A segunda revolução chinesa

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Os acontecimentos, suas consequências e as lições estratégicas da segunda revolução chinesa

Em 1928, Trotsky, a essa altura já expulso, desde 1927, do Partido Comunista (PC) da URSS, abre o debate de estratégias sobre a experiência da chamada segunda revolução chinesa, trazendo luz à discussão acerca da caracterização da burguesia dos países coloniais, a inter-relação entre as classes atuantes, o próprio caráter de classe do processo revolucionário chinês, bem como sobre os erros estratégicos e táticos levados à frente pelo bloco Stalin-Bukharin, então hegemônico na condução da política da Terceira Internacional no período.

Tal debate se encontra, em grande parte, na compilação de artigos, cartas e folhetos, presentes no livro chamado, em edição brasileira, Stalin, O grande organizador de derrotas – A 3ª Internacional depois de Lênin.

Os acontecimentos, suas consequências e as lições estratégicas da segunda revolução chinesa são abordados como parte da crítica geral que Trotsky faz ao projeto de programa da Internacional Comunista (IC), apresentado algumas semanas antes do sexto congresso da IC.

Tal crítica foca tanto nos pontos programáticos presentes no projeto, como, principalmente, nas experiências concretas da luta de classes dos anos anteriores, as quais deixavam evidentes os equívocos de análise e consideração, pelo bloco burocrático, à frente do aparato da IC e do PC da URSS.

As experiências históricas de zigzags entre o oportunismo e aventureirismo da burocracia, evidenciados pela derrota da revolução alemã em 1923, graças à capitulação dos comunistas alemães aos socialdemocratas de esquerda; pela traição do chamado “Comitê anglo russo”, em 1926, com a adaptação insistente dos comunistas ao bloco oportunista com os liberais trabalhistas do chamado “Conselho Geral” que, por fim, traíram, no momento de progressão do movimento revolucionário, as greves mineiras e a greve geral inglesa; e, finalmente, pela sequência de derrotas da segunda revolução chinesa, de 1925 a 1927, promovidas pela orientação menchevique da IC de submeter os comunistas e operários chineses, organizativa e politicamente, ao Kuomintang, o partido da burguesia “nacionalista”, minando a independência e atando as mãos do proletariado chinês, constituem o cerne da reflexão estratégica exposta por Trotsky nesta obra.

Deste conjunto, focaremos no problema estratégico enfrentado pelos revolucionários na China de 1925 a 1927 abordando, também, a experiência bolchevique, tal como apresentada por Lênin e Trotsky, sobre a relação das bandeiras democráticas e a busca pela constituição de um poder dos trabalhadores.

A China antes da revolução nacionalista (Xinhai) até a segunda revolução: os antecedentes

Desde o século XVII, o controle do território chinês recaía sob as mãos da chamada dinastia Qing, de origem manchu, povo nômade originário da região da Manchúria no nordeste da Ásia, que se alçou ao poder após derrubar a anterior dinastia Ming.

Seus 268 anos de domínio (1644-1912) foram marcados por uma administração rígida e corrupta dos assuntos da sociedade, bem como por uma crescente onda de revoltas, dominação estrangeira e miséria generalizada da vida da maioria de sua população.

É durante o governo Qing que ocorrem as duas “guerras do ópio”, como consequência da pressão estrangeira ocidental, principalmente inglesa, francesa e alemã, pela disputa e controle do, então restrito e resistente, mercado chinês, seus portos e, por fim, de territórios inteiros.

Já no século XIX, a subordinação chinesa aos países ocidentais era tamanha que, como reparação após a derrota dos Qing, nas guerras mencionadas, porções inteiras de seu território foram entregues como “concessões” territoriais em que o império abdicava ao direito de exercer qualquer tipo de soberania.

