e não pelos sentidos. A cera pode tomar diversos disfarces, múltiplas formas sensoriais. Também quando se observa pela janela um passante vestido com seu casaco e chapéu: o que nos garante não ser isso um simples robô com roupas de homem? Descartes procura mostrar que tão-somente os fenômenos de consciência são certos, qualquer conteúdo sensível pode ser falsificado. A intenção cartesiana é emancipar o mundo, das ilusões, o que culmina, não obstante, em uma separação perversa: domínio da natureza por meio da ciência, pelo pensamento algébrico-matemático, por um lado, e permanência da ilusão, por outro.
É o que se passa com a mercadoria separada de sua imagem. A mercadoria atesta o fim do culto à origem, ao original e à originalidade, pois se multiplica ao infinito pelo artifício da produtividade técnica, fim das noções de natureza e natural, da filosofia da identidade, da subjetividade, da consciência, substituídas pela proliferação de imagens. De certo modo, a modernidade é herdeira da querela entre iconófilos e iconoclastas, que, entre os anos de 726 e 843, dominou o Império Romano do Oriente.
Essa querela se deu entre os iconoclastas, os quais recusavam as imagens em nome da pureza da tradição cristã — para eles, a representação do Cristo não era apenas inadequada, mas uma blasfêmia —, e os iconófilos, que reconheciam no ícone um conteúdo espiritual que não é o Outro do original, mas o “próprio original”. Segundo essa corrente, a imagem é evocação e médium por meio do qual Deus se revela no mundo sensível, o original sendo, pois, passível de evidência sensível. A imagem, para seus seguidores, consiste em uma teologia visual em que se conjugam o visível e o invisível. Sendo, assim, a imagem um excelente veículo para a fé, deve ser integrada a ritos e objetos de culto já existentes.
A modernidade não é nem platônica nem cartesiana. Se, para o platonismo, o inimigo do original é a cópia, a falsificação, o simulacro apenas confirma o estatuto primeiro do original, sublinhando sua precedência autêntica diante de imitações sem valor ontológico ou metafísico. Assim também, as disputas dos especialistas para decidir se algo é falso ou autêntico apoiam-se nessa hierarquia de valores, cuja origem recua a Platão. Quanto ao mundo contemporâneo, a mercadoria separa-se de sua imagem, assim como a embalagem de seu “corpo”, vindo a ser mais importante que ele. A mercadoria está encoberta, dissimulada ou esquecida atrás das imagens espetaculares. Às sociedades em que isto acontece deu-se o nome de “sociedades do espetáculo”,[9] para indicar sua natureza alucinatória, por não se ligar ao real, e sim ao “hiper-realismo”, cuja pretensão é ser mais real que o real, ou mesmo substituí-lo. Mas, ainda aqui, não se escapa do campo da metafísica, pois permanece a assunção de um original, de uma verdade substancial, encoberta, dissimulada ou esquecida por detrás das imagens.
O mundo contemporâneo prescinde de uma verdade substancial, o que se revela na publicidade ou nas embalagens das mercadorias: “A embalagem não é pensada apenas como proteção contra os riscos do transporte, mas é um verdadeiro rosto a ser visto pelo comprador potencial, antes de seu “corpo”, e ela o envolve, transformando-o visualmente, a fim de correr ao encontro do mercado e de sua mudança de forma […]. Depois que a superfície [da mercadoria] se liberta, tornando-se uma segunda [pele], frequente e incomparavelmente mais perfeita que a primeira, desprende-se completamente, descorporifica-se e circula com rapidez pelo mundo inteiro como se fosse o espírito colorido da mercadoria […]. Ninguém mais está seguro contra seus olhares amorosos”.[10]
Walter Benjamin, por sua vez, considera essa figura moderna do erotismo, na expressão“sex appeal do inorgânico”. Sua história primeva encontra-se nas exposições universais do século XIX, em particular, a do ano de 1855 em Paris, cidade-fetiche, onde se entrecruzam o fenômeno religioso da superstição e o erótico, o desejo de posse da mercadoria e o amor de transferência de suas supostas qualidades e propriedades ao consumidor. Além disso, o filósofo reconhece uma continuidade da religião no culto contemporâneo às imagens e na adoração das mercadorias.
