Uma agenda ambiental para Lula

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Desmatamento zero. Replantio de florestas, com espécies nativas. Iniciar a transição agroecológica. Investir em energia fotovoltaica e eólica. Num país em que tantas boiadas passaram, recuperação será árida e pedregosa – mas é preciso traçar uma rota

A questão do meio ambiente atravessa (ou deveria atravessar) o conjunto de qualquer programa de governo e, os critérios e objetivos definidos para o enfrentamento das questões ambientais deverão ser a referência para todos os outros temas. Quando Lula se elegeu em 2002, chamou Marina Silva para ministra do Meio Ambiente e a grande ambientalista definiu claramente as suas condições: a questão ambiental deveria ser transversal, afetando as decisões de todos os demais ministérios. Lula aceitou a premissa, mas não foi preciso mais do que uns poucos meses de governo para ficar claro que não era para valer. Marina foi ficando no governo em que perdeu espaço desde o dia da sua posse e engolindo sapos cada vez mais venenosos (transgênicos, transposição do São Francisco, Belo Monte e muito mais), até que o copo de mágoas encheu e ela se despediu. Foi uma pena porque o princípio era totalmente correto, e Marina tinha razão – antes dessa razão ser aceita social e politicamente. Vinte anos depois, será que Lula e o PT entenderam o problema? Tenho muitas dúvidas, mas certamente algo deve ter evoluído, nem que seja pela pressão internacional sobre os temas ambientais.

As dimensões da “questão ambiental” são imensas e variadas as suas expressões. Na opinião pública destaca-se a questão do desmatamento e das queimadas e ela é capital no que concerne o tema da emissão de gases de efeito estufa. Afinal, o Brasil é um dos maiores contribuintes mundiais para o aumento das emissões em todo o planeta e a nossa principal forma de ajudar a enterrar o futuro da humanidade é pela destruição das nossas florestas via desmatamento e queimadas. No governo Bolsonaro esta catástrofe se acelerou, mas ela já vinha acontecendo desde muito tempo.

O PT diz que nos governos Lula e Dilma houve uma redução dos desmatamentos/queimadas e isto de fato aconteceu, mas o fator mais importante a provocar a redução no período 2003-2015 foi a crise econômica de 2008, que deu um enorme freio no conjunto das exportações brasileiras, em particular as que pressionam mais as matas, como a criação de gado. Lembremos que o ano com maior desmatamento, até o recorde de 2021, foi 2006, o último do primeiro governo de Lula. Ou seja, as concessões ao agronegócio sempre nos mantiveram longe do objetivo fundamental a ser alcançado, que é o desmatamento zero.

Vinte anos depois da primeira eleição de Lula a importância deste objetivo ficou ainda mais dramática com o último relatório do IPCC. O relatório aponta para prazos muito mais reduzidos do que previsto no acordo de Paris para chegarmos ao momento trágico em que a temperatura média mundial terá ultrapassado os 1,5oC a mais em relação às temperaturas do início da era industrial. Segundo as novas previsões, se nada for feito rapidamente e muito radicalmente chegaremos a este momento crítico até o fim desta década.

Para conseguir o desmatamento zero no próximo governo vai ser necessário recompor os instrumentos de controle dos desmatamentos e queimadas, em particular o Ibama e o ICMBio, e criar uma força tarefa de detecção e repressão policial aos desmatadores e incendiários. Colocar em ação os instrumentos legais de cobrança rigorosa das violações dos interditos neste campo forçará o agronegócio a se enquadrar ou a ser varrido, pela ação da lei, das áreas que destruiu. Com o acompanhamento em tempo real por satélite de qualquer queimada mais significativa é possível agir e pegar em flagrante os incendiários. Um programa deste tipo teria certamente o apoio material dos países mais ricos e preocupados com o aquecimento global, como Alemanha e Noruega, entre outros. Com quatro anos de desmatamento impune tanto em terras públicas como privadas, os agentes da destruição ficaram ousados e se armaram com armas pesadas, aproveitando todos os incentivos do energúmeno presidente. Estes grupos chegam hoje a atos de guerra contra o pouco que restou do Ibama. Invadir um aeroporto para queimar helicópteros da agência foi um dos atos mais agressivos dos bandos armados que estão tomando conta do interior da Amazônia. Controlá-los e controlar o desmatamento e as queimadas vai ser uma guerra, literalmente.

