Brinquei com o título do conhecido livro de Michel Foucault porque serve com perfeição ao que escrevo nestas breves linhas. Apenas o título, ressalto, porque nada trato do pensamento do multifacetado filósofo francês.
Falo de um tema que sempre me chamou atenção, desde que a idade me permitiu olhar o mundo com algum senso crítico: as palavras e como elas podem ser usadas para esconder, não para elucidar o significado do objeto que se pretende definir.
Nada original, sei disso, mas me espanta o modo como palavras enganosas são disseminadas e aceitas por larga maioria, acriticamente. A palavra como instrumento de dominação, mas fingindo isenção, eis, em resumo.
Na minha infância/adolescência o primeiro termo que chamou minha atenção foi “terceiro mundo”, que escondia a verdade, levemente, mas escondia: países fortemente desiguais e com muita pobreza, nosotros incluídos.
Mas aí a coisa piorou. Com a queda do muro e a desconstrução do “segundo mundo” (os países socialistas do leste europeu), vieram com uma novidade: “países em desenvolvimento” (que nunca chega). Gênios, pensei eu. Terceiro mundo sumiu.
Também nesse tempo ficava intrigado com o modo como a imprensa falava em “conflito Israel-Palestina”, como se “conflito” fosse a palavra que melhor definisse as invasões e violações do direito internacional promovidas por um Estado militarizado contra uma população desorganizada, protegida por milícias voluntaristas sem nenhuma capacidade de confronto direto.
Na África do Sul, do apartheid, alguns ensaiaram usar “conflitos raciais” ou “conflitos étnicos”, mas, ainda bem, apartheid prevaleceu, talvez porque fosse o termo oficial.
Então eu li o livro do grande Umberto Eco, “O Pêndulo de Foucault” (referência a um experimento de outro Foucault, mais antigo, não o filósofo), e matutei que por vezes o mundo parece mesmo ter senhores que tudo decidem, inclusive a linguagem.
Nem falo tanto de propositalmente mal utilizar certas palavras canônicas, como “propriedade” e “liberdade”. Convenhamos, é genial que os donos da quitanda ou da padaria se achem tão proprietários quanto os maiores acionistas de uma petroleira ou de uma big tech. E não menos sofisticado é a liberdade ser reduzida e considerada mais importante se garante o vale tudo de quem tem capital pera ser “livre”.
As outras liberdades só são protegidas se não atrapalham a “mais relevante”, por isso as ditaduras são tão cheias de prepostos que enchem a boca para falar de liberdade. Agora mesmo, Vargas Llosa declarou apoio a Keiko Fujimori no Peru, certamente em nome da…
Aqui falo mais de criar palavras e termos dentro do próprio sistema capitalista, especialmente o periférico, cujos significados obscurecem a realidade. Surgem do nada, brotam do chão, se tornam cotidianas rapidamente, anestesiam os sentidos, aumentam a autoestima do explorado.
Só pode ser obra dos malvados templários ou dos maçons ou dos Illuminati e dentre eles algum chefe de RH e um assessor de imprensa por trás. Cabo Daciolo é um profeta incompreendido, tenho quase certeza.
Anos atrás eu lecionava em uma faculdade particular daqui do Rio de Janeiro. Empregado celetista, sujeito, portanto, à subordinação jurídica. Um novo diretor assumiu e na primeira reunião ouvi dele o termo “colaboradores”. Confesso que fiquei em dúvida sobre quem seriam os “colaboradores”, talvez algumas empresas terceirizadas que prestavam serviços à Universidade, pensei. Só que não, éramos eu e meus colegas. Fantástico.
Não era mais um empregado sujeito à dispensa sem justa causa, sem nenhuma garantia de emprego, virei uma outra coisa, um “colaborador”, mas ainda sujeito à dispensa sem justa causa, sem nenhuma garantia de emprego.
Na tenebrosa esculhambação trabalhista de 2017 (que chamaram de “reforma”, olha aí a linguagem), direitos básicos para um mínimo civilizatório viraram “privilégios” e prejudicavam o (atenção, a palavra atualmente no top 10) “empreendedorismo”.
Teve até projeto do então deputado do PSDB por Mato Grosso, Nilson Leitão, que previa a possibilidade de o trabalhador rural ser pago com moradia e alimento, não mais salário. Diante das críticas, o deputado negava que fosse assim, fui ler…e era isso, sim. Nem chegou a ser votado, ufa, mas era como se dissessem, não reclamem, pode ser pior, o século XVII é logo ali.
Mas, voltando aos “empreendedores”, aprendemos que eles não são os donos do capital que pelo menos produzem mercadoria, ao menos não só eles, mas financistas parasitas e, no oposto da pirâmide, motoristas de uber, entregadores do i-food, do rappi. A subordinação sumiu, todos viraram empreendedores, a pejotização,
Os pesquisadores de instituições públicas em busca de tratamento para doenças ou de uma nova tecnologia de ponta, os professores, não, esses não são “empreendedores”. Transmitir e criar conhecimento novo valem pouco, a palavra aceita apenas um significado econômico mesquinho, mas sem parecer mesquinho.
Greed is good, diz a descolada expressão gringa, mas na bula não avisam que ter greed, para a maioria, não terá qualquer valia, a fila do seguro-desemprego tá cheio de empreendedor, de gente criativa, mas que não sabem que são. Estão moralmente destruídos. Esses illuminati…geniais.
No fundo, a guerra da linguagem, com ou sem Illuminatis e Templários perversos (perdoe-me a vacilação, Daciolo), é a guerra para desvelar ao indivíduo algo ruim: que ele não é em muitos aspectos o dono da sua vida, que sozinhos somos pouco mais que nada na roda da história. Um certo Karl já disse isso mais de um século atrás, com muito mais sofisticação.
Ninguém gosta de admitir e muito menos de escutar que não é senhor de sua própria existência, parece coisa de gente conformada, mas falar essa verdade desconstrucionista nunca foi tão necessário, ainda que desagradável e difícil. Contra a presunçosa expressão gringa acima citada, prefiro outra, de criação popular: “água mole em pedra dura…”.
Por Mauro Abdon emTerapia Política
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