Uma visita à Cumaru (PE), onde mais de 70% da cidade depende do Auxílio Brasil. Com a inflação, os R$ 600 mal duram o mês. Muitos vivem só de “bicos”. Contas e a fome estão sempre à porta. Mas já não caem nos contos do bolsonarismo…
Quando Luiz Amaro dos Santos olha para fora da sua porta, vê a rua sem saída em que mora, no município pernambucano de Cumaru. Mas a rua sem saída é também o jeito que Santos, de 57 anos, encontra para falar da própria vida. Já cortou cana, madeira, cavou poços e foi auxiliar de carga e descarga de caminhões. Há seis anos, perdeu o movimento das pernas ao adquirir a síndrome de Guillain Barré, distúrbio autoimune que provoca fraqueza muscular e ausência de reflexos. Há dois, vê a comida desaparecer lentamente do prato. Com a alta da inflação e o atual preço dos alimentos, o auxílio de 600 reais, que começou a receber em agosto, mal deu para chegar ao fim do mês. “Quando compro uma coisa, falta outra. Tem dois meses que estou sem tomar meus medicamentos porque, se eu comprar, não tenho como comer”, relata. Santos mora sozinho com seus quatro passarinhos em seu quarto e sala de cor azul-céu. É lá que espera, há quase três anos, sua aposentadoria. É lá que deixa o tempo passar devagar, para ajudar a enganar a fome. “Carne é para quem tem dente de ouro, dou graças a Deus quando tem ovo ou sardinha. Tem que imprensar a barriga mesmo”, conta à piauí.
De acordo com os números do Ministério da Cidadania, Cumaru tem 10,5 mil beneficiários do Auxílio Brasil, o que daria mais gente que a população da cidade, estimada pelo IBGE para 2021 em 9,4 mil habitantes. A Secretaria Municipal de Assistência Social de Cumaru afirmou, porém, que, em 31 de agosto, já havia 12,6 mil pessoas na cidade cadastradas para receber o auxílio. Cumaru é uma das cidades brasileiras que solicitaram na Justiça a revisão da população calculada pelo IBGE em 2010. Enquanto aguarda o Censo de 2022 e o resultado do processo de revisão, a Prefeitura utiliza o e-SUS para o cálculo oficial, que aponta uma população de 17 mil habitantes.
Os números estão desencontrados, mas nas ruas de Cumaru se vê que o auxílio é fundamental para a sobrevivência de boa parte dos moradores. A renda do município vem, majoritariamente, da agricultura de subsistência. Quem não segue esse caminho tem poucas opções: trabalho em órgãos municipais que dependem de indicação, atividades informais ou o êxodo para cidades maiores, com mais vagas de emprego. Mais de 70% da população depende dos programas de transferência de renda governamentais para garantir o sustento.
Josinaldo Soares, 42, trabalha na Central de Oportunidades de Pernambuco, parceria entre a prefeitura municipal e o governo do estado, e é encarregado de realizar os cadastros dos candidatos a receber o auxílio: “A demanda está muito alta, principalmente depois do aumento do valor do benefício. Estamos passando por um momento muito difícil no país, e como aqui não tem muita oportunidade de emprego, recebemos cerca de 40 a 50 pessoas por dia.” Em dez minutos de conversa, o celular do servidor público toca três vezes. Todas as ligações tinham a mesma motivação: saber se o benefício do proponente havia sido aprovado. “As pessoas nos procuram porque precisam comprar comida, são famílias de baixa renda. Não usam para outras finalidades, é para subsistência”, diz Soares, que ainda usa um uniforme azul com Bolsa Família escrito em letras amarelas. O cartão que os cumaruenses utilizam para sacar o benefício também é do Bolsa Família, extinto em 2021. Os cartões verde-amarelos do Auxílio Brasil ainda não chegaram à cidade.