Para além do desmatamento zero, vai ser necessário iniciar uma intensa campanha de reflorestamento com espécies nativas, mirando na recomposição das áreas de reserva legal de todas as propriedades em todos os biomas. Cada proprietário rural vai ter que fazer um inventário do estado das reservas de mata sob sua responsabilidade e propor um plano de reflorestamento a ser submetido ao Ibama. Por outro lado, governos estaduais e federal terão que assumir o reflorestamento de áreas públicas e terras devolutas ditas “degradadas” e que não têm mais dono. Este é outro programa estratégico a ser submetido aos países ricos, pois poderá rapidamente retirar da atmosfera milhões de toneladas de CO2, o mais comum dos gases de efeito estufa.

Calcula-se em 40 milhões de hectares o tamanho desta área degradada e o plano para reflorestá-la vai exigir um grande esforço na criação de viveiros de espécies nativas espalhados por muitos estados do país, de modo a fornecer os meios para este reflorestamento. E quem pode assumir o esforço de plantar e cuidar das novas árvores até que alcancem força para sobreviver sozinhas? Vi programas de reflorestamento na África plantarem milhões de mudas apenas para vê-las desaparecerem após uns poucos anos de cuidados pagos pelos doadores. Findo o apoio financeiro, o esforço das aldeias em manter os novos e ainda jovens bosques desapareceu e na primeira seca as árvores morreram ou foram cortadas para lenha.

O que precisamos em um programa destes é o que um agrônomo e ambientalista francês chamou de “jardiniers de la nature”, ou jardineiros da natureza. Entregar terras para famílias de sem-terra para que recuperem as áreas de mata nativa contra pagamento como serviço público é uma possibilidade a ser considerada. Estas propriedades poderão ou não, dependendo do caso, serem utilizadas também para cultivos pela família dos “jardineiros”, de modo a poderem se manter com uma atividade econômica depois de terminado o processo de reflorestamento. Estamos falando de 2 milhões de jardineiros da natureza e o custo desta empreitada não será pequeno. Vai ser necessário criar uma infraestrutura residencial e coletiva qualificada para atrair esta mão de obra, além dos investimentos no próprio processo de reflorestamento. Outro programa que pode atrair os recursos internacionais.

Já foi mencionada no texto anterior sobre a fomea contaminação por agrotóxicoscom impactosmúltiplos na flora e na fauna, nos produtores e nos consumidores. O Brasil tornou-se o maior consumidor de agrotóxicos do mundo nos últimos quatro anos. Não foi só se tornar o campeão dos veneneiros. Com a liberação de quase 2 mil novos agrotóxicos no governo Bolsonaro nos tornamos o paraíso dos produtores de veneno de todo o mundo, pois muito do que é proibido no planeta passou a ser permitido aqui. E mesmo o que ainda é proibido tem todas as facilidades para ser contrabandeado e vendido livremente no país. E a pressão para liberações cada vez mais ousadas continua forte, sendo a última proposta a volta da autorização do paraquat, proibido em quase todo o mundo e considerado extremamente perigoso. O programa de redução do uso de agrotóxicos elaborado no final do governo de Dilma pela Articulação Nacional de Agroecologia deveria voltar para uma agenda de aplicação imediata, bem como a revisão radical de todas as liberações realizadas nos últimos dez anos.

