São profissionais cobiçados pelas corporações. Têm ótimos salários e regalias, ao contrário dos imigrantes comuns. Muitos buscam um novo estilo de vida (e bom wi-fi) no Sul global. Mas seus empregadores já fazem as contas para descartá-los…
Um nômade digital, em essência, é um trabalhador em modelo 100% home office, sem moradia fixa e que se desloca pelo mundo. São profissionais altamente qualificados e bem-remunerados, que trabalham vinculados a uma empresa ou de forma autônoma. Estão no mundo da programação, da moda, do marketing, da engenharia de grandes obras. Podem ser artistas, redatores, arquitetos, jornalistas. Já são 35 milhões pelo mundo, segundo cálculos da Fragomen, entidade ligada ao mercado que atua no campo de tendências migratórias globais.
Brian Chesky, o poderoso CEO do Airbnb, é talvez hoje o “nômade digital” mais famoso: recentemente, anunciou que não terá mais residência fixa e só trabalhará de forma remota, pulando de Airbnb em Airbnb ao redor do mundo.
Esse estilo de vida tornou-se mais popular na pandemia, com a proliferação do home office, mas está em ascensão há anos. Seus adeptos apontam que esta “escolha” exige enfiar o talento na mochila e abrir-se a novas descobertas e experiências, autoconhecimento, capacidade de adaptação, lidar com a saudade da família, peitar estruturas hierárquicas muito verticalizadas do trabalho, gestão rigorosa (de prazos, metas e da própria agenda), saber dosar trabalho e lazer (e o excesso de precauções com seus equipamentos de trabalho), adaptar-se a fuso horários, lidar burocracia migratória – e uma boa conexão de internet.
A revista Forbes aponta alguns fatores que podem explicar esse fenômeno, tais como a moradia, cada vez mais, percebida como um serviço; políticas empresariais de anywhere office (escritório em qualquer lugar); crescente facilidade para tirar vistos em países que tentam atrair os “nômades digitais”; ampliação de infraestrutura para coworking em diversas cidades globais; crescente estilo de vida que prioriza experiências em vez de posses; adoção da educação domiciliar por muitas famílias do Norte global. [Por Rôney Rodrigues]
Eles estão em todas as mídias sociais e por todo o mundo. Uma pesquisa de hashtag no TikTok oferece uma infinidade de conteúdo, de dicas de viagens e qualquer coisa que você possa imaginar. O “nômade digital” é a mais recente criatura que a cultura virtual produziu. Tomado literalmente, o termo se refere a qualquer pessoa que abandona sua residência fixa para transitar de um lugar para outro. Os nômades digitais geralmente têm empregos que lhes permitem trabalhar de qualquer lugar com uma conexão wi-fi. Quando chegam a um novo destino – Bali, na Indonésia, é um dos favoritos – eles simplesmente se instalam em hostels — ou alugam quartos — e logo demarcam cafeterias e lan houses. Em um TikTok que assisti há algumas semanas, a câmera fotografou um café à beira-mar cheio desses nômades ocidentais.
Talvez porque a maioria dos nômades digitais pertença à uma audiência “muito online”, a internet está quase surtando com suas façanhas. Alguns exaltam a economia das despesas, observando que é muito mais barato viver em cidades à beira-mar no México, em Portugal ou na Costa Rica do que morar numa cidade grande ou média nos Estados Unidos. Outros, como uma mulher com o apelido “themomtrotter” (1,7 milhão de seguidores), mostram como é gostoso se deleitar em uma piscina com o parceiro entre as reuniões de negócios. A maioria deles carregam uma pitada de desdém em relação aos seus espectadores nas redes sociais, que poderiam – e ainda não escolheram – embarcar nesta jornada de nômade digital. Afinal, quem não gostaria de viajar para um país aprazível, economizar dinheiro e desbravar o mundo enquanto, quem sabe, possa se tornar um influencer durante esse processo?
