Um dos temas mais importantes da realidade brasileira neste momento gira em torno do Projeto de Lei das “Fake News” (PL 2630 / 2020) capitaneado pelo deputado Orlando Silva do partido comunista (PCdoB). O assunto é importante, mas a condução do tema está sendo feita de forma, bastante temerária. Quando dominado por ideologias extremas, de qualquer lado do espectro político, o assunto se reduz a uma trágica e desvirtuada busca por hegemonia política a qualquer custo, independentemente das consequências éticas, morais e sociais e em detrimento do próprio estado liberal democrático de direito.
Estão, por exemplo, as democracias ocidentais na Europa, nos EUA e no Reino Unido propondo leis sobre “fake news” nos moldes do Projeto de Lei (PL) que está sendo proposto no Brasil? Parecem, ao contrário, tratar do tema em um outro plano, ainda que em um contexto de acalorados debates de valores e ideias. Parecem entender muito melhor os limites e os graves perigos de equívocos no direcionamento do tema. Aqui pelos trópicos ao sul do equador, dependendo do andar da carruagem, não é preciso ser vidente para profetizar que distorções na interpretação e na aplicação das “futuras regras” serão uma certeza. Basta olhar para a natureza humana no seu atual estágio de desenvolvimento ético, moral e espiritual. Basta ver muitos dos que fazem parte ou lideram nossas instituições. Basta ver, como exemplo, a conhecida “lei de abuso de autoridade” que independentemente da importância de seus princípios basilares acabou sendo elaborada com intenções nada virtuosas e hoje só é aplicada de forma discricionária e seletiva.
Mais trágico ainda é que as pessoas que lideram a iniciativa deste novo PL não conseguem nem mesmo definir com precisão o que são “fake news”. Vamos imaginar que sejam, de uma maneira ampla, informações falsas que quando divulgadas em larga escala causam graves danos à sociedade e ao próprio estado democrático de direito. Divulgar dados e informações falsas por negligência e sobretudo intencionalmente são caminhos para materializar inverdades, ou ainda pior, materializar meias verdades. Estas últimas frequentemente ainda mais nefastas pelo seu poder mais sutil de manipulação. Assim sendo, poderíamos concluir que muitas de nossas autoridades e muitos de nossos representantes eleitos (ou candidatos a representantes) se enquadrariam imediatamente de forma contundente para a aplicação da lei que se originaria do PL, caso este venha a ser aprovado e transformado em lei. A tipificação de divulgação de informações falsas em larga escala e causadoras de graves danos à sociedade e ao próprio estado democrático de direito seria direta e cristalina. Muitas dessas pessoas que mentem de forma patológica há décadas, não poderiam, portanto, a partir desta definição, estar exercendo seus cargos ou pretendendo exercê-los. Talvez, seguindo o modismo, possamos criar uma nova denominação para essas pessoas. Quem sabe “fake people”? Caberia um PL em regime de urgência para tratar especificamente desta gente também…?
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De toda forma parece que aqueles que mentem de forma compulsiva não precisariam se preocupar com o PL, qualquer que seja o seu formato final. Com uma certeza quase absoluta, no atual estado das coisas onde princípios constitucionais basilares, inclusive relacionados ao exercício parlamentar, têm sido reinterpretados, há uma grande probabilidade que a lei só será aplicada de forma discricionária e seletiva. Isso é a grande diferença entre os países mais desenvolvidos e o menos desenvolvidos institucionalmente. No Reino Unido, por exemplo, a celeridade e efetividade do funcionamento da justiça são consideradas uma questão de segurança nacional. Uma proteção essencial contra os riscos de uma convulsão social.