No caso dos agrotóxicos, a Anvisa teve um papel bem diferente do que assumiu no caso das vacinas contra a covid. A agência redefiniu os critérios de classificação dos agrotóxicos, afrouxando-os de tal forma que transformaram a grande maioria destes venenos em produtos inofensivos. Não há explicação científica para este procedimento e sim uma evidente cumplicidade com a indústria de agrotóxicos e com o agronegócio. Aliás, a Anvisa já tinha adotado posições totalmente anticientíficas no caso da redefinição da quantidade tolerável de glifosato(herbicida de amplo espectro, o mais utilizado no mundo) em grãos de soja, após a liberação da soja transgênica. Em um passe de mágica, a agência aprovou a multiplicação por dez da quantidade de resíduos de glifosato aceitáveis em grãos destinados ao consumo humano ou animal. Quais os números corretos? Os que prevaleciam nas regras anteriores à liberação da soja transgênica ou os novos? A única coisa que mudou entre um momento e o outro foi o aumento de resíduos de glifosato pelo tipo de aplicação de veneno que a soja transgênica passou a permitir.

Vai ser preciso rever a composição e o funcionamento da Anvisa e,garantir que o interesse científico prevaleça sobre os interesses econômicos. No caso das vacinas, eu me sentiria mais confiante nas decisões da agência se elas não coincidissem com os interesses dos grandes laboratórios farmacêuticos. Lembremos que a Anvisa demorou um bocado para liberar a vacina chinesa Coronavac, praticamente apenas depois que a vacina do laboratório americano Pfizer e a da inglesa AstraZeneca foram liberadas. No caso das vacinas, o negacionismo de Bolsonaro e seus asseclas empurrou-nos todos a louvar o “rigor científico” da Anvisa, mas o histórico da agência não é dos melhores.

O novo governo deverá promover um programa de redução do uso de agrotóxicos, coisa que não tem nada de revolucionário. O programa da FAO de manejo integrado de pragas existe há pelo menos 30 anos e tem tido resultados espetaculares em todo o mundo, sendo financiado pesadamente pelo Banco Mundial. Reduções da ordem de 80% nos volumes de agrotóxicos em uso nas plantações de arroz das Filipinas são um exemplo emblemático e já bem consolidado a ser seguido no Brasil. Programas deste tipo são um alívio para o meio ambiente e para os seres vivos, mas somente a substituição dos sistemas produtivos do agronegócio pela produção agroecológica permitirá a eliminação total do uso de agrotóxicos.

Embora a matriz energética brasileira seja, em comparação com a maioria dos países ricos e em desenvolvimento, bastante limpa, sucessivos governos estão se esmerando em sujá-la. Nunca tivemos tanta energia fóssil em uso no Brasil, sobretudo pelo uso das usinas termoelétricas à base de óleo combustível, gás ou carvão. Por outro lado, estamos cada dia com mais dificuldades com a geração de energia hidroelétrica devido à crescente irregularidade das chuvas no Brasil, quer na sua distribuição geográfica quer na intensidade das precipitações. O fantasma do apagão está pairando sobre o país há anos e só não voltou a ocorrer ainda porque estamos cada vez mais nos apoiando nas termoelétricas.

Precisamos tomar duas iniciativas importantes, mas cujos efeitos não serão sensíveis no curto prazo. Uma é o já citado reflorestamento, em particular na Amazônia, que pode restaurar (embora desequilíbrios ambientais planetários maiores possam impedir a volta às condições anteriores) o equilíbrio das reservas hídricas das nossas barragens. Como a segurança hídrica está ameaçada, teremos que tomar outra medida para limpar a nossa matriz energética. Não podendo depender totalmente das hidrelétricas por um bocado de tempo até que o efeito do reflorestamento se faça sentir, teremos que abandonar os planos de novas hidroelétricas (que também têm enormes impactos ambientais) e reforçar a adoção da energia eólica e da energia solar, sobretudo desta última.

A substituição paulatina, mas acelerada, dos combustíveis fósseis por energia renovável é uma necessidade planetária urgentíssima. Enquanto estamos discutindo se a Petrobras deve ser privatizada e quem deve explorar o pré-sal, o planeta arde em consequência da emissão dos gases de efeito estufa, sendo que os emitidos pelos combustíveis fósseis estão entre os principais culpados da nossa situação. É preciso parar a discussão sobre quanto tempo mais vão ser usados os derivados do petróleo como geradores de energia para iniciarmos a discussão sobre que outros usos mais nobres podem ser dados para estes produtos, sem os efeitos catastróficos a que assistimos.

