Do circo às telonas, ele foi um artista multimídia, com pés na cultura popular. Produzia e distribuía os próprios filmes. Dialogava com o Brasil urbano e rural. Foi acusado de pastelão e reacionário, mas ajudou a consolidar o cinema nacional
Ele foi artista de circo, rádio, teatro, televisão e cinema. Encarnou um tipo, deu vida à ideia de caipira no entretenimento — e, de certa forma, no imaginário nacional. Empreendeu: em um tempo de incipiente indústria do cinema, montou uma companhia própria para ter controle sobre todo o processo de seus filmes.
Há 110 anos, em abril de 1912, nascia Amácio Mazzaropi, aquele que se tornaria uma espécie de Charles Chaplin brasileiro. “Foi uma figura incrível, que falava [em suas obras] sobre a vida humana, as relações humanas, as angústias, tristezas e alegrias”, define o historiador Eduardo José Afonso, pesquisador de cinema e professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Um artista completo, como Chaplin.”
“Mazzaropi tinha a característica incrível que era a capacidade de reproduzir o homem simples do campo. E sua obra continua mais do que nunca atual, porque ele, como Shakespeare fazia, abordava as questões importantes da vida, com seus amores, ódios e traições”, acrescenta o historiador.
Nascido na capital paulista mas criado em Taubaté, no interior, Mazzaropi já demonstrava aptidões artísticas ainda na escola, quando tinha facilidade para recitar poemas e, com seus causos e anedotas, costumava ser o centro das atenções da turma.
Aos 14 anos, começou a trabalhar no circo, fazendo pequenas esquetes humorísticas. Nos anos 1930, criou uma própria companhia teatral, com a qual percorreu diversas cidades do interior paulista. Em 1946, ganhou um programa de rádio, o dominical Rancho Alegre encenado ao vivo no auditório da Rádio Tupi, em São Paulo.
Quatro anos mais tarde, o mesmo programa foi levado para a televisão, pela TV Tupi.
“O grande valor do Mazzaropi é que ele foi esse ator capaz de se moldar às diversas linguagens que foram surgindo. Tinha versatilidade. Era de circo, de teatro, de rádio, de televisão, de cinema… Sempre trazendo a arte da comédia, do riso”, comenta o jornalista Daniel De Thomaz, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Rancho Alegre pode ser considerado o primeiro programa humorístico da televisão brasileira”, prossegue ele. “Mazzaropi foi um multimídia, que conseguia levar a comédia estilo pastelão, com as brincadeiras escrachadas, transitando com muita facilidade de uma mídia para a outra.”
A consolidação veio no cinema. “Foi quando ele se tornou uma figura reconhecida no Brasil, e até mesmo fora do país”, avalia De Thomaz.
Havia motivos, é claro. Sua primeira aparição na telona foi com filme Sai da Frente, de 1952, um projeto da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Era um momento em que televisão era para poucos. Já cinemas havia mesmo em cidades pequenas em todo o Brasil.
Atuou em sete filmes até que, em 1958, decidiu vender sua casa para, com o dinheiro, montar sua própria empresa cinematográfica. Com a PAM Filmes, sigla para Produções Amácio Mazzaropi, ele passou a não só a produzir como a distribuir suas obras.
E, claro, passou a controlar todo o processo: do roteiro às locações até a direção e a produção em si.
“A PAM Filmes inovou a lógica, pois desde a Segunda Guerra Mundial, a distribuição de filmes no Brasil estava a cargo de companhias americanas. Ele driblou isso”, contextualiza o historiador Afonso.
“E conseguiu um grande sucesso, sempre com salas lotadas, com as pessoas querendo ver seus novos lançamentos.”
“Os cinemas sabiam que filme do Mazzaropi esgotava a bilheteria, então ele quebrou um paradigma que existe até hoje, que é a ideia da distribuição nas mãos de grandes companhias”, complementa Afonso.
Caipira
E no cinema o sucesso era maior quando ele encarnava a figura do caipira, recuperando um tipo que já havia sido explorado por ele nas plataformas anteriores.
“Ele cristalizou a imagem do caipira”, resume De Thomaz.
Mestre em Comunicações e Poéticas Visuais, o jornalista Rodrigo Pereira contextualiza esse frenesi em torno do estereótipo por conta da própria história brasileira: era um momento de forte êxodo rural, e ao levar para as telas o personagem caipira, Mazzaropi dialogava com aquele homem que havia saído do campo para morar na cidade.
