Novas tecnologias e mudanças climáticas favorecem sojicultura, que ameaça modificar radicalmente o regime de cheias e vazantes, essencial à sobrevivência do bioma. Na porção alagável da planície, lavouras já tomam ao menos 600 hectares
Entidades civis, pesquisadores e monitoramento por satélites denunciam que a soja já ocupa centenas de hectares (ha) no pantanal do Mato Grosso do Sul. Fontes ouvidas pela reportagem temem que novas tecnologias produtivas, mudanças ambientais e climáticas favoreçam o avanço das monoculturas no bioma. Isso afrontaria a legislação florestal e recomendações de experts em zonas úmidas.
As lavouras detectadas no início do ano em sobrevoos de ONGs e imagens de satélites estavam em Coxim, Aquidauana e Miranda, entre as porções alagável e alta da bacia pantaneira. Os plantios tinham ao menos 600 hectares. Mídias sul-mato-grossenses contam até 3 mil ha da oleaginosa, mas tal área não foi confirmada por O Eco. Arrozais em Miranda ocupam espaço similar desde os anos 1980.
Pesquisadora no Instituto de Botânica da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Edna Dias atua há 30 anos no bioma e avalia que uma possível expansão da soja eliminará matas e campos nativos, modificará as cheias e vazantes que mantêm o Pantanal vivo, prejudicará a biodiversidade, populações indígenas e rurais. “Tudo será alterado. É uma catástrofe anunciada”, destacou.
O Pantanal é um dos biomas mais preservados do país, com cerca de 80% da vegetação nativa. Mas os alertas para desmate do MapBiomas mostram perdas de 29,5 mil ha de verde apenas entre maio de 2021 e o mesmo mês deste ano, sobretudo para a agropecuária. A destruição foi de 88 ha diários no período. O código florestal prevê que essas “supressões” tenham aval do governo estadual.
“A legislação prega que a exploração do Pantanal tem que ser ‘ecologicamente sustentável’, não com economias intensivas como a soja”, ressaltou Felipe Dias, diretor-executivo da SOS Pantanal, que monitora o bioma há mais de uma década. “As lavouras também prejudicarão ambientes e populações pantaneiras com mais agrotóxicos e outros químicos”, completou.
Como mostramos, as águas que correm no Pantanal já carregam agrotóxicos desde os planaltos da Bacia do Alto Paraguai, a área que mais usa esses venenos no país. O agro já ocupa 60% da região. Em Bonito (MS), polo de ecoturismo que recebeu quase 700 mil turistas em 2021, a área com soja passou de 292 ha em 1985 para 54,7 mil ha em 2020. O salto foi de quase 20.000% em 35 anos.
“A chegada da soja é muito grave. Esses plantios alteram muito o uso do solo pantaneiro, enquanto que a pecuária sobre pastos naturais têm baixo impacto e não usa agrotóxicos”, destacou Débora Calheiros, cientista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e assessora do Ministério Público Federal.
A Assessoria de Imprensa do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) afirmou que o órgão “só trabalha com dados oficiais” e não atendeu aos nossos pedidos de entrevista sobre os cultivos de soja no bioma.
Cenários pró-monoculturas
Incêndios torraram ⅓ do Pantanal brasileiro em 2020. Acima, queimada em Porto Jofre, no Pantanal Matogrossense. Foto: Carl de Souza/AFP.
Há dois séculos a pecuária em pastagens naturais é uma das principais economias do Pantanal, a maior planície alagável do planeta e um reduto inigualável de vida selvagem. Espalhado pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e avançando por Bolívia e Paraguai, o bioma recebe atenção crescente como destino internacional de turismo e pesca em ambientes preservados.
Mas a potente estiagem de anos recentes e a redução de 29% na superfície de água entre as cheias de 1988 e de 2018, verificada pelo MapBiomas, podem deixar áreas mais secas e beneficiar a soja e outras monoculturas. O Mato Grosso do Sul foi o estado que mais perdeu extensões alagáveis no período. Planos da hidrovia Paraná-Paraguai associados a portos para escoamento de commodities devem alterar o leito de rios e debilitar as inundações anuais.
Com menos água acumulada e mais desmatamento, também crescem as chances de novos incêndios no Pantanal. Em 2020, um terço do bioma foi dizimado pelas chamas, atestaram as universidades federais do Rio de Janeiro e do Mato Grosso do Sul. O fogo pode voltar com força este ano graças à persistente seca, alerta a SOS Pantanal.