Josinaldo Soares, funcionário da Central de Oportunidades de Pernambuco – Foto: Maria Júlia Vieira
Ao longo da vida de Rosilda Soares, 58, os auxílios governamentais foram fundamentais para manter a dignidade de sua família. Para garantir o acesso à educação básica aos seus dois filhos, contou com o Bolsa Escola. É graças ao vale-gás que não precisa cozinhar com lenha. A falta de empregos na cidade, somado à sua baixa escolaridade, foi empecilho para que a dona de casa conseguisse um trabalho formal. Com a aposentadoria quatro vezes negada pelo governo, e as contas chegando incessantemente, amortiza as despesas de casa com os “bicos” que seu marido consegue arrumar de vez em quando. O dinheiro não é suficiente e ela precisa continuar recorrendo aos programas de transferência de renda. Foram dezoito anos dependendo quase exclusivamente do Bolsa Família — por isso, quando vai falar sobre o tema, esse é o primeiro nome que lhe vem à cabeça. “Aqui em casa, é só o Bolsa Família. É com isso que dá pra gente quebrar um galho. Dá para comprar fubá, açúcar, uma comida mais leve. Quase nunca dá para comprar carne, mas a gente vai se virando. Ainda tem que comprar remédio… Esse dinheiro é muito necessário”, contou à piauí.
Rosilda Soares recebe o Auxílio Brasil com o cartão do Bolsa Família, extinto em 2021 – Foto: Maria Júlia Vieira
Logo depois do início da pandemia de Covid, o Congresso aprovou, em março de 2020, o Auxílio Emergencial, um benefício de 600 reais, para atenuar os impactos econômicos causados pela pandemia. Após o pagamento de cinco parcelas, o valor diminuiu para a metade. No ano seguinte, foram pagas mais sete parcelas, com valores entre 150 e 375 reais. No início, o benefício era pago a quem já recebia o Bolsa Família e a trabalhadores em situações específicas, como os informais e autônomos. Em agosto de 2021, o governo enviou ao Congresso uma MP criando o Programa Auxílio Brasil para substituir o Bolsa Família. O Auxílio Emergencial foi interrompido em novembro de 2021. Os beneficiários do Bolsa Família foram migrados automaticamente para o novo Auxílio Brasil, com o valor médio do subsídio fixado em 217 reais.
Em maio de 2022, uma Medida Provisória aumentou o benefício do Auxílio Brasil para 400 reais. Em julho, foi aprovado um novo aumento, driblando a lei que proíbe a criação ou alteração de programas sociais em ano de eleição. Isso foi possível graças ao caráter emergencial da medida, apelidada de PEC eleitoral. Ela garantiu 200 reais a mais no valor do auxílio (passando de 400 para 600 reais) e, a um mês da eleição, vai incluir mais de 800 mil famílias no programa e elevar para mais de 21 milhões o número de beneficiários. O Auxílio Brasil se tornou uma das armas de campanha do presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, e também está na plataforma de seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que promete manter o benefício.
“Quem mudou o nome foi Bolsonaro, não foi? Ele mudou porque está perto da eleição, mas para mim não muda nada”, conta Wanessa Josefa Auleriano da Silva, 19 anos, mãe de Anthonny Benjamim, de apenas 4 meses. Em seguida, reafirma o seu voto em Lula e diz que o dinheiro do auxílio é insuficiente. “A lata de leite está 16 reais, o pacote de fraldas 51 reais, e Anthonny usa, pelo menos, dois por mês”, completa a dona de casa.
Em Cumaru, para quem recebe o Auxílio, os 600 reais têm sido suficientes para comprar menos que o básico. Qualquer tentativa de usar o dinheiro para investir ou abrir negócios esbarra em dois problemas: a falta de trabalho e a inflação dos alimentos. Dados do IBGE mostram queda de 0,73% no indicador mensal do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), marcador oficial da inflação no país. Mas alimentação e bebidas subiram 1,12%; saúde e cuidados pessoais aumentaram 0,81%. No acumulado de doze meses, o leite longa vida teve alta de 69,73%. Já a carne aumentou 35,07% nos últimos dois anos, mais que o dobro da inflação no mesmo período. O 2º Inquérito realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) traz números alarmantes: dos quase 54 milhões de nordestinos, 41% (22,14 milhões de pessoas) vão para a cama sem certeza se vão comer no dia seguinte. Em todo o país, 33,1 milhões de pessoas passam fome.