“Ele conseguiu criar um tipo, e esse tipo conversava com um Brasil rural e arcaico. Depois [com a PAM], ele se tornou dono do tipo, porque ele próprio administrava o que ia fazer com esse personagem, era o próprio produtor, escolhia o filme que ia fazer, definia o roteiro”, explica Pereira.
“Mazzaropi soube olhar para o espírito do seu tempo”, define.
Aos poucos, seus fãs não iam ao cinema para ver atores interpretando personagens. Iam para ver Mazzaropi, porque sabiam que ele encarnado no caipira era a garantia do riso, do entretenimento. “Quando ele fazia teatro, quando era o artista mambembe, fazia esse tipo caipira e o público estava no interior”, compara Pereira. “Quando ele migrou para o cinema, este público já estava nas cidades grandes.”
“Ele pegou essa chave de identificação com o público. Era um momento em que as cidades passavam a ganhar importância, quando antes a maioria vivia no campo. As pessoas se identificavam”, diz Afonso.
“Suas histórias fixavam a atenção do espectador, que dava risada, chorava, mas saía do cinema feliz. A mensagem era algo como um ‘está vendo, eu posso não ser valorizado, mas sou como ele: no fundo, eu dou a volta por cima, mesmo sendo pobre e vivendo num mundo de simplicidade’.”
Seu segundo filme pela PAM foi Jeca Tatu, de 1959. E aí as referências já estavam prontas no imaginário nacional.
Havia o Jeca Tatu personagem de Monteiro Lobato — que aparece pela primeira vez em Urupês, de 1914. Havia o Jeca Tatu dos almanaques distribuídos em farmácias de todo o país, patrocinados pelo Biotônico Fontoura. E passou a haver o Jeca Tatu de Mazzaropi.
“Ele olhou para aquilo [o personagem], pensou no caipira que já fazia, no sucesso do personagem. E criou o seu Jeca Tatu”, conta Pereira. “Porque são três Jecas diferentes, mas são todos Jecas Tatus.”
Para o historiador Afonso, coube a Mazzaropi responder Monteiro Lobato, no sentido de que seu Jeca não era necessariamente um personagem pejorativo.
“Lobato criou o Jeca Tatu como um indivíduo malemolente, doente, que não queria nada, que não respeitava nada, que tinha aquela vida de preguiça. Demonstrava a visão elitista do próprio Monteiro Lobato”, diz o pesquisador.
“Mazzaropi desenvolveu a figura do caipira não como um indolente, burro, incipiente… Ele deu a volta por cima”, acrescenta. “O caipira de Mazzaropi é um homem da terra, não é burro. É alguém que se identifica com aquilo que é do campo, a vida dos animais, da produção agrícola, tudo o mais. Ele passou por cima daquela ideia de caipira como um cara atrasado, de dente estragado e roupa rasgada.”
De Thomaz ressalta que ele fez a transição da figura do caipira, a partir da imagem que já existia desde o século anterior.
“É só olhar para as pinturas do Almeida Júnior”, lembra. Caipira Picando Fumo, de 1893, é um exemplo. “Essa ideia do caipira brasileiro como aquele folgado, vagabundo, que não queria fazer nada mas era malandro em alguns momentos, ela já existia desde o século 19. Os modernistas, em 22, tentaram modificar isso a partir de uma releitura. Mas Monteiro Lobato foi a pedra no sapato.”
Lobato reinventou o caipira, e Mazzaropi bebeu nessa fonte para criar a sua versão também.
“Mazzaropi teve muito sucesso e foi muito popular, tanto no rádio, como na TV, como no cinema. E seu ápice foi o Jeca Tatu”, resume De Thomaz. “Com sua atuação, ele fixou esse estereótipo [de caipira] na cultura popular brasileira.”
Críticas
Por outro lado, há também muitas críticas à produção de Mazzaropi. Em seu tempo, havia quem questionasse a precariedade das produções e mesmo o tom de humor pastelão. Hoje, ele é visto como reacionário e, para alguns, alguém que jamais conseguiu assumir sua homossexualidade.
“Com essa imagem de caipira, ele de certa forma conseguiu reforçar uma coisa que os modernistas de 22 estavam querendo mudar: o estereótipo do brasileiro típico como alguém ignorante, atrasado e folgado”, comenta De Thomaz.