Entre 1876 e 1879, nas províncias de Hebei, Shandong e Shanxi ocorreu a chamada “Grande fome chinesa do norte”, em que, como consequência de uma grave seca resultante do, hoje conhecido, fenômeno El Niño se deu a perda das colheitas por anos sucessivos, levando a morte de 9 a 13 milhões de chineses.

Por conta dos conflitos, como a “Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-95)”, cuja derrota chinesa custa ao império a posse de Taiwan e a influência sob a Coréia, além da fome, milhões de camponeses protagonizam ao longo do século 19 ondas de migração para distintas regiões do império e, também, para outras nações.

A grande penúria e miséria da maioria da população camponesa, com uma renda per capita baixíssima, combinadas com os privilégios acumulados pelos estrangeiros e suas companhias, além do controle territorial direto exercido por suas tropas em algumas regiões importantes, fortaleceu grandemente o sentimento nacionalista bem como deu origem a uma série de revoltas de caráter variado, ao longo do século XIX e o começo do século XX.

Algumas das mais importantes sendo a rebelião de Taiping, que durou cerca de 14 anos, sendo esmagada por uma coalizão de forças dos Qing, ingleses e estadunidenses; a rebelião das minorias islâmicas do sul da China; e, por fim, a revolta dos Boxers, que eclodiu em 1900, apoiada por parte da dinastia e que expressava uma reação nacional ao controle estrangeiro, contando com métodos de perseguição e destruição de propriedades de cidadãos ocidentais, empresários e cristãos. O levante dos Boxers se desenvolveu numa grande revolta esmagada por uma coalizão de 8 países estrangeiros, aprofundando o controle sob o território chinês e convertendo a China, na prática, em uma colônia repartida pelas potencias capitalistas de seu tempo.

Essa onda de rebeliões expressava a já arrastada decadência dos Qing que, através de tentativas de reforma por parte desta mesma dinastia, tendo na figura do imperador Guangxu seu maior entusiasta, tentavam abrir caminho para uma modernização política e econômica que permitisse aliviar o controle estrangeiro ao mesmo tempo em que se mantinham no poder.

Frustrados em seu intento pelas alas conservadoras do império, os caminhos para qualquer saída reformista pacífica se fecharam e os nacionalistas seguiram a trilha da destruição das propriedades, sequestros e perseguição aos estrangeiros como método de luta principal.

Em 1905, é fundado, pelo médico nacionalista Sun Yat Sen, o embrião do futuro partido nacionalista conhecido como Kuomintang, o qual ficou conhecido como Liga Revolucionária. Como agrupação dos estudantes nacionalistas, comerciantes e burgueses republicanos, em 1919 vai se formar o partido.

Seu programa desde as ligas se baseava na exigência do fim da dinastia Qing, a expulsão dos estrangeiros, uma democracia parlamentar em oposição a monarquia constitucional e o fim do espólio das riquezas nacionais por suas companhias, expressando o intento de vida ou morte da burguesia chinesa em proteger o mercado de produtos estrangeiros mais baratos, ao mesmo tempo em que se livrava do peso da dinastia imperial.

Este agrupamento das forças e ideias nacionalistas se mostraria fundamental para a disseminação de um impulso revolucionário entre as tropas e oficiais dos novos exércitos organizados segundo padrões ocidentais pelos Qing como parte das tentativas de contrabalançar o poderio estrangeiro.

Sendo assim, como resultado dessa influência crescente, em 1911 eclode a chamada revolta de Wuchang, onde se concentrava o polo industrial e militar destes novos exércitos. A rebelião contava com oficiais e tropas influenciados pelas ideias de Sun Yat Sen, a esta altura em viagem pelos Estados Unidos, que, tendo sido descobertos pela polícia dos Qing, sublevaram-se e, ao longo dos meses, até fevereiro de 1912, ganharam o apoio de vários governos das províncias do sul da China contra a dinastia.