Embora os nômades digitais finjam torcer o nariz para as pressões do capitalismo, eles são evidentesmente criaturas dele. Os regimes de vistos do mundo todo privilegiam cidadãos de democracias ricas e ocidentais, que podem transitar com facilidade. Países empobrecidos, porém exuberantes, têm incentivos para tentar atraí-los. Há benefícios para a nação anfitriã, já que os nômades digitais tendem a ficar mais tempo do que um turista típico que esvoaça de um lugar para outro. E, enquanto ficam, fortalecem as economias locais torrando dinheiro em restaurantes, cafés, passeios guiados e outras complacências similares. Como seus empregos estão em outro lugar, eles não estão tecnicamente tirando empregos das populações locais. Uma estadia de maior duranção também significa certa possibilidade de que os nômades digitais possam compreender melhor a cultura e os costumes de um lugar, pelo menos mais do do que um turista apressado que espreme suas férias em um fim de semana.
Por outro lado, o baixo nível de comprometimento deles significa que, se alguém acaba em um lugar que não atende às expectativas ou onde as comunidades de expatriados ou nômades digitais não são tão divertidas, ele pode facilmente se desenraizar e ir embora. Ironicamente, porém, é a consistência que parece importar mais na vida de um nômade digital; uma rotina sólida que pode ser seguida independentemente de onde se esteja significa que a produtividade do trabalho não é sacrificada à medida em que o fuso horário muda.
O estilo de vida nômade digital, juntamente com sua contribuição para as economias locais, concentra-se no privilégio do passaporte. Isso significa que eles são principalmente cidadãos de nações ocidentais ricas que podem participar do galgar, pular e saltar do novo nomadismo. As pessoas de muitos países, dizem os indonésios de Bali, não recebem a mesma cortesia nas nações ocidentais de onde vêm os nômades prósperos. O fluxo na direção contrário, atestado pelas multidões de migrantes presos em lugares como Lesbos na Grécia, Nauru, perto da Austrália e da fronteira sul dos EUA-México, encontra resistência; poucos dos países onde eles buscam entrada estão interessados em criar vistos especiais para essas pessoas. Um refugiado ou migrante está em uma categoria marcada pelo desespero, enquanto o privilégio do passaporte do nômade digital sinaliza alívio. Assim que terminarem de conhecer o mundo, eles retornarão ao seu país de origem. Eles podem insistir que não têm um lar, mas, apesar de toda a sua insistência, os privilégios dos países ricos ocidentais são tais que sua casa é sempre a sua casa.
Assim, as pessoas que são forçadas a viajar — a migrar de suas aldeias e vilas e cidades — devem deixar suas casas e tornar-se indesejáveis, enquanto aqueles que optam por viajar recebem acenos através de com vistos e privilégios especiais. Os 46 países que já oferecem ou estão no processo de estabelecer vistos especiais de viagem incluem Austrália, Panamá, Antígua, Camboja, Noruega e Brasil, apenas para citar alguns, segundo levantamento da Harvard Business Review1. Quase todos exigem comprovação de emprego – ou seja, o trabalho remoto que manterá a solvência do nômade em questão, assim como sua capacidade gastar dinheiro no país escolhido. Muitos até oferecem vantagens como isenções fiscais para, assim, obter vantagem sobre outros “concorrentes”. É uma aposta sólida: muitos países que enfrentaram recessão no setor de turismo podem agora recuperar alguns ingressos — e atrair viajantes perdidos através da oferta desses vistos de nômades digitais.
No mundo de normalidade pós-pandêmica, em que todos se acostumaram a ser uma ilha fechada em si mesma, o nomadismo digital oferece a oportunidade de mudar a localização de sua ilha. Com os relacionamentos enfraquecidos pela distância e pelo desuso, a ideia de estar sozinho viajando pelo mundo, ao mesmo tempo em que é possível encontrar conhecidos e amigos (descartáveis e em situação semelhante), tem vantagens. Poderia tornar as pessoas mais adaptáveis e autoconscientes. É provável que as coisas serão assim a curto prazo — e para pessoas que optam por serem nômades por um curto período de tempo ou, então, de vez em quando.