As Exposições Universais de Londres e Paris, que receberam, durante um ano, mais de 50 milhões de visitantes, manifestaram uma nova peregrinação, diversa daquela que levava pessoas a acorrerem a lugares sagrados. Em Paris, capital do século XIX, Benjamin escreve que as exposições universais são os centros de peregrinação das mercadorias-fetiches.[11]
Abandonando o recinto das igrejas, o sagrado expõe-se nos imensos “palácios do efêmero” — os Palácios de Cristal construídos para a glória dos deuses modernos: a mercadoria, a novidade, a máquina, o progresso. Mas é em Paris que a cidade acede a essa consciência e à aventura da constituição dos sentidos inéditos do mundo das coisas. Com efeito, há na mercadoria fartamente exposta um apelo ambivalente: sua estética incita tanto à compra quanto ao furto, pois o sinal de seu sucesso não se mede apenas pelo volume de vendas, mas também dos roubos: “O impulso de pegar é fortemente provocado pela arrumação astuciosa das mercadorias em vitrines e prateleiras, de tal modo que um cliente mal consegue passar direto. A mercadoria deve ser assim ornamentada a ponto de o cliente sentir vontade de roubá-la”.[12]
Walter Benjamin, à maneira do arqueólogo, procura o inconsciente da modernidade e o do século XIX numa investigação a partir de suas construções arquetípicas, as passagens ou arcadas, galerias construídas em ferro e vidro, pelas quais a multidão se desloca. O espetáculo das multidões que assim se movimentam, expostas como em vitrines, pela primeira vez se oferece à leitura e à legibilidade, uma vez que foi o século XIX que produziu uma literatura em que a personagem principal é a cidade de Paris.
Seu aspecto moderno, surrealista, é notado em uma carta a Gershon Scholem, de 1926, escrita enquanto se dedica à tradução do segundo tomo de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, para o alemão. Benjamin reconhece nos interstícios da “linguagem secreta” de seus salões, no “jargão de classe” ininteligível aos estranhos, o elemento pré-surrealista da cidade, onde se impõe a verdadeira fisionomia surrealista da existência. Surrealismo: desmontagem de um todo uno, do qual cada peça é elemento de um outro texto, novo e original. Assim, apresentando-se na personagem do bibliômano vindo consultar in loco catálogos e livros na Bibliothèque Nationale, dos quais colhia citações, Benjamin faz a mania do leitor compulsivo abranger, através da irradiação literária da cidade, o conhecimento de Paris: “Há séculos”, anota, “a hera das folhas doutas embaralha-se com o cais do rio. Paris é a grande sala de leitura de uma biblioteca que atravessa o Sena”.[13] A legibilidade da cidade é também a de sua psyche. Modernidade complexa, a de Paris, que reúne erotismo e fetichismo.
Para compreendê-la, Benjamin percorre a literatura sobre Paris, valendo-se dos procedimentos de Freud em sua interpretação de sonhos, a fim de decifrar nesses escritos a experiência que contêm. A interpretação dos sonhos, de Freud, antecipa o “método” benjaminiano. Com efeito, Roma e Paris estão presentes nos dois escritos. São cidades que o detetive do inconsciente deseja, com ardor, conhecer, em que realidade e desejo mesclam-se nos sonhos em que ambos se manifestam – e a realização do sonho de ir a Paris aparece a Benjamin como a possibilidade de realização de outros desejos. É a cidade como espaço de coexistência de diferentes épocas e do passado objetivado que se torna o modelo da concomitância subjetiva de épocas na recordação.
Se Pompeia é o paradigma da cidade soterrada, fixada em um agora passado, Roma é, para Freud, a cidade sob o signo da rememoração, cujo presente é invadido pelo passado. Também para Benjamin, as edificações comemorativas, os monumentos que ornamentam a cidade são símbolos mnemônicos, mas também símbolos “histéricos”: a cidade como sobrexposição de diversas épocas mantém o passado materializado na pedra que faz surgir seu passado em presentes novos. Sendo assim, a cidade é a imagem da estratificação da consciência, aí a cristalização do passado emerge do esquecimento na consciência do presente.