Essa revolta marca o início da revolução nacionalista ou Xinhai, que se concretiza com o retorno de Sun Yat Sen que, após assumir brevemente o cargo de “presidente das províncias unidas da China”, abdica, por não possuir força militar capaz de enfrentar as oligarquias rurais, em favor do general comandante das tropas do Norte, Yuan Shikai, a quem o último imperador manchu entrega o poder.

Assim, Yuan assume o cargo de primeiro presidente da nova República da China, no qual permanecerá até 1916 quando, após breve tentativa de reconstituir uma ordem imperial, morre.

Sua morte abre caminho ao que ficou conhecido como o “período dos senhores da guerra”, em que a unidade nacional chinesa é comprometida dando lugar à dispersão de tipo feudal dos territórios, dominados pelas elites rurais e militares (senhores da guerra), as quais impunham toda uma série de impostos e dominação arbitrários à população camponesa e das cidades.

Este período vai terminar apenas com o fim da chamada “expedição do norte”, cujo objetivo era a derrota dos senhores da guerra e que foi realizada, com apoio soviético, pelo chefe militar do Kuomintang, primeiro comandante da academia militar de Huangpu e aliado de Sun Yat Sem, até sua morte, o direitista Chiang Kai Shek.

A primeira “frente única” e a segunda revolução chinesa (1925-1927)

Como resposta à divisão territorial causada pelo vácuo de poder, em 1924 é formada a “primeira frente única”, uma coalizão envolvendo o Kuomintang e o Partido Comunista da China (PCCh) com o suposto objetivo de combater os senhores da guerra.

Tal coalizão, no entanto, iria se demonstrar, como analisa León Trotsky, um exemplo de oportunismo aberto sob a forma de colaboracionismo. Para o bolchevique, as consequências dessa política seriam as da imposição de uma política menchevique em uma época revolucionária, ao estabelecer uma linha de orientação que conscientemente impedia a ação independente do partido revolucionário, das massas trabalhadoras e da vanguarda operária em relação à burguesia nacional chinesa.

Ao longo dos anos de desenvolvimento, a segunda revolução chinesa permitiu analisarmos a profundidade do caráter reacionário e oportunista da burguesia de um país colonial como a China. Ao mesmo tempo, a política dominante levada à frente pela IC demonstrou todo o erro de apreciação histórica desse caráter por parte do bloco Stalin-Bukharin, este último, autor da definição de que a burguesia liberal chinesa, organizada ao redor do Kuomintang, cumpriria um papel “objetivamente revolucionário” na luta contra o imperialismo.

Afirmação infundada (e recorrente na justificação de apoios a setores burgueses análogos pelos representantes do stalinismo até hoje), bastando se observar que mesmo a queda da dinastia, quando da revolução nacionalista inspirada por Sun Yat Sen, se dá com a participação direta das distintas nações imperialistas, ora japonesa, ora francesa, ora estadunidense, as quais os nacionalistas buscavam esperançosos como apoio para o desenvolvimento chinês, como Trotsky remarca sobre os relatos das memórias de Sun Yat Sen.

Podemos afirmar que a coalizão PCCh/Kuomintang parte da fundação, em 1924, da academia militar de Huangpu, com auxílio material, político e aconselhamento de oficiais militares soviéticos, seguindo até a derradeira ruptura, ocorrida logo após o massacre de Xangai, em 1927.

Esta coalizão passa pelos notáveis eventos conhecidos como o “golpe de Cantão” de 1926, quando Chiang Kai Shek estabelece uma ditadura militar no território e esmaga a greve geral que constituía uma verdadeira situação de duplo poder em Cantão e Hong Kong, iniciando o expurgo e as perseguições de comunistas dentro do Kuomintang. Como consequência, ficariam proibidos quaisquer comunistas de assumirem cargos de direção dentro do Kuomintang ou no exército nacionalista, estabelecendo uma verdadeira camisa de forças contra o PCCh.

