Modificação corporal faz mal à saúde? Médicos e body piercers comentam

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As chamadas modificações corporais chamam atenção não apenas pelas mudanças extremas do corpo, mas pela quantidade de pessoas que optam pela alteração do visual. Figuras como o famoso Diabão, que possui mais de 60 modificações, estão se tornando cada vez mais comuns e com grande visibilidade devido as redes sociais. Mas afinal, o que são essas modificações corporais? Elas fazem mal à saúde? 

Modificação corporal é qualquer alteração feita propositalmente no corpo, sendo irreversível ou não, por uma razão sem necessidade médica. As que mais vemos por aí são as relacionadas ao rosto, como cortes em orelhas, para parecerem mais pontudas, cortes em línguas (ou língua bifurcada), que lembram as de uma cobra, variedades de piercings e alargadores, coloração dos olhos a partir de tatuagens e a implantação de objetos debaixo da pele, como chifres ou materiais que ofereçam a aparência de relevo. 

Quanto à saúde, de acordo com a maioria dos especialistas, sim, os riscos existem. Em entrevista para o Olhar Digital, a farmacêutica pós-graduada em biotecnologia em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Silmeri Bolognani, disse que cortes na língua, por exemplo, podem levar a uma infecção durante a cicatrização, já que a boca possui diversas bactérias. 

“Na cavidade bucal existem várias enzimas digestivas e bactérias. Logo, quando fazemos cortes na língua há risco de infecção durante a cicatrização. Essas infecções podem afetar tudo, desde a mandíbula até toda a boca. A divisão da língua atrapalha a deglutição, a mastigação e a fala. Além de causar mau hálito e se tornar depósito de alimentos”, explicou a especialista, que também ressaltou as complicações em procedimentos na orelha. 

“A cartilagem da orelha é uma região de baixa vascularização sanguínea, o que dificulta a chegada de células de defesa potencializando o risco de infecção. Para deixarmos as orelhas pontudas é necessário se submeter a uma cirurgia e, como qualquer cirurgia, possui risco à saúde. Podendo ocasionar hematoma, edema, despigmentação e perda ou redução da sensibilidade local.” 

Corroborando com Bolognani, o cirurgião plástico e oncológico Wandemberg Barbosa, que atua em hospitais da capital paulista como Albert Einstein e Nove de Julho, acrescentou que as cirurgias deste tipo vão contra a fisiologia do corpo e, geralmente, são realizadas a partir de desejos adolescentes, o que aumentam as chances de arrependimentos.  

“Sou contra esse tipo de cirurgia porque você para uma coisa ‘antifisiológica’ que normalmente é um apelo de uma fase da vida (adolescência). Depois, com o indivíduo adulto, ocorre um arrependimento e o paciente corre para uma reversão da cirurgia”, disse o médico. 

Implante de objetos no corpo 

Já é sabido que a implementação de qualquer objeto no corpo pode ser rejeitada – é o que acontece, por exemplo, em alguns casos de implantação de silicone ou de qualquer outro material (até nos casos de necessidade médica). Ainda de acordo com Bolognani, no caso da introdução de objetos debaixo da pele há ainda a possibilidade de “alergias, redução da vascularização da região, queloides, assimetria e hipersensibilidade no local.”

Barbosa também adicionou que o mesmo ocorre com alargamentos de lóbulos de orelhas ou lábios – com os conhecidos alargadores. Os riscos de rejeição também são válidos para o uso de piercings mais comuns. 

Tatuagem nos olhos

Outra prática entre as mais procuradas é a tatuagem nos olhos (eyeball). O procedimento pinta o globo ocular dando a pessoa um olho colorido ou, o mais comum, todo preto. Apesar de alguns considerarem o resultado esteticamente bonito e interessante, de acordo com o oftalmologista Dr. Marcelo Brito, a ação é de altíssimo risco por uma série de motivos. 

