Alvos cada vez mais constantes de ataques misóginos, repórteres mulheres enfrentam dificuldades de exercer plenamente a profissão no país
Em 12 anos de experiência em redações dos grupos Estado e Folha, em São Paulo, a jornalista Fabiana Cambricoli foi vítima de diversas agressões virtuais por conta de seu trabalho como repórter. Durante a pandemia, ela sofreu perseguições orquestradas a cada reportagem que questionava o uso de medicamentos sem evidência científica contra covid-19.
“Ameaças e xingamentos misóginos passaram a ser constantes”, conta Cambricoli. “Me senti completamente vulnerável e desamparada.” A jornalista relata ainda outro episódio que ocorre após uma reportagem com críticas de pacientes de um serviço de saúde implementado pela prefeitura paulistana sob a gestão do tucano João Doria, em 2017.
“Uma página do Facebook, que apoiava o Doria, publicou meu perfil pessoal, inclusive destacando uma foto minha de viagem, em férias, a Cuba. Começaram a dizer que eu era comunista. Descobriram meu celular e passei a receber mensagens ameaçadoras por WhatsApp”, conta. “Se fossem críticas à matéria, tudo bem, mas a maioria eram ofensas pessoais, com xingamentos típicos dirigidos a mulheres, como ‘vadia’, ‘putinha’, ‘vaca’, ‘vagabunda’. Havia ameaças e incitação ao ódio.”
Apesar dos ataques, Cambricoli jamais deixou de realizar seu trabalho, porém, passou a tentar antecipar as reações que surgiriam após a publicação de determinadas reportagens e restringiu sua atuação nas redes sociais. “Isso não me impedia de trabalhar, mas me deixava mais tensa, como se estivesse sempre com a faca no pescoço, pensando na repercussão pessoal do trabalho”, diz. “Mesmo tendo 100% de segurança de minha apuração e sendo supercriteriosa, dando espaço para todos os lados.”
Os ataques a Cambricoli não são um caso isolado na realidade de jornalistas no Brasil. Uma pesquisa divulgada no mês passado pelas organizações Gênero e Número e Repórteres Sem Fronteiras aponta que 55% das jornalistas mulheres e/ou LGBTs enfrentam dificuldades no trabalho diário no atual contexto de desinformação — para 92,5% delas, o fenômeno está em um estágio “muito grave”.
Para 86% das entrevistadas, o cenário piorou no governo do atual presidente Jair Bolsonaro, iniciado em 2018. Quase 42% delas relataram já terem sido vítimas de violência online por causa do exercício da profissão e 85% se viram obrigadas a mudar o comportamento nas redes sociais como forma de se protegerem de ataques.
“Toda vez que você publica uma matéria contra o governo Bolsonaro, você sofre agressões. Nós mulheres chegamos a receber até imagens pornográficas”, contou uma jornalista que trabalha na capital paulista ouvida pela DW Brasil que preferiu não ser identificada por temer represálias.
“Uma vez recebi uma mensagem no WhatsApp. A pessoa dava detalhes sobre minha rotina, falava sobre meu filho citando o nome dele e a escola onde ele estudava. Dizia para eu tomar cuidado, apenas. Fiquei algumas semanas completamente em choque, olhando para todos os lados sempre que estava em local aberto. Depois, passou. O pior disso tudo é que a gente acaba se acostumando e até naturalizando um problema que não deveria existir num estado democrático”, conta uma jornalista de Brasília, que também preferiu falar na condição de anonimato.
Mulheres como alvo
Segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), as agressões contra jornalistas aumentaram 248% de 2019 até hoje. Somente em 2021, foram registrados 453 ataques contra comunicadores e meios de comunicação — em 69% das vezes, agentes estatais eram os perpetuadores, sendo que o presidente Bolsonaro, sozinho, foi responsável por 89 destas agressões no último ano.
Destes ataques, 10% foram classificados como “de gênero”, ou seja, que trazem elementos ligados à sexualidade, orientação sexual ou identidade de gênero como recurso para agredir as vítimas. Destes 78% dos alvos foram mulheres.
Um relatório da Abraji mostrou ainda que 127 jornalistas e meios de comunicação foram alvos de ataques de gênero em 2021, sendo que mulheres, cis e trans, representam 91% das vítimas. Em 95% dos casos os agressores eram homens.