É crucial remarcar que em 1923, sob orientação da IC, o terceiro congresso do PCCh havia decidido pela entrada individual dos comunistas no Kuomintang, sob o argumento de que o caráter da revolução chinesa seria “democrático-burguês” e este partido seria o “partido único das massas operárias e camponesas”, uma espécie de partido de duas classes. Nas palavras de Stalin (em Stalin, problemas do leninismo), o Kuomintang era um “bloco entre operários e a pequena burguesia sob a forma de partido”.

Tal decisão é aceita pela cúpula do Kuomintang, interessada no apoio soviético diante dos senhores da guerra, em seu congresso de 1924, o mesmo ano em que se reúne o quarto congresso do PCCh, onde se expressam as primeiras vozes resistentes à dissolução dos comunistas dentro do partido nacionalista, como a de Peng Shu Tsé e Wang Fanxi.

Chiang Kai Shek, ferrenho anticomunista, demonstrava todo o caráter ambíguo de seu combate ao imperialismo, em primeiro lugar respondendo a necessidade vital da burguesia chinesa (sobretudo a do sul) por um mercado unificado, sendo levado a enfrentar os senhores da guerra que impunham uma ordem feudal à China (oligarquias rurais militaristas que dividiam o território e se baseavam, sobretudo, ao norte), apenas depois se inclinando a um choque com os agentes e setores ligados aos imperialistas ingleses.

Como apontam relatos de comunistas da época, sua postura, no entanto, em relação ao imperialismo japonês e os demais era, quando muito, vacilante, estando sempre pronto a chegar a um acordo, privilegiando os choques com o imperialismo britânico.

Trotsky vai apontar como, na apreciação do caráter da burguesia nacional, o central é a análise de sua postura em relação às tarefas históricas revolucionárias de seu país.

A libertação do jugo imperialista era, na China dos anos 20, uma dessas tarefas revolucionárias mais centrais, diante da disputa feroz por mercados e da posse territorial, mantida sob a força das armas, de portos e regiões pelas potências imperialistas, particularmente a inglesa.

O problema agrário, por outro lado, era uma tarefa urgente diante da grande concentração de terras, sobretudo quando da fragmentação do poder, característica do período dos senhores da guerra, que nada mais eram que grandes proprietários rurais.

Em relação a ambas, a burguesia chinesa demonstrava seu caráter vacilante, quando não diretamente reacionário.

Após o golpe de Estado desferido em Cantão em 1926, conhecido como incidente de Zhongshan, como consequência da movimentação atípica de um navio da frota nacionalista por um comandante comunista, interpretada por Kai Shek como um preparativo para uma tentativa de golpe, as relações entre o PCCh e o Kuomintang se deterioraram fortemente. Consultores soviéticos e comunistas no exército e no partido nacionalista foram expulsos e presos.

Como era de interesse de Chiang Kai Shek e da burguesia chinesa a vitória sob os senhores da guerra, costurou-se o acordo mencionado entre o bloco dirigente da IC e Kai Shek, impedindo os comunistas de assumirem posições de direção, o que se demonstraria crucial para seu esmagamento nos acontecimentos seguintes, com o início da expedição ao norte. Em junho de 1926 parte a expedição e se iniciam os combates contra as três forças principais de senhores da guerra, seguindo até 1928.

Privados de seus postos de direção e acossados pelas tentativas das alas direitistas para terminar a colaboração entre PCCh e o Kuomintang, os comunistas, através de Borodin, enviado de Stalin para a China, então focados em influenciar a ala esquerda do Kuomintang, dirigida pelo desafeto de Kai Shek e líder do governo nacionalista de Wuhan, Wan Tin Wei, encontravam-se em situação precária em 1927.

Como resposta às vitórias que se obtinham ao longo da expedição, como a conquista de Wuhan e avanços para Nanchang, os operários em Shangai, cujos sindicatos estavam sob influência do PCCh, realizam um levante contra os senhores da guerra controlando a cidade. A insurreição é bem sucedida e, com exceção dos assentaments internacionais, toda a cidade se mantém sob controle dos operários, até a chegada do exército nacionalista.

