História Fake: gestão Bolsonaro celebra golpe de 64 pelo quarto ano seguido

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Sob Bolsonaro, pasta oficializou política de celebrar a data e já disse que golpe militar ‘salvou’ o Brasil

O governo Jair Bolsonaro, pelo quarto ano seguido, usou o 31 de março, data do golpe de 1964, para defender o regime militar, que fechou o Congresso, acabou com as eleições diretas para cargos majoritários, censurou a imprensa e torturou e matou opositores.

Neste ano, o Ministério da Defesa afirmou em uma ordem do dia – texto para ser lido para a tropa – que o golpe foi um “marco histórico da evolução política brasileira”, e que a história “não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização”, citando o medo de que um “regime totalitário” fosse implantado no país, então governado pelo presidente João Goulart, democraticamente eleito.

A nova ordem do dia descreve o regime militar de forma falsamente idílica, como “um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político”. O texto é assinado pelo ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, cotado para ser candidato a vice na chapa de reeleição de Bolsonaro.

A visão romantizada sobre a ditadura é uma constante na carreira política de Bolsonaro, que na campanha eleitoral de 2018 disse que desejava um Brasil “semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”, mas não condiz com a realidade. Naqueles anos, apesar do chamado “milagre econômico” de 1968 a 1973, o Brasil conviveu com alta prevalência de miséria e fome, péssimos índices de desenvolvimento social, criminalidade crescente nos centros urbanos, aumento da desigualdade e queda do poder aquisitivo dos trabalhadores.

Reorientação do governo

A ditadura militar durou até 1985, e mais de 8 mil indígenas e ao menos 434 suspeitos de serem dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram forçadamente durante o regime, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade. Estima-se ainda que dezenas de milhares de pessoas foram arbitrariamente detidas e torturadas.

Após a redemocratização, o Brasil fez um tímido movimento de reparação às vítimas. Indenizou os perseguidos pelo regime, em processo iniciado na gestão Fernando Henrique Cardoso, e durante o governo Dilma Rousseff organizou a Comissão Nacional da Verdade para esclarecer o período.

O processo de justiça de transição no Brasil, porém, que busca apurar os fatos ocorridos em ditaduras, reparar danos causados às vítimas e pacificar a sociedade, ficou muito atrás do de vizinhos latino-americanos, como a Argentina e o Chile, e não puniu agentes do Estado repressor.

A eleição de Bolsonaro reverteu essa tendência. Menos de três meses depois de assumir o Planalto, Bolsonaro mostrou que usaria o cargo para alterar a forma como o Estado brasileiro vinha lidando com o regime militar, e determinou ao Ministério da Defesa que organizasse em 2019 comemorações para marcar o 31 de março. Criado em 1999, o ministério nunca havia oficialmente celebrado a data.

“O Exército nos salvou”

Após a ordem de Bolsonaro, o Ministério da Defesa, então sob o comando do general Fernando Azevedo e Silva, distribuiu para os quartéis uma ordem do dia que apontava que as Forças Armadas em 1964 haviam atendido ao “clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira” para assumir um “papel de estabilização”.

No dia da efeméride, o Planalto distribuiu um vídeo que celebrou o golpe e elogiou o papel das Forças Armadas na ação. “O Exército nos salvou. Não há como negar. E tudo isso aconteceu num dia comum de hoje, um 31 de março”, afirmou o narrador do vídeo, que relatou a fase anterior ao golpe como “um tempo de medo e ameaças, ameaças daquilo que os comunistas faziam onde era imposto sem exceção: prendiam e matavam seus próprios compatriotas”. “Foi aí que o Brasil lembrou que possuía um Exército nacional e apelou a ele.”

O mesmo vídeo havia sido publicado no Twitter por um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro. “Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares de 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”, escreveu o deputado.

O uso do termo golpe para definir os acontecimentos de 1964 é majoritário entre os historiadores. O termo “revolução” era usado pelos militares e civis que conduziram o golpe, até como uma forma de tentar pintar a ruptura institucional como um ato legítimo. Hoje em dia, o uso de “revolução” ou “movimento” para se referir ao golpe continua sendo associado a defensores do antigo regime militar.

A inciativa do governo em 2019 provocou reação do relator da ONU para a promoção da verdade e da justiça e reparação, o argentino Fabian Salvioli. Ele afirmou que celebrar um regime que cometeu “crimes horrendos” era “imoral e inadmissível”, e pediu que o governo mudasse sua posição, sem sucesso. “Tentativas de revisar a história e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo”, afirmou.

A Defensoria Pública da União chegou a pedir na Justiça em 2019 que o governo fosse proibido de comemorar o golpe de 1964 e obteve uma liminar favorável em primeira instância, que depois foi cassada em segunda instância.

“Marco para a democracia”

No ano seguinte, o Ministério da Defesa novamente divulgou em 31 de março uma ordem do dia comemorando o golpe militar, desta vez mais incisiva, alegando que “o movimento de 1964” era “um marco para a democracia brasileira”.

O texto também enfatizou que, na época do golpe, “ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados”, e que “as instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder”.

Essa versão atende aos anseios de militares de alta patente da Forças Armadas brasileiras, que entendem que os governos do PSDB e do PT teriam distorcido os motivos que levaram ao golpe e minimizado o que eles interpretam como risco de que o Brasil teria um regime comunista sob o então presidente João Goulart.

“Pacificação do país”

Em 2021, a Defesa, agora sob o comando de Braga Netto, afirmou em sua ordem do dia de 31 de março que o golpe de 1964 era motivo para ser celebrado. No texto, o ministro disse que os brasileiros saíram às ruas, apoiados pela imprensa, lideranças políticas e empresariais e pela igreja, o que teria resultado no que ele chamou de “movimento de 31 de março de 1964”. Braga Netto alegou que as Forças Armadas teriam assumido a “responsabilidade de pacificar o país” para “garantir as liberdades democráticas”.

O texto pula de 1964 para 1979, ignorando a brutalidade ocorrida entre essas duas datas, e ressalta a aprovação da Lei da Anistia, que teria consolidado um “amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia”.

O documento também ignora as ditaduras, apoiadas ou toleradas pelos Estados Unidos, que se instauram em vários países latino-americanos sob a alegação desta suposta ameaça. Apenas na Argentina, o regime militar assassinou e fez desaparecer 30 mil membros da oposição.

Voz do Pará com informações DW

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