Na casa de Neide Silva, 47, os auxílios governamentais têm sido insuficientes para matar a fome. Dona de uma banca de legumes no Centro de Cumaru, ela viu as vendas caírem e tem a insegurança alimentar cada vez mais presente no seu dia a dia. “Para falar a verdade, muitas vezes procuro alguma coisa para comer em casa e não tem. Se você vai ao mercado com 100 reais, sai sem comprar quase nada. Do mesmo jeito é aqui na banca, antes o quilo do melão era 2,50, agora é 5 reais. Os clientes não têm condições e nem a gente, não sei onde vamos parar”, fala a feirante.
Neide Silva, dona de uma banca de legumes no Centro de Cumaru, vê a insegurança alimentar cada vez mais presente no seu dia a dia – Foto: Maria Júlia Vieira
A grande diminuição no poder de compra se tornou um dos principais temas da campanha. Dados da última pesquisa Quaest indicam que, para 76% dos eleitores, o aumento do valor do auxílio não os influencia a votar em Bolsonaro. Adivânia Silvestre, agricultora, de 44 anos, é uma das pessoas que desconfiam do benefício turbinado: “Ele aumentou para ver se ganha o povo, mas não muda em nada. As pessoas continuam tendo o candidato certo para votar.” Apesar dos 600 reais fazerem muita diferença na renda de sua casa, que depende disso e do pouco que seu marido consegue fazendo trabalho de moto-táxi, a dona de casa expressa insegurança com relação ao atual presidente. “Ele diz uma coisa, depois diz outra… Eu fico com o pé atrás”, expõe Adivânia. A desconfiança dela aflige muitos outros pernambucanos. Pesquisa Ipec realizada no fim de agosto sobre a disputa presidencial no estado mostra que Lula, pernambucano, tem 60% das intenções de voto, contra 22% de Bolsonaro.
Além da PEC eleitoral, em agosto deste ano foi convertida em lei uma Medida Provisória autorizando o crédito consignado para beneficiários de programas sociais — as parcelas do empréstimo são descontadas diretamente da folha de pagamento ou do benefício pago pelo INSS. De acordo com a nova legislação, 45% é o valor máximo a ser comprometido pelo empréstimo para os titulares de benefícios e pensão do Regime Geral de Previdência Social e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). A previsão é que o consignado seja liberado em setembro, e bancos como a Caixa Econômica Federal, Banco Pan e Banco Safra já confirmaram a operação de crédito.
Muitos dos que recebem o Auxílio Brasil aguardam ansiosamente a implementação da medida, cujos juros podem chegar a 79% ao ano. “Eu queria usar para cuidar da minha saúde, os óculos que fiz e ainda estou pagando. Já vi bastante gente falando que ia fazer [o empréstimo] e comprar animais para aumentar a renda”, conta Severina Soares, 56, que aguarda a aprovação da aposentadoria com a qual pretende pagar o valor do consignado. Sua família e amigos alertaram sobre os riscos, e a agricultora está reconsiderando a decisão.
Seu vizinho de bairro, Luiz Amaro dos Santos, o que dribla a fome enquanto sonha com a aposentadoria, nem considera a opção do consignado. “Se eu ainda tiver que pagar esse empréstimo, eu vou comer o quê?” Do auxílio que recebe mensalmente, 80 reais já estão comprometidos, pois, para viajar 43 km com a cadeira de rodas até Limoeiro, onde saca o benefício, necessita de um transporte que o pegue na porta de sua casinha azul. É lá que ele passa a maior parte do tempo esperando: o transporte, o auxílio, a aposentadoria… A espera é embalada pelo canto de seus quatro sabiás, companheiros que escolheu para amenizar a dureza dos dias. Amaro ainda sustenta um sorriso largo, mas, com tantas dificuldades, não consegue acreditar que a vida vai melhorar. Para ele, o futuro é como um pássaro sem asas.
Luiz Amaro dos Santos aguarda há três anos a aposentadoria e mal consegue comprar comida com o dinheiro do Auxílio – Foto: Maria Júlia Vieira
Originalmente na Piauí
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