O entrelaçamento entre emoção e linguagem moldou a cultura, demonstra Maturana. Mas insensatez do patriarcado, que submete o outro e a natureza, condicionou nossa cognição. Desaprisioná-la é possível à crise civilizatória
Este artigo, cujo título original é Emoção e linguagem, o entrelaçamento que molda a cultura, é o segundo que se propõe a investigar as raízes das dificuldades enfrentadas pelas tentativas de governança democrática pela humanidade até hoje e, ao mesmo tempo, buscar uma compreensão ampliada acerca do acelerado e preocupante declínio dos regimes democráticos na contemporaneidade e dos possíveis desdobramentos da onda autoritária num futuro próximo.
Leia tambem o primeiro artigo: A nova democracia e a abolição do patriarcado
(Ronald Laing)
“Civilização e barbárie não são tipos diferentes de sociedade. São encontrados – entrelaçados – sempre que os seres humanos se juntam.”
(John N. Gray)
Dentre todas as formas de convivência humana já experimentadas pela civilização, nos mais diversos lugares e recantos do globo, duas principais categorias de sociabilidade têm se destacado. Uma chamaremos de imperialista e a outra de democrática, levando em conta o padrão de relação que se estabelece entre os indivíduos, as sociedades e até mesmo entre os países, tidos como civilizados, bem como entre estes agrupamentos humanos e os ecossistemas nos quais eles se encontram e se relacionam. A principal característica que as distingue é que na sociabilidade imperialista há uma imposição de um único e suposto melhor modo de viver e, assim, ela tenta, invariavelmente por meios violentos, moldar o mundo segundo seu desejo de controle e dominação das realidades em seu entorno, enquanto a sociabilidade democrática está amparada na coexistência de muitos modos de vida e, portanto, aceita a diversidade humana e ambiental e, assim, procura dialogar e tirar o melhor proveito da rica complexidade da teia de relações que constitui o mundo real.
O curso da história tem demonstrado que a sociabilidade imperialista sempre foi prevalente e, por essa razão, delimitadora da convivência democrática, nos raros momentos em que esta tentou se estabelecer como regime político de um povo ou de um país. Por isso, o longo e turbulento processo civilizatório, cuja dinâmica sempre esteve entrelaçada à da violência imperialista, coincide com a história de uma cultura de dominação, competição, fragmentação e degradação, em detrimento de uma cultura de tolerância, cooperação, integração e vitalidade. Essa sociabilidade imperialista é a que se constituiu como matriz cultural do modo de viver do animal humano, estabelecida a partir da transição ocorrida em algum momento após a revolução agrícola ocorrida há 12 mil anos, quando o homem começou a tornar-se sedentário e gradualmente surgiu o que conhecemos por civilização. Portanto, ela é subjacente a todas as cosmovisões que sustentaram as diversas modalidades e tentativas de harmonizar a convivência humana.
Essa noção histórica e cultural contradiz, obviamente, o entendimento predominante no qual, segundo os estudos sociológicos e antropológicos, a civilização compreenderia um estágio mais avançado das sociedades humanas, o qual supostamente teria sido precedido primeiro por uma fase de “selvageria” (caçadores-coletores) e depois por uma de “barbárie” (agricultores e pastores). Essa contradição foi observada pelo sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein ao levantar o seguinte questionamento: “somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.” Para constatarmos a verdade nessa percepção de Wallerstein, basta olharmos para destruição patrocinada pelo homem ao longo do trágico século XX, período da história marcado por duas guerras mundiais e por totalitarismos sanguinários, em que se perpetrou as maiores atrocidades contra a condição humana. E o prognóstico para o século XXI não está longe de ser diferente.
Admitindo e corroborando com essa contradição apontada por Wallerstein, duas premissas sobre o comportamento humano e de suas sociedades, defendidas pelo neurobiólogo chileno Humberto Maturana, explicam as origens desses dois modos de sociabilidade (o imperialista e o democrático), como parte de uma fenomenologia cultural que direciona e condiciona o modo de viver do animal humano.