“Nossos olhos, naturalmente, são lar de milhões de bactérias, que convivem em harmonia, até que o equilíbrio natural seja quebrado. A injeção de agulhas pode carregar microrganismos das camadas superficiais para as camadas profundas, levando a processos infecciosos que podem ser fatais à visão, como uma endoftalmite ou uma atrofia total do globo. Sem contar que a própria tinta e agulhas podem não estar estéreis e serem a própria fonte de contaminação”, alertou o médico. 

Além disso, o especialista lembrou do risco de perfurações, já que um simples deslize do tatuador, ou um pequeno movimento dos olhos ou da cabeça do cliente, pode levar a uma perfuração dos tecidos. 

“Geralmente, a tatuagem que se vê na mídia consiste em injetar tinta no espaço subconjuntival. Acontece que esse espaço é praticamente “virtual”, pois há um contato muito grande entre a conjuntiva (a camada mucosa superficial dos olhos) e a esclera (a parte branca dos olhos)”, especificou o Dr. Brito, ressaltando que os erros que resultarem em perfuração podem ter ainda outras consequências, como o descolamento da retina. 

“No momento, não há métodos seguros que possam ser recomendados pela oftalmologia para se tatuar os olhos”, finalizou o médico. 

Então não posso por piercings ou realizar modificações corporais? 

Vale ressaltar que o intuito aqui é esclarecer os riscos, e não convencer pessoas a não colocarem piercings ou modificarem os corpos da forma que acharem melhor ou, o principal, se sentirem bem. Existem muitas pessoas adeptas das modificações e profissionais capacitados que levam as mudanças bem a sério e com cuidado, como é o caso da body piercer Acacia Britto Winter.

Segundo a profissional, que possui a língua bifurcada, diversos piercings, alargadores e incontáveis tatuagens, existe um protocolo para atuar com os procedimentos. Além disso, os cuidados após os processos são tão importantes quanto a colocação do piercing em si, algo que fica a cargo e responsabilidade do cliente.

“A gente lida como se fosse uma bancada cirúrgica, com material esterelizado, e a maioria descartáveis. Existe todo um protocolo que vem desde abrir o material na frente do cliente para que ele tenha segurança de que está sendo usado (pela primeira vez) por ele e assim também será descartado. Todo material deve ser esterelizado e o mínimo deve ser reutilizado”, disse a body piercer, dando o exemplo das pinças, as únicas ferramentas que ela reutiliza – e após higienização e esterilização.

Acacia também deu dicas de como encontrar um profissional de confiança para realizar os procedimentos. O primeiro ponto, segundo ela, é a pesquisa de campo, ou seja, falar com quem já tem as modificações.

“Conversem! Mas não com o amigo que viu na internet, conversem com quem tem as modificações, profissionais que já fizeram e que trabalham com isso. Um profissional que não te dá atenção sobre (dúvidas de) procedimentos de modificação corporal, eu já não qualifico ele como um bom profissional, porque ele vai se envolver com você apenas em um momento de intimidade, mas é preciso suporte desde muito antes da perfuração porque ele vai fazer parte de um dos momentos mais importantes da sua vida.”

O body piercer Wildson Santos, mais conhecido como Dark Vírus, também reforçou a importância de um ambiente limpo para os procedimentos e fez um adendo aos profissionais que querem trabalhar na área. Dark possui ao menos 20 modificações, entre elas a língua bifurcada (também chamada de tongue split) e pintada, além de tatuagem nos olhos e implantes na testa e braços. Ele trabalha com modificações extremas há pelo menos 20 anos e realiza, por exemplo, o corte da língua e a escarificação (cicatrizes através de cortes).

“O preceito número um é estudar todos os dias. [segundo] Respeitar o corpo alheio, porque ele não é nosso, é apenas emprestado. E [terceiro] fazer com o coração, ser um body piercer de verdade”, afirmou o profissional. Ele acrescentou ainda que “por um lado, alguns médicos têm razão” ao fazer críticas sobre os procedimentos, já que muitos realizam com pessoas que não entendem de anatomia ou do protocolo necessário.

“Você precisa saber e não decorar. Tem pessoas que apenas decoram e por isso os médicos ficam em cima. É uma intervenção agressiva, então se for fazer qualquer tipo de intervenção é preciso procurar um modificador corporal.”