De acordo com a assessora jurídica da Abraji, Letícia Kleim as mulheres sofrem uma dupla violência, por ser jornalistas e por ser mulher. “A posição que elas ocupam de projeção com a atividade jornalística as tornam alvos frequentes do machismo e da misoginia”. No dia a dia, as jornalistas acabam sendo atacadas geralmente por argumentos que vão além do trabalho em si, mas com agressões relacionadas à moral, aparência e sexualidade.
A secretária-executiva da Abraji, Cristina Zahar acrescenta que esses ataques “cerceiam a liberdade de imprensa de várias formas”, porque “intimidam os profissionais, provocam a autocensura e desencorajam investigações de interesse público”. “E o único objetivo é prejudicar o trabalho jornalístico de fiscalizar o poder público e investigar os poderosos. E, como é sabido, sem liberdade de imprensa não há democracia”, diz ela.
Misoginia impulsiona ataques
“A misoginia e a homofobia são peculiares a uma parcela significativa dos brasileiros, que era apenas conservadora até o golpe de 2016 e a subsequente eleição de um presidente da República de extrema-direita. Com a óbvia hostilidade dele a negros, indígenas, LGBT+ e jornalistas em geral, esse preconceito violento acabou atingindo também as repórteres, outrora protegidas pela respeitabilidade dos jornais e revistas, agora também em xeque”, avalia a jornalista Leda Beck, vice-presidente da Associação Profissão Jornalista (APJor).
Para ela, Bolsonaro “dá o exemplo odiento aos berros, exatamente como fez nos seus 30 anos de deputado federal”. “Ele ‘naturaliza’ aberrações como essas e difunde a ideia de que o insulto e o desrespeito são aceitáveis”, comenta. “Pior: supõe que se trata de ‘liberdade de expressão’.”
Beck lembra, no entanto, que o assédio moral e sexual às jornalistas sempre existiu nas grandes redações brasileiras e na interação com fontes, a diferença agora é que esses comportamentos extrapolaram para o domínio público. “Para um homem que odeia jornalistas em geral [Bolsonaro], ser abordado por repórteres mulheres deve ser intolerável.”
Cerceamento do papel da mídia
Para os especialistas ouvidos pela DW Brasil, a sociedade também paga um preço por esse fenômeno. Com essa violência, muitas jornalistas acabam se impondo, conscientemente ou não, uma autocensura. Como resultado, o direito à informação fica prejudicado, já que muitas investigações podem não ser feitas a contento.
“Se a repórter não pode concluir uma entrevista porque é insultada e ameaçada, não é só a liberdade de imprensa que está sob ataque: é o próprio direito à informação, um pilar essencial das sociedades democráticas”, pontua Beck.
A jornalista Márcia Neme Buzalaf, professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL), concorda que essa situação acabou ficando “mais latente” sob o atual governo, principalmente porque há um gabinete dedicado a movimentar as redes sociais com desinformação, “usando de piadinhas, enxurrada de memes, muitas vezes sexualizando jornalistas que fazem trabalhos investigativos”.
” [Um efeito disso] é a possível autocensura”, diz ela. “Principalmente em relação a redes sociais. Isso porque a pessoa é ameaçada, muitas vezes envolvendo a família, os filhos. Fica com medo, obviamente”, afirma Buzalaf.
Para a jornalista Patrícia Paixão, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um fator que abala mais é que os ataques virtuais direcionados a mulheres muitas vezes trazem “conotação sexual”. E ela concorda que muitas vezes as jornalistas são “vencidas pelo cansaço” e passam a evitar certos temas, ainda que apenas nas redes sociais. “Toda mulher que já trabalhou como repórter em Brasília, e eu fui uma delas, já sentiu na pele como o machismo atinge as mulheres nessas coberturas”, comenta.
“Autoridades e personalidades, eleitas nas urnas ou não, tendem a ameaçar mulheres repórteres caso elas questionem sobre denúncias envolvendo as empresas ou órgãos públicos que dirigem. A misoginia, a homofobia e preconceitos raciais afloram quando os repórteres não têm padrões sociais masculinos, o que demonstra um atraso cultural inaceitável”, afirma o jornalista Angelo Sottovia Aranha, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“No entanto, ao facilitar a troca de ofensas em virtude do distanciamento físico, as redes sociais inviabilizaram o debate, o bom debate fundamentado em conhecimentos, na história, na vivência e na ciência. Sem debates inteligentes será difícil reverter esse quadro de desrespeito, esse abuso que só amplifica a desinformação e promove a ignorância”, acrescenta Sottovia.
Voz do Pará com informações do DW