“Isso remeteria a um Brasil subdesenvolvido, um pouco contra o discurso desenvolvimentista dos anos 1950, que era uma ideia de trabalhar um Brasil em sintonia com as grandes questões mundiais. Nesse sentido, ele estava na contramão de um movimento, uma coisa meio esquizofrênica.”
“Por um lado havia a bossa nova, o moderno, a construção de Brasília, as multinacionais… Por outro, ele reforçando aquela imagem de um país mais atrasado”, completa o jornalista.
“Ele era uma pessoa reacionária, conservadora. E fez um cinema que expressa isso: um cinema reacionário, arcaico”, avalia Pereira.
“Todo mundo se identificava com Mazzaropi apesar de toda a crítica de que ele fazia filmes fracos em termos de tecnologia, que não tinham qualidade”, frisa Afonso.
“Mas a obra suplantava esses argumentos, porque o mais importante era a figura dele e a história que ele apresentava. Todo mundo ia ao cinema para ver qual era a nova história que o Mazzaropi ia contar.”
Roteirista de diversos filmes contemporâneos que foram sucesso de bilheteria, Lusa Silvestre torce o nariz para o críticos.
“Mazzaropi era criticado pelos críticos porque achavam que faltava ‘arte’ — estou fazendo asterisco com os dedos — no trabalho dele. Que faltava verniz”, comenta ele.
“Mazzaropi respondia: ‘eu tenho cem pessoas na equipe, não vou conseguir pagar todo mundo fazendo os filmes que os críticos querem’.”
“Na minha opinião, a gente continua, com algumas exceções, fazendo um jornalismo cinéfilo de baixa qualidade, onde falta entender o mais básico das regras de mercado. Como dar valor a quem criticava Mazzaropi? Ele morreu há mais de 40 anos e continua importante. Onde estão os críticos da época dele? Quem eram? Precisamos subir o sarrafo: não há problema nenhum em criticar, mas exijo preparo de quem se arvora a falar de cinema”, provoca Silvestre.
De Thomaz avalia que Mazzaropi deixou, além dos 32 filmes, um legado importante: o desenvolvimento de uma comédia cinematográfica 100% nacional.
“De alguma forma isso foi importante para a consolidação do cinema nacional”, pontua.
Diretor do filme Casa de Antiguidades, o cineasta João Paulo Miranda Maria apropria-se do rótulo de cinema caipira hoje em dia. Mas o que ele faz guarda mais diferenças do que semelhanças com a obra de Mazzaropi.
“Ele criou a figura do caipira, esse personagem que é como ele via o interior e trazia esse interior”, comenta.
“Ele é uma grande inspiração para mim, mas o sentido do que é caipira para mim é diferente do que era para ele. Para mim, o caipira tem muito a ver com personagens que contemplam, que esperam, que estão sempre a espera de algo. E que são o resultado de muita história, muita memória, como se concentrassem na pele muitas camadas de história.”
Miranda Maria reconhece, contudo, a importância de Mazzaropi. “O nosso Chaplin foi o Mazzaropi, que eternizou a figura do Jeca como Chaplin fez com o vagabundo”, resume.
“Ele ainda é uma referência. Mesmo pessoas de outras gerações, quando veem seus filmes percebem que são eternos, porque ainda fazem rir, ainda divertem, ainda dialogam com os sentimentos. Mazzaropi encantou, encanta e encantará ainda muitas gerações”, acredita ele.
Para o roteirista Lusa Silvestre, Mazzaropi faz parte da história da cultura brasileira “porque era popular, enchia o cinema de gente com as histórias em que ele trazia, por mais contraditório que possa parecer, ingenuidade e gaiatice ao mesmo tempo”.
“Adorável. O cinema de Mazzaropi formou uma geração de brasileiros que se acostumou a ver bons filmes brasileiros no cinema”, prossegue Silvestre.
“Ele queria botar gente no cinema. Ponto. Levar graça a todo lugar. Isso continua sendo prioridade para mim: que meu trabalho alcance os rincões do Brasil, hoje busco um cinema nacional menos nichado. Que tenha arte e leveza, que tenha autoralidade, mas que tenha também um dedo no pulso do povo. Isso é um baita legado.”
“O cinema era a vida dele e isso tudo transparece na obra que ele criou”, sintetiza o historiador Afonso.
Por Edison Veiga, na BBC Brasil
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