Para trabalhar com as modificações corporais Dark fez curso de Modificação Corporal com Emilio Gonzalez, famoso body modifier venezuelano. Ele ressaltou que, devido suas tantas alterações no corpo está sempre consultando o médico para um check-up de rotina. Até hoje, segundo ele, nunca houve problemas nem com as tatuagens, cortes ou piercings que possui e nem com as que realizou em seus clientes.

Casos recentes

Recentemente, duas jovens morreram devido complicações após a implantação de piercings. Izabela Eduarda de Sousa, de Minas Gerais, fez sozinha uma perfuração com uma agulha comum na sobrancelha. A adolescente de 15 anos ficou internada por oito dias, teve quatro paradas cardíacas e morreu em consequência de uma infecção generalizada, conforme divulgou O Globo

Segundo informações do UOL, a segunda paciente, de 20 anos, veio a óbito após colocar um piercing na boca e desenvolver uma infecção no cérebro. Andressa Souza, de Mato Grosso do Sul, ficou 24 dias na UTI e, caso sobrevivesse, corria o risco de permanecer em estado vegetativo. 

A respeito do último caso, a cirurgiã dentista e especialista em saúde bucal Dra. Bruna Conde explicou que lábios, bochechas e língua também fazem parte da saúde bucal, e piercings nessas regiões podem gerar casos como esse com frequência. 

“Nossa boca contém milhões de bactérias, devido a isso muitas vezes inflamações, inchaços e infecções ocorrem com frequência em piercings na boca. A região pode sofrer bastante inchaço no processo de cicatrização, é de extrema importância se certificar se a joia é de qualidade e as maneiras corretas de higienização.” alertou a dentista. 

De acordo com o Dr. Barbosa, piercings menores e mais discretos podem ser mais toleráveis conforme o material empregado, como ouro e prata. Em todo o caso, a orientação é “procurar profissionais competentes e autorizados para que não se coloque a vida de pacientes em perigo”. 

O mesmo vale para as modificações corporais. A farmacêutica Bolognani destacou que é importante ter certeza dos procedimentos, a fim de evitar a necessidade de novas cirurgias. 

“Para fazer uma transformação corporal é necessário ter total segurança do que se pretende fazer, pois alguns procedimentos podem ser irreversíveis e/ou deixar sequelas. Procure sempre um especialista na área que seja bem capacitado, de preferência que você conheça algum resultado. Preciso lembrar que para qualquer processo de transformação primeiro ficamos feios para depois ficarmos do jeito que desejamos”, concluiu. 

Modificações corporais e preconceito

Apesar das divergências entre a opinião médica e profissionais de body piercing – ou ainda médicos que realizem as modificações corporais – para Acacia, que também é bióloga por formação, há espaço para todos, e o respeito às diferenças precisa partir da sociedade como um todo, o que inclui os médicos.

“O preconceito me atravessa de diversas formas, a modificação corporal é só uma delas. Eu já perdi emprego como bióloga, já gritaram comigo na rua dizendo que eu era muito feia e horrorosa. Já olharam para mim com cara de nojo, são coisas comuns”, contou.

Sobre o tema, que é tão delicado, Wildson (Dark Vírus) diz que “olhares e palavras são apenas olhares e palavras. Você só vai se machucar a partir do momento que deixar que aquilo te machuque ou, claro, descer ao nível da outra pessoa. Palavras ficam ao vento, ela só vai ecoar e bater no seu coração se você der espaço para escutar. Essas pessoas não têm amor no coração, por isso são preconceituosas”.

Em um recado para a comunidade médica Acacia diz: “eles deveriam olhar com um pouco mais de respeito para as modificações corporais que fogem do padrão. Eles executam modificações corporais diariamente implantando silicone, fazendo narizes modelados e trabalhando com bichectomia. A única diferença é que algumas são para padrões de beleza e outras não”.

“Respeito demais a profissão médica e gostaria que eles vissem a nossa, de modificador corporal, com respeito também, só isso”, finalizou.

Fonte: Olhar Digital

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