Eis as premissas:
1) O viver humano está fundado no emocional e não no racional, a despeito de toda uma longuíssima construção filosófica e científica ter sido histórica e culturalmente desenvolvida em sentido contrário, o qual Maturana define nos seguintes termos:
“A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações. Além disso, creio que são nossas emoções (desejos, preferências, medos, ambições…) – e não a razão – que determinam, a cada momento, o que fazemos ou deixamos de fazer. Cada vez que afirmamos que nossa conduta é racional, os argumentos que esgrimimos nessa afirmação ocultam os fundamentos emocionais em que ela se apoia, assim como aqueles a partir dos quais surge nosso suposto comportamento racional.”
2) A deriva evolutiva que deu origem à linhagem do primata Homo sapiens foi fortemente influenciada pelo aparecimento e desenvolvimento da linguagem, que Maturana chama de “linguajear” e sintetiza nos seguintes termos:
“Nós, humanos, surgimos na história da família dos primatas bípedes à qual pertencemos quando o linguajear – como maneira de conviver em coordenações de coordenações comportamentais consensuais – deixou de ser um fenômeno ocasional. (…) Além disso, penso que, ao surgir como um modo de operar na convivência, o linguajear apareceu necessariamente entrelaçado com o emocionar.”
É a partir dessas duas premissas e do entrelaçamento recursivo entre o emocionar e o conversar que Maturana observa como uma cultura é forjada e se estabelece como modo de viver, isto é, como surgem os padrões de comportamento que sustentam o cotidiano das sociedades humanas. Essa noção de cultura é caracterizada por Maturana como “uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de emoções e ações”, portanto, “uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem”. E uma cultura “desaparece ou muda quando tal rede de conversações deixa de ser preservada.”
Em razão dessas premissas e considerações sobre a noção de cultura, Maturana afirma que “se não entendermos que o curso das ações humanas segue o das emoções, não poderemos compreender a trajetória da história da humanidade.” Daí a importância de compreendermos o processo civilizatório e sua agonia atual a partir da noção de cultura, compreendendo-a como capacidades desenvolvidas, no sentido antropológico do termo, no qual criamos crenças, valores, técnicas, arte, moral, costumes etc, que, em conjunto, expressam as visões de mundo por meio das quais se desencadeiam dois tipos de comportamento: somos impelidos a querer moldar a nossa realidade segundo a nossa vontade, ou nos adaptamos e nos integramos aos nossos contextos ambientais.
Assim, as duas sociabilidades a que me referi no início, a imperialista e a democrática, têm a ver com dois casos específicos de modos de viver estudados por Maturana: “um é a cultura básica na qual nós, humanos ocidentais modernos, estamos imersos – a cultura patriarcal europeia. O outro é a cultura que, sabemos agora (Marija Gimbutas, 1982 e 1991), a precedeu na Europa e que chamaremos de cultura matrística. Essas duas culturas constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas.” Para chegar a essa percepção acerca do que forjou essas duas culturas, Maturana ampara-se em achados arqueológicos que explicam a ocorrência de uma grande transformação cultural no modo de viver do Homo sapiens, considerando as pesquisas da arqueóloga lituana Marija Gimbutas, as quais foram abordadas no livro O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro (Palas Athena, 2008) da escritora austríaca Riane Eisler.
Houve, conforme essa perspectiva, um longo processo de bifurcação cultural em que, segundo Maturana, “a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos”. A partir dessa grande transformação cultural, o patriarcado passou a moldar todo o curso da história. O patriarcado constitui, assim, a matriz cultural do nosso modo de viver, que subjaz a todas as dimensões da experiência humana, inclusive nos âmbitos da ciência e da filosofia, tendo tudo o mais se desdobrado a partir dessa dinâmica patriarcal, nos mais diversos campos da experiência humana.