A redução no volume de água está ligada ao desmate da Amazônia, que reduz as chuvas sobre a região, e ao barramento de dezenas de rios que abastecem o Pantanal. A estiagem ganha força, ainda, pela substituição de florestas e campos naturais por pastagens de braquiária e outros capins africanos.
“Isso (pastos exóticos) também é monocultura”, lembra Débora Calheiros, da Embrapa. “Fazendas de pantaneiros tradicionais estão se tornando empresariais, sem vínculo com história e conservação do bioma”, constatou a pesquisadora. Fatores econômicos e pesquisas igualmente estimulam a agricultura na região.
O preço da soja sobe desde 2019 e a facilidade de venda (liquidez) nos mercados interno e mundial estimulam seu plantio. A saca de 60 quilos vale hoje cerca de R$ 180 em municípios produtores. Das 135 milhões de toneladas da safra 20/21 no país, 92 milhões de toneladas (68%) foram exportadas.
Uma pesquisa da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul seleciona tipos de soja e de milho aptos à produção no Pantanal. Em 2016, testes já eram feitos justamente em fazendas em Aquidauana e Miranda. A ideia é integrar o cultivo de grãos à pecuária de corte. Pastos para o gado eram alternados com a soja.
Freio na sojicultura
Cenário da planície pantaneira no Mato Grosso do Sul. Foto: Tom Barker/IPTC/Ecoa.
ONGs e cientistas apostam suas fichas numa legislação para barrar a soja no Pantanal do Mato Grosso do Sul, nos moldes de regras que, desde os anos 1990, impedem novas lavouras de cana-de-açúcar. O Mato Grosso afrouxou regras para uso do Pantanal em meados de julho, mas manteve proibidas monoculturas de grande escala, como de cana e de soja.
“Queremos propor ainda este ano uma lei para conter a soja no Pantanal do Mato Grosso do Sul. Temos que impedir isso quando as lavouras e os impactos ainda são poucos. O estado se tornou uma potência agropecuária sem prejudicar o Pantanal. Lá não é lugar de soja”, ressaltou o deputado estadual Paulo Duarte (PSB).
A legislação reforçaria a Constituição de 1988, onde o Pantanal é um patrimônio brasileiro, resoluções contra monoculturas do Conselho Nacional de Zonas Úmidas, que tenta aplicar a Convenção de Ramsar no país, e o Zoneamento Ecológico- Econômico do Mato Grosso do Sul, que desestimula a soja no bioma. Regras federais para uso do Pantanal tramitam no Congresso desde 2011.
“Já temos posições contrárias ao projeto de lei estadual. Isso mostra que os plantios não são experimentos e que há, sim, a intenção de ampliar a área de soja na planície alagável”, avisou Duarte, nativo de Corumbá (MS). O parlamentar preferiu não apontar indivíduos ou setores favoráveis à soja no Pantanal do Mato Grosso do Sul. O estado detém 65% do bioma.
A Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), a Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja) não atenderam aos nossos pedidos de entrevista sobre os plantios do grão no Pantanal.
Em 2016, os estados pantaneiros prometeram fazer da preservação a base do desenvolvimento socioeconômico do bioma. O acordo foi firmado inclusive pelo atual governador sul-mato-grossense, Reinaldo Azambuja (PSDB). Pré-candidatos ao governo estadual do PRTB, PT, União Brasil, PSD, MDB e PSDB têm restrições à soja no bioma.
Pesquisador ligado ao Centro de Pesquisas do Pantanal, Pierre Girard lembra que o Mato Grosso do Sul pode expandir lavouras sobre ao menos 8 milhões de hectares de terras degradadas. “Não há necessidade de se avançar em áreas conservadas, como o Pantanal”, disse. O Mato Grosso do Sul tem 35,7 milhões de ha. Em 2021/2022, a soja ocupou 3,7 milhões de ha, ou 10% do estado.
“Produzir soja em larga escala no Pantanal exigirá a abertura de estradas para escoamento. Áreas precisarão ser drenadas para manter as lavouras com a volta das cheias. Isso aumentará custos produtivos e de logística e as intervenções na planície alagável. Manter o sistema natural pantaneiro funcionando é mais seguro e lucrativo para todos”, avisou o especialista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso. (Por Aldem Bourscheit, em O Eco)
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!