Não é algo para o futuro remoto. É para hoje, se é que queremos ter um amanhã. Investimentos maciços devem ser dirigidos para dois fins: reduzir em muito o transporte privado individual e substituí-lo por transporte público de qualidade e movido a energia renovável; implantar sistemas de geração de energia solar em todos os locais, cidades e zona rural. O planejamento desta transição deverá ter a participação de todos os setores consumidores de energia, inclusive os individuais através de consulta aos síndicos e mobilização de condomínios e associações de moradores. Investimentos importantes deverão ser feitos em pesquisas para aperfeiçoar de forma permanente os equipamentos para captação da energia solar e sua conservação.

Para um país que tem o mito do carro individual como algo fortíssimo inclusive nas classes com menos recursos; para um país em que o transporte de cargas essenciais depende de caminhões e que boa parte do transporte urbano passa por autos individuais ou ônibus; para um país onde todos os privilégios são concedidos às indústrias automotrizes, vistas como motores da economia: a mudança proposta é, certamente, um choque. Mas pensem bem se não faz sentido mudar a matriz do transporte de cargas dos caminhões movidos a diesel para trens elétricos e das pessoas de seus carros ou ônibus para metrôs e VLTs. É claro que o sistema de transporte terá que ser fortemente modernizado e expandido para se tornar algo agradável, confortável, rápido e seguro. Com menos veículos nas cidades e nas estradas a circulação vai ficar mais fluida e menos poluente. Matam-se vários coelhos ambientais e sociais de uma só tacada.

Tudo isto nos leva a dizer que o atual debate sobre o controle de preços dos derivados do petróleo está inteiramente defasado. O preço internacional tende historicamente a subir na medida em que se aproxima o esgotamento das reservas, sobretudo as de mais fácil acesso e menor custo de extração. Segurar os preços da gasolina e do diesel com subsídios estatais é um absurdo e só faz dificultar o processo de transição para uma matriz energética sustentável. Além disso, o custo de se baratear a gasolina dos donos de automóveis seria altíssimo e faria falta na resolução de outros problemas mais urgentes. Sim, podemos subsidiar o gás de cozinha para os mais pobres e o diesel para os caminhoneiros. Mas neste último caso, o programa terá que ser acoplado com uma estratégia de reorientação dos transportes de cargas, investindo nas infraestruturas de transporte ferroviário, hidroviário e de cabotagem.

Existem vários outros problemas ambientais de grande importância no Brasil. A poluição industrial é gigantesca, quer em partículas sólidas no ar, gases tóxicos e de efeito estufa, em lixo de todo tipo e em desova de poluentes em cursos d’água, entre outros. Vai ser preciso um esforço legislativo, mas ainda mais: um esforço de aplicação das leis e enquadramento dos poluidores. Pneus, plásticos, pilhas, restos de equipamentos eletrônicos, latas, papel e papelão e muito mais se acumulam no solo e nas águas do país, sem qualquer responsabilização dos fautores. Usinas de açúcar e álcool derramam vinhoto na natureza sem maiores cuidados. Indústrias químicas envenenam solo, água e ar sem limites.

As questões são muitas e têm especificações que exigem respostas particulares que não cabem aqui. O que cabe é afirmar o princípio já antigo ao ponto de ter virado um truísmo: o poluidor tem que pagar. O objeto não é punir nem destruir, mas educar e prevenir. Mas o instrumento punitivo é o único que resta a uma sociedade afogada em restos malsãos do desenvolvimento capitalista.

Não estamos propondo a estatização dos meios de produção, nem a sua socialização, mas quem ganha com o empreendedorismo capitalista tem que fazer a sua parte e não agredir a sociedade nem o meio ambiente onde esta sociedade tem que viver, enquanto os capitalistas vivem em universos segregados e protegidos da poluição e da violência dos não privilegiados.

Só tem uma má notícia para os ricaços: o mundo não vai guardar espaços reservados para que possam viver bem enquanto o resto se ferra. O impacto do desregramento climático não conhece fronteiras nem espaços protegidos. O dinheiro não dará conta de salvar os ricos; no máximo vai adiar o amargo fim.

Por Jean Marc von der Weid

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