Para os outros que planejam se tornarem nômades permanentes alguns bloqueios podem surgir. O país de cidadania pode impor exigências fiscais adicionais ou simplesmente se tornar mais rigoroso quanto à cobrança de impostos de nômades digitais (que tendem a acreditar que são, de alguma forma, invisíveis porque não têm endereço permanente). A perspectiva mais ameaçadora é a perda dos empregos que mantêm os viajantes digitais venha à tona. Atualmente, novas startups estão oferecendo opções remotas completas para atrair os trabalhadores em um mercado cada vez mais competitivo. Empresas como a Airbnb continuam a ter escritórios físicos, mas também apoiam os funcionários a trabalharem de casa.
Esse tipo de mercado de trabalho — e a necessidade de talento — não será assim para sempre. Os gerentes das empresas, diante de equipes totalmente remotas e da necessidade de cortar custos, acabarão se perguntando se o “trabalho remoto” deve mesmo ser feito por um trabalhador estadunidense ou se poderia ser terceirizado para países com mão de obra abundante e altamente qualificada, mas que geram poucos empregos. Afinal, com empregos remotos, pode fazer mais sentido contratar desenvolvedores de software ou engenheiros na Índia, nas Filipinas ou em qualquer outro país. As coisas mudaram: as empresas já não precisam esperar que os vistos sejam processados e os funcionários apareçam nos Estados Unidos com a documentação em ordem. Se um funcionário está disposto a cumprir o horário da sede da empresa (como muitos nômades digitais estadunidenses fazem), ele pode estar em qualquer lugar e custar consideravelmente menos do que os trabalhadores que, atualmente, compõem as populações do nomadismo digital.
Os países podem se mover para proteger seus próprios empregos e trabalhadores altamente qualificados, estabelecendo regulamentos que desencorajem a contratação de trabalhadores remotos estrangeiros ou imponham impostos extras às empresas que o fazem, mas isso exigirá legislação e vontade de intervir nas forças do mercado. Os governos já fazem isso para proteger setores como a agricultura, que arrecada grandes subsídios nos Estados Unidos e na Europa; eles podem optar por fazê-lo com tecnologia e outros trabalhos remotos também. Os nômades digitais de hoje, que vivem sua alta em belas praias e passam os dias em bares e cafeterias, não estão considerando essas políticas. A onda de jovens, em sua maioria brancos, que busca diversão provavelmente continuará no futuro imediato; uma espécie de bacanal nômade que se rebela contra as restrições impostas pela covid dos últimos anos. Mas mesmo que os nômades digitais continuem saltando de um lado para o outro e as empresas observem os funcionários que colocam fundos em seus laptops para disfarçar suas localizações, elas também estão calculando custos. Não é apenas mais barato morar em outro lugar que não seja os países caros da América do Norte e da Europa, mas também pode ser mais barato encontrar trabalhadores lá.
1 O Conselho Nacional de Imigração brasileiro regulamentou a concessão de visto temporário e autorização de residência aos imigrantes que se encaixem na modalidade. O visto temporário para os nômades digitais no Brasil é de um ano, prorrogável por mais um, desde que se comprove meios de subsistência e que não haja vínculo empregatício no país. Cidades como o Rio de Janeiro apostam em incentivos especiais para atraí-los, como o certificado Rio Digital Nomads, concedido para hotéis, hostels e espaços de coworking que têm tarifas especiais para o cliente que aderir a pacotes de longa permanência. A Indonésia, destino pop dos nômades digitais, criou o Visto de Nômade Digital Bali: cinco anos de permanência temporária. O Ministério do Turismo espera receber três milhões de “migrantes privilegiados”.
Um ensaio de Rafia Zakaria, no The Baffler | Tradução: Rôney Rodrigues em Outras Palavras
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