A sociabilidade imperial está, portanto, associada ao modo de vida patriarcal que permeou toda a história da humanidade e é caracterizado, conforme a definição de Maturana, “pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade”. Já a sociabilidade democrática tem relação com a cultura pré-patriarcal a que se refere Maturana, que se convencionou chamar de cultura matrística e que é caracterizada, também conforme Maturana, por “conversações de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e coinspiração”, atributos que evidenciavam uma cultura “centrada no amor e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte”.
Inclusive, foi considerando a premissa do entrelaçamento entre o emocional e o linguajear, indutora da evolução dos primatas, que Maturana concebeu a “biologia do amor”, que ele expressa da seguinte forma: “viver dessa maneira requer uma abertura emocional para a legitimidade da multidimensionalidade da existência que só pode ser proporcionada pela biologia do amor. A vida matrística europeia pré-patriarcal estava centrada no amor, como a própria origem da humanidade, e nela a agressão e a competição eram fenômenos ocasionais, não modos cotidianos de vida.” Trata-se aqui da alteridade que Maturana identifica como uma característica inerente à natureza humana, que permitiu chegarmos até aqui, como ele mesmo reforça: “a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade.”
“O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde o início”, afirma Maturana. A palavra amor aqui está mais associada à noção de cuidado mútuo do que a qualquer conotação cristã ou romantizada que ela enseja no senso comum, ou seja, diz respeito à “emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência”. Por isso é que Maturana afirma, com base na biologia, que 99% das enfermidades humanas estão relacionadas à negação do amor, na medida em que a aceitação do outro é o fundamento biológico do fenômeno social.
Seguindo uma linha de pensamento semelhante, o filósofo político britânico John Gray reforça essa compreensão de Maturana ao constatar o desvio da cultura patriarcal a partir do seguinte diagnóstico: “a saúde pode ser a condição natural das outras espécies, mas no caso dos homens o normal é a doença. Estar cronicamente doente é parte do que significa ser humano”. Dizendo de outro modo, insistir em continuar condicionado à cultura patriarcal é permanecer num interminável estado patológico que, no limite, poderá nos matar a todos.
Estamos, desse modo, presos a um condicionamento patriarcal gerador de inúmeros massacres e destruições pela história. Isso nos induz a pensar que a conflituosa convivência humana é algo inerente à natureza humana, ideia justificada pela visão hobbesiana de que “o homem é o lobo do homem”. Pelo contrário, o processo de condicionamento da cultura patriarcal está atrelado a outra dinâmica, que Maturana expressa da seguinte forma: “as crianças, homens e mulheres devem tornar-se patriarcais na vida adulta, cada um segundo o seu gênero. Os meninos devem tornar-se competitivos e autoritários, as meninas serviçais e submissas. Os meninos vivem uma vida de contínuas exigências, que negam a aceitação e o respeito pelo outro, próprios de sua infância. As meninas vivem uma vida que as pressiona continuamente para que mergulhem na submissão, que nega o autorrespeito e a dignidade pessoal que adquiriram na infância. A adolescência e seus conflitos correspondem a essa transição.”
Esse longo processo de transição entre a cultura matrística e a patriarcal deu-se, gradualmente, quando relações de apropriação e de hierarquia tornaram-se frequentes entre os seres humanos e os outros animais de seu convívio, dentro da vida pastoril dos nossos ancestrais indo-europeus, na qual, segundo Maturana, “a rede de conversações que constituiu a vida pastoril patriarcal se tornou a mesma rede que estruturou o patriarcado”, desencadeando uma “mudança emocional” e, ao mesmo tempo, uma alteração no linguajear, cuja dinâmica comportamental ele descreve no seguinte trecho do seu ensaio Conversações Matrísticas e Patriarcais:
“Se quisermos compreender como ocorreu uma mudança de cultura histórica, teremos de imaginar as condições de vida que tornaram possível a modificação no emocionar sob o qual se deu tal mudança, dando origem a uma rede de conversações que começou a se manter como resultado de sua própria realização.