Ao chegar, o exército nacionalista se instala na cidade. Wang Tin Wei também se dirige a cidade e se encontra com o líder comunista Chen Duxiu, reafirmando a cooperação com o PCCh. Após sua partida, Chiang Kai Shek, expressando o temor da ala direita do Kuomintang, da burguesia nacional chinesa e das delegações imperialistas, determina em lei secreta o expurgo dos comunistas de todas as províncias e, inclusive com apoio de seitas secretas de criminosos, inicia a prisão e o massacre de milhares de militantes do PCCh em Shangai, a dissolução de seu governo provisório, dos sindicatos e a expulsão, em todas províncias, dos comunistas do Kuomintang.

Inicialmente Wang Tin wei e diversos membros do comitê central do Kuomintang condenam a ação de Kai Shek, levando a uma ruptura entre as alas direita e esquerda do partido, expressas nos governos de Nanquing e Wuhan. Tal ruptura, no entanto, dura muito pouco, com a seguinte ruptura de Wang Tin Wei com o PCCh e com Stalin, diante da tentativa improvisada e tardia de formação pelos comunistas de um exército de camponeses e operários para resistir aos ataques dos direitistas.

O resultado do conhecido “Massacre de Shangai” foi o de cerca de 10 mil comunistas presos ou assassinados em menos de 20 dias, ao longo de diversas províncias, como Cantão, Nanquing, Fujon, entre outras.

Diante da tragédia, não restou muita saída ao bloco Stalin-Bukharin a não ser decretar o fim da cooperação com o Kuomintang, levando aos “acessos de golpismo e aventureirismo”, que motivaram, no período de refluxo das forças revolucionárias e estabilização da dominação do Kuomintang, a tentativa de insurreição e formação de um soviete por cima, sem eleição, artificialmente criado pela direção do PC, em Cantão. Tal episódio levou ao decreto de uma “data para a insurreição” em uma situação inoportuna, no final de 1927, levando-a a ser esmagada rapidamente.

Desta forma, é concretizada a imposição de um situação contra revolucionária na terceira “etapa” da segunda revolução chinesa que, após a primeira, em que vigora a subordinação comunista à burguesia nacional a frente do Kuomintang e sua teoria do “bloco das 4 classes”, e a segunda, da criação do governo em Wuhan pela efêmera ala esquerda do KMT, de Wan Tin Wei, na qual a Internacional Comunista buscou inutilmente se refugiar, sela, com um giro aventureiro em momento inoportuno, o refluxo geral das forças revolucionárias.

As bandeiras democráticas e a estratégia soviética

Para Trotsky, assim como para Lênin, o problema da orientação do partido está intimamente ligado à análise das relações de força numa situação específica. O diagnóstico correto, fruto da análise da inter-relação entre as classes, é crucial para a determinação do prognóstico revolucionário. Não se utiliza o mesmo cartel de posições políticas em uma situação revolucionária e em uma situação não revolucionária.

Deste modo, o autor nos apresenta o mosaico de erros fatais cometidos pela orientação proposta pela IC e levada à frente pela direção do PCCh, frutos de uma apreciação teórica equivocada, tanto em relação às características da revolução chinesa, quanto em relação à correlação de forças nos momentos de sua implementação.

Já em 1925-27, no auge da luta revolucionária em Shangai e do surgimento da greve geral com comitês auto-organizados em Cantão, se o partido chinês tivesse se constituído como organização e se orientado de maneira independente do Kuomintang, formando soviets como a via para liderar as massas “através dos estágios necessários”, desde, inclusive, o início da marcha para o norte, implementando o programa socialista nas regiões liberadas, era possível o fortalecimento da posição comunista, a formação de seu exército e, assim, a tomada do poder.