Também não podemos deixar de refletir sobre alguns dos pontos mais relevantes dessa reflexão. Quem define o que são as fake news? Quem as enquadra? Quais os critérios? Quem define os critérios? Quem julgará os processos? E indo além, qual o papel e as consequências para as chamadas “agências de checagem de fake news”? Embora a verificação de fatos seja necessária, muitas vezes não é suficiente para fornecer a imagem completa dos fatos. E com muita frequência diversas formas de distorções na verificação dos fatos parecem não resistir a um olhar mais atento e rigoroso. Procurem, caros leitores, investigar as agências de checagem. Vejam os membros que as compõe assim como os perfis destas pessoas nas mídias sociais. Verão que em um grande número de casos as interpretações com meias verdades chegam a ser mais danosas que os próprios fatos equivocados. Analises são muitas vezes feitas de forma incompleta, fora de contexto ou simplesmente de maneira enviesada / ideologizada. Sob as condições atuais da crescente guerra cultural e de informação, os próprios fatos e versões de fatos tornaram-se armas. Muitas vezes é mais eficaz enganar e desinformar por meio do uso estratégico de fatos verificados. A capacidade de criticar e corrigir de forma ética o mau uso dos fatos na cultura pública é um componente essencial do modo de vida democrático.
Caros leitores, por favor vejam que em nenhum momento estamos defendendo que abusos, calúnias e crimes tipificados no nosso código penal e na letra e nos princípios consolidados de forma explícita em nossa constituição sejam ignorados. Na verdade, estamos argumentando exatamente o contrário. Que a essência do que precisamos já está em nossa estrutura jurídica atual assim como nas estruturas jurídicas das nações democráticas mais avançadas. Isso não significa que aperfeiçoamentos e melhorias não possam ser feitos. A evolução das sociedades demanda a evolução de suas respectivas leis. Mas isso sem que haja um desrespeito a princípios fundamentais constitucionais e isso parece que tem sido muito melhor compreendido em democracias mais avançadas do que em nosso país. E aqui, neste ponto, é inevitável que tenhamos de tratar de nosso bem mais precioso: a liberdade, não a confundindo com o rompimento de fronteiras que levem a transgressões. E a liberdade de expressão – free speech – é um dos pilares desta própria liberdade.
Max Borders nos traz algumas reflexões preciosas sobre esta questão essencial da liberdade de expressão. Um tema também frequentemente tratado de forma temerária no Brasil, tanto sob o ponto de vista de seus princípios fundamentais subjacentes quanto do seu encaminhamento legal ( incluindo obviamente aqui o respeito ao devido processo legal).
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Borders inicia sua argumentação a partir de uma discussão sobre o papel do Twitter. Muitos defendem que a liberdade de expressão não tem nada a ver com o que acontece no Twitter porque o Twitter é uma empresa privada. O mesmo raciocínio se aplica, portanto, a todas as outras plataformas de mídias sociais. Neste contexto e utilizando como exemplo os EUA, as empresas privadas podem controlar a fala como quiserem porque a constituição americana só protege os cidadãos de censura por parte do governo deste país. Na verdade, o argumento aqui se restringe primordialmente ao poder executivo desta nação porque nos EUA é absolutamente inconcebível que possa haver usurpação de poderes ou de funções entre os três poderes (executivo, legislativo e judiciário) pilares das democracias modernas. Isso apesar de que, mesmo em países mais desenvolvidos incluindo o próprio EUA, questões por exemplo relacionadas ao ativismo judicial sejam motivo de grandes preocupações. Em países em desenvolvimento com instituições fragilizadas e disfuncionais estes riscos assim como suas consequências ganham uma outra escala.
Como coloca Borders, “nos Estados Unidos, é verdade que a Primeira Emenda (da constituição americana – grifo nosso) apenas protege as pessoas da censura do governo. Também é verdade que os direitos de propriedade privada superam a liberdade de expressão. Os proprietários geralmente fazem as regras sobre o discurso em suas propriedades, e essas regras podem ser iliberais, arbitrárias e grosseiramente injustas, desde que o governo não esteja envolvido na definição dessas políticas”. Infelizmente no Brasil a situação da disfuncionalidade de instituições leva esta reflexão a um outro nível de desafios.