Voltemos agora ao que creio ter acontecido na adoção do modo de vida pastoril por nossos ancestrais indo-europeus pré-patriarcais. O primeiro passo foi a operação inconsciente que constitui a apropriação, isto é, o estabelecimento de um limite operacional que negou aos lobos o acesso a seu alimento natural, que eram os animais da mesma manada da qual vivia a família que começou tal exclusão. A implementação do limite operacional cedo ou tarde levou à morte dos lobos. Matar um animal não era, seguramente, uma novidade para nossos ancestrais. O caçador tira a vida do animal que irá comer. Contudo, fazer isso e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural – e agir assim de modo sistemático – são ações que surgem sob emoções diferentes. No primeiro caso, o caçador realiza um ato sagrado, próprio das coerências do viver no qual uma vida é tirada para que outra possa continuar. No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindo-se diretamente à eliminação da vida do animal que mata. Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa prosseguir; aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse mesmo ato.
As emoções que tornam essas duas atitudes completamente diferentes são de todo opostas. Na primeira circunstância o animal caçado é um ser sagrado, que é morto como parte do equilíbrio da existência; aqui, o caçador que tira a vida do animal caçado fica agradecido. Na segunda alternativa, o animal cuja vida se tira é uma ameaça à ordem artificial, criada em seu ato pela pessoa que se transforma em pastor. Nessa situação, ela fica orgulhosa. Entretanto, note-se que tão logo as emoções que constituem essas duas ações se tornam aparentes, também fica claro que na ação de caça o animal caçado é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo.
Com efeito, acho que com a origem do pastoreio surgiu o inimigo – aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa. Ou seja: mantenho que a vida pastoril de nossos ancestrais surgiu quando uma família que vivia seguindo os movimentos livres de alguma manada silvestre adotou o hábito de impedir a outros animais – que eram comensais naturais – seu livre acesso à dita manada. Em tal processo, esse hábito se transformou numa característica conservada de modo transgeracional, como forma de vida cotidiana dessa família. Doravante, falarei em caçada apenas para referir-me ao primeiro caso. Na segunda hipótese, falarei em matar ou assassinar.
Além disso, sustento que a adoção desse hábito numa família deve ter comportado, como um traço desse mesmo processo, mudanças adicionais no emocionar. Estas a levaram a incluir, juntamente com o emocionar da apropriação, outras emoções, como a inimizade; a valorização da procriação, bem como a associação da sexualidade das mulheres a esta; o controle da sexualidade das mulheres como procriadoras pelo patriarca e o controle da sexualidade do homem pela mulher como propriedade; a valorização das hierarquias e a obediência como características intrínsecas da rede de conversações que constituiu o modo pastoral de vida.”
Inclusive, sobre essa ideia, universalmente aceita, que elegeu o lobo como animal símbolo e justificador de que a natureza, incluindo-se os seres humanos, é inerentemente um ambiente hostil e, portanto, ela deve ser dominada e controlada, Maturana faz a seguinte observação: “notemos que nos mitos patriarcais o lobo é o grande inimigo. Fala-se do lobo como cruel e sanguinário, mas ele não o é. Em sua vida silvestre, esse animal não ataca o ser humano. O que ele procura são os animais que sempre lhe serviram de alimento, os quais são protegidos pelos humanos em seu pastoreio. É no aparecimento do patriarcado que o lobo surge como inimigo, num processo associado à perda de confiança no mundo natural que ele reforça.”
Em suma, as duas premissas de Maturana mostram que tudo que fazemos – e que, portanto, cria o mundo no qual imaginamos viver –, está condicionado ao emocional e à linguagem. Fazendo um paralelo com a nossa atualidade, é fácil percebermos isso observando como tanto a linguagem quanto as emoções que sustentam a visão tecnoeconomicista de mundo hegemônica e suas estruturas de pensamento têm características muito peculiares nos comportamentos e nas interações humanas, seja por parte das lideranças empresariais e políticas, seja do lado do senso comum. A dinâmica do mundo atual só é compreensível e explicável pela linguagem da economia e da tecnologia, por isso, torna-se irrefutável e fechada a outras narrativas e visões de mundo, estabelecendo-se desse modo um enorme bloqueio cognitivo que nos aprisiona no patriarcado.