Mas, diferentemente dos signos mnemésicos da cidade, tais estratos não apenas emergem à consciência como também a subjugam. Por sua vez, Freud escreve que, em Roma, reminiscências das ruínas integram o presente; o que hoje ocupa antigas construções são ruínas, mas não ruínas de si mesmas — templos e edifícios daquelas épocas —, e sim de renovações feitas em épocas posteriores, depois de incêndios e destruições. Esses vestígios da Roma antiga aparecem disseminados e sobrepostos à cidade, devendo ainda haver algo escondido em seu subsolo ou sob construções modernas. Eis o modo em que se conservou o passado em lugares como Roma.[14]
A Paris benjaminiana, como a Roma de Freud, com suas camadas arqueológicas, é um ente psíquico, dotado de passado, no qual tudo o que um dia nasceu perdura ainda. Mas essa coexistência nada tem de simples: há um recalque do antigo. Se, na cidade, uma outra coisa vem ocupar um mesmo lugar ou sobrepor-se no presente, o recalque psíquico é dinâmico, o presente luta com o passado para ocupar seu lugar. O recalcado converte-se em algo mítico. Ao mito substancial dos gregos, ligado ao lugar solitário e eminente de um templo, contrapõe-se, na grande cidade, o mito do efêmero: o presente em sua cotidianidade, impermanência e banalidade; mas, também, abre-se ao imemorial.
A própria escolha da palavra “passagem”, para as narrativas de Benjamin sobre Paris não é fortuita: passo, passar, passado, passante, passageiro (como substantivo e adjetivo); mas também maison de passe, a cujos segredos a passagem oferece um acesso discreto, secreto. A cidade de Paris é um lugar absoluto, é obra de arte total. Nela nada resta de natureza, tudo é artifício, espetáculo, irrealidade. Nela, o unheimlich é o choque do retorno do recalcado ou “inibido” (Hemmung) que constitui seus fantasmas. Quando Marx escreve que, pelo fetichismo da mercadoria, as sombras perdem seus próprios corpos, dada a evanescência do valor de uso, só resta o valor de troca, sombra que perdeu seu próprio corpo; só resta o trabalho morto, coagulado em um objeto, como o passado morto-vivo cujos fantasmas vêm importunar o cérebro dos vivos.
O passado reprimido, mas não esquecido, permanece submerso. É assim que o filósofo leitor de Baudelaire procura compreender estes versos do poeta: “fervilhante cidade, cidade cheia de sonhos”. Aí espectros agarram-se ao passante em plena luz do dia: ela é o lugar da presença aguda do real e da perda; e suas brumas conferem-lhe aspecto fantasmal. Aparição, espectro ou fantasma são ameaçadores, pois bruscamente rompem o familiar e conhecido, fazendo com que as identidades vacilem. Categorias como espaço e tempo, sujeito e objeto, tornam-se incertas, e estes não mais se beneficiam da estabilidade que seu conceito prometia.
O flâneur solitário naufraga na histeria, pois não se diferenciam a irrupção do fantasma e o mito. Sem limites categoriais, a realidade carece de garantias, torna-se estranha a si mesma, procurando apagar a cidade passada, erigindo imperiosamente sua atualidade sobre ruínas. O unheimlich é, aqui, um dépaysement com respeito à linearidade do passado, é o sentimento do perturbante, advindo dos fragmentos do tempo. É também a memória involuntária proustiana, imagem que cintila como o clarão de um raio, de que fala Benjamin nas teses Sobre o conceito de história.[15] Ele se choca contra a ideia fixa, a compulsão à novidade, à repetição do mesmo, contra o novo tempo da economia de mercado e da experiência na metrópole. O unheimlich é um choc a indicar que aquele por ele surpreendido encontra-se diante de um perigo para o qual não está preparado. O que no plano individual ocorre como delírio irrompe na sociedade no plano da ideologia, pois esta é resistente à crítica lógica.
O unheimlich é o choc nas metrópoles modernas, a realidade que se transforma em imagem fantasmática, sem silhueta definida, como paisagem em um inverno tomado por brumas. Imersas nelas, as casas parecem mais altas e alongadas do que são, podendo ainda enganar o passante como se fossem o cais seguro de um rio. Não se separam sonho e realidade: “A submersão do espaço da cidade na bruma, que apaga contornos e categorias espaciais, é ela mesma a imagem evocadora da submersão do espaço psíquico interior: cabe ao Eu permanecer forte, no esforço de uma presença de espírito heroica a ponto de tornar-se histérica.[16]
Também a descoberta de catacumbas sob as ruas de Paris deve ter impactado seus habitantes, tornando-os conscientes de que se deslocavam por sobre o imenso cemitério que se encontrava sob seus pés.