É a partir deste ponto que Border chama a atenção para o fato de que a liberdade de expressão possui, antes de todo o resto, princípios fundamentais e um espírito que os fundadores da nação norte americana entenderam e consolidaram de uma maneira extraordinária. E chama também a atenção para o fato que Ellon Musk aparentemente é um dos que também entendem isso muito bem:
“A letra é a lei, mas o espírito transcende a lei entre as pessoas conscienciosas. E Musk é um deles. Ele acabou de comprar a maior participação no Twitter, que certamente testará os Twitterati (usuários do Twitter). Mas de acordo com liberais como John Stuart Mill, devemos praticar a tolerância ao discurso mesmo em ambientes privados. O dever aqui é moral e ético, não legal, A tolerância apela ao espírito da liberdade de expressão, que difere da Primeira Emenda (da constituição americana). Pode-se e deve-se aplicar a persuasão moral além de uma doutrina jurídica estrita. Nós fazemos isso o tempo todo. Defensores da liberdade de expressão estão simplesmente apelando para uma doutrina liberal estabelecida, que chamamos de tolerância”. Ou como o próprio Musk coloca, “uma vez que o Twitter (e em grande medida também todas as outras mídias sociais relevantes – grifo nosso) são as praças públicas de facto, falhas de adesão aos princípios da liberdade de expressão minam de maneira fundamental a própria democracia”
Neste contexto, em relação à lei, pode-se concordar que os direitos de propriedade e a liberdade de associação devem sempre prevalecer sobre a liberdade de expressão em ambientes privados. No entanto, quando um racista nega a entrada de uma pessoa de outra raça, apenas por causa de sua raça, isso passa a ser indefensável. Proibir um ser humano inocente de sentar em um balcão de almoço ou frequentar uma universidade, mesmo que a decisão do proprietário esteja de acordo com um princípio de direitos de propriedade e liberdade de associação é absolutamente inadmissível. Como argumenta Borders, a lógica de que tudo vale desde que seja legal, exclui muitos padrões e práticas extra políticas e extralegais que dão origem à paz e ao progresso.
Somado a tudo isso surgiu um novo fenômeno da “cultura da internet”. São as chamadas “culturas de consequência” em que os indivíduos são mantidos “em um padrão mais alto de responsabilidade” – cujos critérios nas redes demonstram ser cada vez mais subjetivos – por seu discurso e ações, uma vez que não o fazer resultará em consequências imediatas e de mudança de suas respectivas vidas. Em outras palavras estamos falando aqui da “cultura do cancelamento”. Se isso já é trágico sem a interferência de instituições de estado imaginem caso a situação seja exatamente essa. Em países totalitários isto é a regra. Em países com democracias disfuncionais a vigilância permanente é para que essa não se torne a regra. Isto porque as consequências da cultura de consequências podem ser completamente arbitrárias. A ideia de que a “cultura de consequências” não tem e não deva ter nenhum princípio limitante, nada que a verifique, questione ou se interponha em seu “caminho na verdade” nada mais é que criar consequências que levem as pessoas à submissão, sujeição ou silêncio. No final das contas e de maneira bem direta, essa cultura de consequências nada mais é que, do começo ao fim, a mais voraz luta política e pelo poder no contexto de uma feroz guerra cultural em escala global.
E o melhor caminho para superar tudo isso, talvez o único, é o da tolerância que só pode realmente existir em estados liberais democráticos de direito que estejam alicerçadas em instituições funcionais. O melhor antídoto para má opinião ou para a “desinformação” que com assustadora frequência nada mais é que uma mera divergência de opinião, é um discurso de alta qualidade e evidências que rastreiem a verdade e respeitem as normas do discurso. Os estados liberais democráticos de direito que são institucionalmente maduros procuram proteger o discurso tanto no espírito quanto na lei, mesmo que tais proteções, em função da própria natureza humana, nunca sejam absolutamente perfeitas sob o ponto de vista operacional. Como argumenta Borders, o processo discursivo geralmente cria melhores resultados ao longo do tempo: “Eu tenho uma filha judia. Minha apreciação da importância da liberdade de expressão e pela tolerância não significa que vou convidar neonazistas para minha casa para dizer coisas ofensivas a ela em função de algum senso desproporcional de tolerância liberal. Estou simplesmente argumentando que todos podemos fazer melhor, mesmo que não haja linhas ou pontos brilhantes em um espectro. Por exemplo, é possível ter plataformas moderadas com políticas de discurso muito mais liberais. Os proprietários dessas plataformas devem liberalizar essas políticas, apesar das ameaças reais das autoridades”
No período da Pandemia do Covid 19 foi assustador assistir no Brasil, embora isso tenha acontecido também até em várias democracias ocidentais avançadas, professores, censores e autoridades públicas que buscaram, com muita frequência, silenciar vozes dissidentes, zombar de alternativas e menosprezar perguntas justificáveis sobre medidas iliberais de saúde pública. No final das contas e de maneira lamentável eles, em inúmeras ocasiões, acabaram por se tornar eles mesmos grandes fornecedores de desinformação.