O mundo humano é forjado pela cultura patriarcal atualmente expressa na lógica do mercado e dos algoritmos, como o foi em tempos remotos na lógica dos dogmas da fé cristã. Portanto, é a partir do questionamento desse padrão cultural patriarcal milenar que precisamos pensar e refletir sobre as possibilidades de uma reconciliação à nossa condição natural, que Maturana traduz nos seguintes termos: “nossa possibilidade de sair da contradição emocional básica em que estamos imersos em nossa cultura patriarcal ocidental – e assim escapar do sofrimento que essa contradição traz consigo – está em nossa possibilidade de perceber que sua origem é cultural e não biológica.”
Foi a partir de premissas equivocadas sobre a natureza humana e sobre a realidade complexa que nos cerca que a cultura patriarcal forjou todas as cosmovisões já experimentadas pela civilização para tentar moldar o mundo. Ao tentar conter as pulsões de morte que ela mesma gerou ao longo da história, seja inicialmente pela via do cristianismo, seja pelo advento do Estado-nação entrelaçado à lógica do mercado durante a modernidade, ou agora na contemporaneidade, refugiando-se na ilusão dos algoritmos, o que a cultura patriarcal realmente nos proporcionou foi nos levar à perigosa perspectiva atual de um colapso global iminente. Por isso, o alerta de Maturana: “com frequência, dizemos que tanto a luta entre o bem e o mal quanto o viver em agressão são características próprias da natureza biológica dos seres humanos. Discordo, não por pensar que o ser humano, em sua natureza, seja pura bondade ou pura maldade, mas porque considero que a questão do bem e do mal não é biológica e sim cultural. Esse conflito em que nós, seres humanos patriarcais modernos, vivemos, nos dobrará com sofrimentos e por fim nos destruirá, a menos que o resolvamos.”
Dentro dessa dinâmica patriarcal à qual estamos presos e submetidos há tanto tempo, o animal humano nunca foi muito inclinado a fazer suas próprias escolhas e sempre esteve mais propenso a ser moldado pela realidade que lhe é imposta do que o contrário. Como diz John Gray, “é raro que indivíduos valorizem sua liberdade mais do que o conforto que vem com a subserviência, e mais raro ainda que povos inteiros o façam”. Aliás, este é um pensamento bem próximo da concepção de “servidão voluntária” desenvolvida em 1549 pelo filósofo francês Étienne de La Boétie, para quem “a primeira razão da servidão voluntária é o hábito” e que, portanto, “temos de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural”.
Para responder esse dilema de La Boétie, o filósofo e sociólogo francês Edgar Morin nos dá uma boa explicação. Segundo ele, somos moldados pelo imprinting cultural (um fenômeno de bloqueio da cognição similar ao que o Maturana descreve acima), isto é, pelas crenças e valores que vão se enraizando em nossas mentes ao longo da vida. E, atualmente, o nosso modo de vida encontra-se profundamente imerso em uma visão tecnomercadológica de mundo. Esta é mais uma forma de entendermos o processo cognitivo que trava e condiciona o comportamento humano à insensatez do patriarcado.
Portanto, o problema de fundo que explicaria como a humanidade se autoinfligiu por milênios, gerando tanto mal-estar e sofrimento, não estaria no homem em si ou na sua suposta natureza animal predatória. Nessa perspectiva de Maturana, o âmago do contínuo estado de crise que aflige a civilização está na incongruência entre o biológico e o cultural, no comportamento humano, desencadeada a partir dessa grande bifurcação cultural. E essa explicação converge com a de muitos outros autores como, por exemplo, o biólogo e antropólogo inglês Gregory Bateson, para quem “a fonte de todos os problemas de hoje é o hiato entre como pensamos e como a natureza funciona”. O sofrimento humano decorre, assim, de um fenômeno cultural e a impossibilidade de realização da democracia, e de uma convivência que comporte a coexistência de muitos modos de vida, será melhor compreendida se levarmos em consideração esse pressuposto.
Por Antônio Sales Rios Neto em Outras Palavras
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