Ocorre que tal caminho foi bloqueado pela falsa definição de que a Revolução chinesa possuía um caráter exclusivamente democrático-burguês, o que levou, assim, os operários e camponeses a subordinação obrigatória à direção burguesa do KMT e ao amordaçar da ação comunista: os operários estariam proibidos de tomar o poder enquanto um “governo democrático” não estivesse na direção da China.

Desse modo, a direção do Bloco Stalin-Bukharin proibia e dificultava a adoção da bandeira de formação de Soviets ou conselhos operários, para agitação e para prática, durante todo o auge revolucionário, uma vez que estes deveriam apenas ser fomentados “às vésperas” da insurreição, durante a transição para a revolução proletária. De maneira mais absurda, ainda afirmavam sua validade “apenas quando um sólido êxito estiver assegurado (sic)”.

Em Stalin – o grande organizador de derrotas, Trotsky aponta como desta posição oportunista em essência, após o giro golpista de Chiang Kai Shek, concretizado com a mordaça (1926) e posterior massacre dos comunistas (1927), a resposta posterior foi o giro ultra-esquerdista da direção da IC e chinesa, como tentativa de compensar seus erros passados e “eletrizar as massas” em debandada.

A convocação do Soviet “por procuração” em 1927, em Cantão, foi o exemplo tácito deste giro, cujo único efeito foi facilitar o trabalho de esmagamento da vanguarda revolucionária, que ainda resistia na situação de refluxo aberta com o fortalecimento da posição de Kai Shek e do KMT.

Após tal evento, dizia Trotsky, abrir-se-ia um novo momento de estabilização, em que a burguesia nacional do KMT, vendo-se segura politicamente, esforçar-se-ia pela recomposição de estradas, estabilização cambial, recomposição dos transportes e, assim, por um aumento da circulação comercial que lhe propiciaria um fôlego para as tarefas de manutenção da unificação Chinesa, industrialização e consolidação de sua dominação política.

Nesse cenário, o partido comunista teria de partir quase do zero, provavelmente sofrendo as penúrias de uma vida clandestina, tendo de buscar se fundir, através de todas as lutas defensivas, dos sindicatos, das organizações rurais, à massa proletária e camponesa que veria uma ascensão numérica devido ao crescimento econômico.

Nessas circunstâncias, uma alteração total de prognóstico se opera e, assim, a luta pelas bandeiras democráticas mais elementares, num país cuja experiência com a democracia liberal e o parlamentarismo é escassa, ganha enorme destaque como a via para a recomposição da influência e relação dos comunistas com as massas proletárias.

A bandeira de Soviet, ou seja, a via para a tomada do poder, adquire um caráter propagandístico, cujo papel é abrir uma perspectiva e apontar o objetivo principal, a tomada do poder. No entanto, nestas circunstâncias, a luta pela jornada de 8 horas, pelas liberdades de imprensa, organização, reunião, de greve, assim como aquelas referentes às tarefas democráticas não resolvidas, como a distribuição de terras aos camponeses e a unificação nacional, ganham evidência como as vias para conquistar as massas e separá-las da influência das correntes políticas “democrático burguesas”, que vendem a ilusão da resolução de tais problemas pelas vias normais da legalidade e respeitando a propriedade burguesa.

Trotsky, após a derrota da insurreição e do Soviet fantoche de Cantão, retoma a resolução do delegado chinês no Sexto congresso, Strakhov, para ilustrar as consequências catastróficas do giro da Internacional Comunista: nela, afirma-se que na China apenas os oportunistas querem substituir a palavra de ordem de Soviets pela de Assembleia Nacional (constituinte). Desta forma, evidenciava-se o equívoco total quanto ao diagnóstico da situação contrarrevolucionária e se preparavam novas derrotas.