Foi Nadar, de quem Benjamin trata no livro Pequena história da fotografia,[17] quem empreendeu, pela primeira vez, fotografar com luz artificial as catacumbas de Paris. Assim, ao lado de sua vocação documental, a fotografia foi uma maneira de explorar o invisível ou os fenômenos fugazes, pois ela interroga uma temporalidade intermediária, um “entre-dois”,[18] que é uma espécie de metempsicose, pois os mortos, de vez em quando, visitam os vivos.
A lógica das mercadorias e suas hierarquias desrealizam também o tempo: as horas dedicadas ao capital não têm passado nem futuro, são horas mortas. A ele, Benjamin contrapõe o flâneur, o herói da modernidade: ocioso, deixa-se levar pela multidão e pelo ritmo das tartarugas: “Havia (por volta de 1840) o passante que se perde na multidão, mas também o flaeur, que precisa do espaço livre e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão social do trabalho […]. Nessa época, por algum tempo, foi de bom-tom levar tartarugas para passear pelas passagens; de bom grado o flâneur deixava que elas lhe prescrevessem o ritmo do caminhar”.[19]
A sociedade da abundância que promete luxo e volúpia por meio do consumo pode encontrar na mercadoria e suas imagens a possibilidade de desfetichização.[20] Assim, se a prostituta é, para Benjamin, a igual título que para Marx e Engels, a apoteose da identificação entre o amor e a mercadoria, a possibilidade de uma vida “sem tempos mortos” remete ao imaginário coletivo que reconhece no feminino a exigência de sua realização, no universo da mulher, “tout n’est que beauté, luxe, calme et volupté”. Benjamin, leitor de Baudelaire, faz surgir do Mal suas “flores”, da “danação”, a salvação da vida moderna. Assim, Safo de Lesbos traz o que o amor pode trazer: ele é uma “contra-religião”, uma revolução.
Para Benjamin, como para Baudelaire, a mulher é o artifício, o belo é pura ilusão; na maquiagem — e Baudelaire faz seu elogio —, as mulheres encontram práticas para consolidar e divinizar sua “frágil beleza”. Por sua toilette, parecem mágicas, como também pelo refinamento de sua maquiagem, de suas atitudes, mas, sobretudo, pelo olhar que lhes confere um charme pela aura que suscita: “Não há olhar que não espere resposta do ser ao qual se destina. Quando esta espera é compensada (por um pensamento, por um esforço voluntário da atenção), a experiência da aura conhece então a plenitude […]. A experiência da aura repousa, pois, na transferência […]. Assim que se é ou se crê olhado, levantamos os olhos. Sentir a aura de algo é conferir-lhe o poder de levantar os olhos”.[21]
Tanto Benjamin quanto Baudelaire dissociam a beleza do bem e fundam-na, por assim dizer, no mal, na “artificialidade” do moderno, desfazendo a conotação de falsidade que lhe era atribuída pelo “belo clássico”. O belo moderno não procura esconder seus artifícios, e a mulher lhe faz apelo para parecer mágica. E a moda lhes oferece um repertório de signos arbitrários; a moda é, a um só tempo, artificial e sobrenatural, e é um ritual fetichista. Transforma a natureza em artifício e artefato dotado de encantamentos e feitiço.
Ao mesmo tempo, a moda transforma a mulher em “estátua”, em um “ser divino e superior”, mármore, bronze ou pedra. Perturbadora e fantasmagórica, investida de poderes mágicos, a mulher realiza a crítica e a emancipação com respeito ao mundo do espetáculo e seus “valores”. Utopia do feminino, o universo das passagens recupera à sua maneira o mundo épico, Safo, as Sereias. Se Ulisses, na Odisseia, renunciou à sua sedução — e ao princípio do prazer —, o que fez dele o antagonista de uma realidade ontologizada, Benjamin e Baudelaire desejam, ao contrário, decifrar o que desejam com seu canto.[22]
*Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp).
Publicado originalmente no site ArtePensamento-IMS.
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