Neste ponto vale refletir porquê não devemos perder de vista o espírito da liberdade de expressão e das virtudes da tolerância:
“1. Você pode estar errado, e aqueles com quem você acha que discorda podem estar certos.
2. Você pode vir a entender a razão pela qual alguém pode estar justificado em manter outra visão, mesmo se você discordar dela.
3. Rastrear a verdade requer interrogar afirmações de diferentes pontos de vista.
4. Perspectivas minoritárias frequentemente se tornam mais tarde a perspectiva majoritária (por exemplo, com a teoria de vazamento da covid 19 de um laboratório chinês).
5. O ceticismo é parte integrante da investigação científica, por isso precisamos de vozes céticas.
6. Os humanos são diferentes, um para o outro, e vêm com valores diferentes. O pluralismo existe, e estamos no nosso melhor quando somos capazes de integrar as perspectivas dos outros como facetas de uma verdade maior que seria difícil de ver sem assumir diversos pontos de vista.
7. O rastreamento da verdade requer a entrada de evidências, mesmo que a soma das evidências torne uma alegação inconclusiva.
8. Os especialistas não têm reivindicações de monopólio sobre a verdade.
9. As autoridades não têm reivindicações (ou pelo menos não deveriam ter – grifo nosso) de monopólio sobre a verdade.
10. Você não tem reivindicações de monopólio sobre a verdade.”
Plataformas de mídia social podem legalmente continuar a engendrar monoculturas ideológicas. Elas podem legalmente definir suas próprias regras e ignorar todo o espírito de liberdade de expressão e da investigação aberta. Isso, no entanto, vai frontalmente contra os processos de desenvolvimentos construtivos e acumulativos dos quais o próprio progresso da sociedade humana depende. Mas ainda mais preocupante é quando autoridades já têm suas impressões digitais nas plataformas de mídia social, o que frequentemente é inconstitucional em estados liberais democráticos de direito. Pior ainda é que aparatos de censura contaminados por instituições de estado, sejam através governos passados, presentes ou futuros podem ser cooptados por autoridades que não prezam verdadeiramente pelos valores da liberdade e dos estados liberais democráticos de direito. Como também coloca Borders, “a aceitação tácita de que vozes não oficiais devem ser suprimidas com o objetivo de proteger o público da “desinformação” abre a porta para os “esquadrões da verdade” das instituições que passam a ver todos os questionamentos às suas ações como desafiantes gritando fogo em um teatro lotado (ou como desafis às próprias instituições de estado – grifo nosso). O problema de tolerar muita intolerância é que uma vez que o malvado Djinn escapa, é mais difícil colocá-lo de volta na caixa”.
Caro leitor, acreditamos que toda essa reflexão é importante porque a tomada de caminhos equivocados e a eventual aceitação dos mesmos levará inevitavelmente a riscos de fraturas socias e ao enfraquecimento de instituições democráticas em todo
o mundo. Para os autoritários que imaginam possuir “o caminho da única verdade”, o antipluralismo é um benefício e toda essa conversa sobre “respeito à diversidade” é apenas conversa. Estamos falando, no final das contas, de centralização de poder e de controle social. O importante e necessário caminho para evitar abusos e transgressões certamente é outro.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!