O autor demonstra como na situação contrarrevolucionária aberta após 27, a tarefa de preservar o proletariado da influência dos democratas pequeno-burgueses e reconquistar os laços e influência do partido entre as massas, só pode passar pela defesa resoluta de todas as bandeiras democráticas e, inclusive, de uma Assembleia Nacional. Tal experiência é coerente com a linha bolchevique durante todo o período posterior a 1905, que lhe garantiu a autoridade e laços diante da classe para fomentar o surgimento de soviets e rumar para a insurreição em 1917.

Assim, a bandeira da “terceira revolução chinesa”, os soviets, cuja existência deve se dar como “forma organizativa” das forças “centrípetas”, de unidade, que um auge de luta proletária coloca em movimento, não se opõe as bandeiras da democracia formal (burguesa), inclusive em sua forma suprema, uma Assembleia Nacional, que decorrem da derrota da “segunda revolução chinesa”, em que, por conta de uma direção falsa, o auge revolucionário se perdeu e se abriu um momento de recomposição de forças, influência e direção comunista entre os operários, situação na qual predominam as “forças centrífugas” entre os proletários.

Deste modo, torna-se evidente que não apenas nesta situação desempenha um papel estratégico a defesa das bandeiras democráticas, como deve ter papel privilegiado na agitação do partido. Essa agitação, não deve rivalizar com o programa socialista e a perspectiva soviética de organização para a luta e para a insurreição. Seu valor está justamente na perspectiva que abre para camadas mais amplas dos trabalhadores.

Trotsky vai nos lembrar ao final de seus comentários sobre a questão chinesa, que a importância das palavras de ordem democráticas está em que permitem desembocar numa via revolucionária e, em relação ao objetivo principal, a tomada do poder, não possuem um caráter senão secundário e episódico. Seu foco deve ser o de combater todos os elementos da pequena-burguesia que tentem vender a ilusão de resolver os problemas fundamentais da nação através do parlamento e da legalidade burguesa, demonstrando que o poder não se apoia em votos ou formas da democracia liberal, mas no monopólio das armas e da propriedade.

Nesse caminho, desde o início dos possíveis momentos altos da luta revolucionária, o partido deve lutar para fomentar a criação de conselhos (soviets) como órgãos da luta aberta das massas, centralizando suas forças, articulando os diversos setores de proletários em luta, assumindo tarefas cada vez maiores e rivalizando com o poder burguês, o que, cedo ou tarde, pode levar à insurreição e à tomada do poder.

No pior dos casos, dar-se-ia a ampliação da experiência dos trabalhadores com os órgãos “supremos” de luta e frente única proletária e futuros órgãos de poder de um Estado dos trabalhadores, elemento crucial para futuros levantes bem sucedidos.

Um exemplo desta inter-relação dinâmica pode ser visto na Rússia em 1918. Por lá, a revolução democrática, ou seja, a questão da terra, da guerra e das nacionalidades, foi resolvida pela democracia direta soviética, após a tomada do poder. Ainda assim, os bolcheviques foram favoráveis à manutenção da Assembleia Constituinte (AC), eleita em 1917 e com maioria dos oportunistas conciliadores. Sua ocorrência cumpriu uma função propagandística única: Em seu único dia de duração, a posição majoritária da AC se opunha a entrega de terras aos camponeses e defendia a manutenção da participação russa na Primeira Guerra Mundial.

Não poderia haver, então, lição mais nítida da superioridade da democracia dos Soviets em relação à democracia burguesa perante as massas, o que levou a dissolução da AC, sem nenhuma dificuldade, após um dia de existência.

Originalmente em a A Terra é Redonda

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

Referências


BENTON, G. Prophets Unarmed: Chinese Trotskyists in Revolution, War, Jail,
and the Return from Limbo, Historical materialism book series. 2017.
ISAACS, H. The tragedy of the chinese revolution. Haymarket Books. 2010.
TROTSKY, L. Stalin: o Grande Organizador de Derrotas. Editora Sundermann. 2010
- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais