Em guinada histórica, Casa Branca relativiza propriedade intelectual de imunizantes contra o novo coronavírus e dá apoio de peso à mudança de regras na Organização Mundial do Comércio
O governo do presidente americano Joe Biden anunciou na quarta-feira (5) que vai apoiar a quebra de patente das vacinas contra a covid-19 nas negociações em curso na OMC (Organização Mundial do Comércio).
O anúncio representa uma mudança histórica e inesperada de posição dos EUA, um país tradicionalmente protecionista em relação à propriedade intelectual e engajado na defesa dos lucros de empresas privadas do setor de saúde, seja em governos republicanos ou democratas, como o atual.
“A administração [Biden] acredita fortemente na proteção das propriedades intelectuais, mas com vistas a encerrar essa pandemia, apoia a anulação dessas proteções para as vacinas contra a covid-19” (Catherine Tai embaixadora e representante da USTR (Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos, na sigla em inglês), em comunicado de 5 de maio de 2021)
A justificativa para a mudança de posição foi a excepcionalidade da pandemia da covid-19 que, até o dia do anúncio, já havia deixado mais de 3,2 milhões de mortos e 155 milhões de contaminados em todo o mundo. A doença vem provocando sucessivas ondas de contágio e atingindo novos picos de morte à medida que a propagação do vírus foge de controle em países populosos como Índia e Brasil, o que levou ao surgimento de novas variantes potencialmente mais perigosas.
A vacinação avança nos países desenvolvidos, mas patina nas nações em desenvolvimento. Essa disparidade não apenas representa um “fracasso moral”, como dito em janeiro de 2021 pelo diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), o etípoe Tedros Adhanom, como também traz consigo o risco de que a continuidade da circulação do vírus favoreça o surgimento de novas mutações virais que ponham a perder os avanços já alcançados até aqui.
FOTO: TOM BRENNER/REUTERS – 20.01.2021JOE BIDEN NO SALÃO OVAL DA CASA BRANCA APÓS A CERIMÔNIA DA POSSE REALIZADA NO CAPITÓLIO
Com a quebra das patentes das vacinas atualmente existentes, os EUA esperam acelerar a produção de novas doses e a vacinação massiva nos países em desenvolvimento. A posição americana é uma resposta à iniciativa liderada pelos governos da Índia e da África do Sul na OMC, mas, para se tornar realidade, dependerá da formação de um consenso no organismo, que é responsável pela fixação de regras de comércio mundial.
O consenso é a forma primordial de tomada de decisões entre os membros do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Porém, em caso de impasse, pode haver arbitragem e voto.
“Esses tempos e circunstâncias extraordinárias pedem medidas extraordinárias. Os EUA apoiam a anulação das proteções à propriedade intelectual das vacinas contra a covid-19 para ajudar a acabar com a pandemia, e vai participar ativamente das negociações na OMC para garantir que isso ocorra” (Catherine Tai embaixadora e representante da USTR (Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos, na sigla em inglês), em comunicado de 5 de maio de 2021)
O que é a quebra de patente
Patente é o nome dado à propriedade de um determinado medicamento, o que dá ao dono da descoberta o direito de explorá-lo comercialmente, repondo o valor investido na pesquisa e obtendo adicionalmente uma margem de lucro.
O debate sobre a manutenção ou a quebra dessas patentes – hoje protegidas pelo Acordo Trips (Tratado sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da sigla em inglês), da OMC – opõem médicos especialistas em saúde pública e executivos da indústria farmacêutica.
As empresas detentoras dos direitos agem para manter o máximo controle possível sobre a produção dos medicamentos que desenvolvem, mas especialistas em saúde pública argumentam que esse direito deve ser relativizado quando se trata de debelar crises sanitárias de grandes proporções.
FOTO: LINDSEY WASSON/REUTERS – MÉDICO AMERICANO SEGURA CARTAZ ONDE SE LÊ “VACINAS” EM CENTRO DE VACINAÇÃO DE SEATLE
A quebra de patentes não obriga os laboratórios a compartilharem suas fórmulas, mas permite que qualquer um possa fazer uma engenharia reversa e, a partir do estudo da substância em si, encontrar a própria maneira de produzir a droga e disponibilizá-la para consumo. Dessa forma, multiplicam-se as fontes de produção e o acesso ao medicamento.
O chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz, Jorge Bermudez, que é também colaborador da OMS, explicou em junho de 2020, em entrevista ao Nexo, que o lucro das empresas não é afetado nesse processo.
Ele diz que, mesmo sendo privados, esses laboratórios se beneficiam com milhões em subsídios governamentais e fazem uso de pesquisas realizadas em laboratórios de universidades e outros centros de estudos criados e mantidos com recursos públicos.
No caso dos EUA, o Congresso destinou US$ 10 bilhões em recursos para uma operação de subvenção às pesquisas e aquisição de vacinas do setor privado, batizada warp speed (velocidade dobrada), cuja intenção é acelerar ao máximo a imunização da população do país.
“As companhias recuperam em pouco tempo o valor dos investimentos que elas alegam terem feito nas pesquisas. A recuperação do valor investido acontece em poucos anos, e esses são valores estimados em bilhões de dólares” (Jorge Bermudez chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz, em entrevista ao Nexo em junho de 2020)
Um dos principais laboratórios envolvidos nesse setor, a Pfizer divulgou na terça-feira (5) um faturamento de US$ 3,5 bilhões no primeiro trimestre e uma projeção de entre US$ 15 bilhões e US$ 26 bilhões no acumulado do ano de 2021.
O lucro obtido com a venda das vacinas contra a covid-19 é estimado em 20% do valor das vendas dos imunizantes, que se tornaram a principal fonte de ingresso para Pfizer e outros laboratórios.
“O nosso país pagou mais do que o dobro do valor pago pelos países da União Europeia pelas duas milhões de doses da vacina desenvolvida pela AstraZeneca: US$ 5,25 por dose. Países da União Europeia pagaram US$ 2,16. Não podemos ficar reféns das indústrias farmacêuticas” (Paulo Paim (PT-RS) Senador autor do PL 12/2021, que propõe a quebra de patente das vacinas contra a covid-19, em artigo no Nexo, em 5 de fevereiro de 2021)
Outros gargalos
O anúncio da guinada na posição americana foi celebrado por organizações ativistas do setor, que pressionavam para que a experiência de quebra de patentes de remédios ligados à aids, na primeira década dos anos 2000, fosse repetida agora, na pandemia do novo coronavírus.
De outro lado, representantes da indústria farmacêutica ponderaram que não é o oligopólio das patentes que torna as vacinas insuficientes ou inacessíveis atualmente, mas os gargalos de produção do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) e as dificuldades da cadeia logística. Esse processo vai da manufatura à aplicação das doses, passando pela acomodação adequada e pela distribuição.
“A suspensão de patentes talvez não seja suficiente para aumentar a capacidade produtiva dos países. Direitos de propriedade intelectual não afetam a falta de matérias-primas para produzir as vacinas” (Elizabeth Carvalhaes presidente da Interfarma, que representa no Brasil 51 laboratórios do setor, em declaração dada ao jornal Folha de S.Paulo, no dia 6 de maio de 2021)
A posição do Brasil
O governo do presidente Jair Bolsonaro não está alinhado com os países que defendem abertamente a quebra imediata de patentes das vacinas da covid-19. Essa posição era consonante com a política implementada pelo governo americano sob a administração de Donald Trump até então, mas agora passou a destoar da política adotada por Joe Biden.
Não está claro ainda de que maneira o Brasil pretende lidar com a mudança de posicionamento da Casa Branca. O chanceler brasileiro, Carlos França, deve conversar nesta sexta-feira (7) com a representante comercial americana Catherine Tai para estudar a mudança de cenário.
FOTO: MARCO CORREA, PALÁCIO DO PLANALTO/VIA REUTERS PRESIDENTE BRASILEIRO, JAIR BOLSONARO, FALA NA CÚPULA DO CLIMA PROMOVIDA PELO GOVERNO AMERICANO
Em audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, nesta quinta-feira (5), França ecoou as ponderações feitas pelos representantes dos laboratórios privados, de que o gargalo não está nas patentes em si, mas “nos limites materiais da capacidade de produção das vacinas”.
Além disso, o chanceler afirmou que “segundo os especialistas, vacinas são quase impossíveis de copiar, a curto ou médio prazo, sem o apoio dos laboratórios que as desenvolveram, mesmo com o auxílio da [quebra da] patente”.
O chanceler considera que o Brasil já dispõe de instrumentos legais que permitem o “licenciamento compulsório de patentes de forma ágil e adequada, sem qualquer ruptura com nossos compromissos internacionais”. Nesse sentido, a fala do ministro coincide com a de especialistas como Bermudez, segundo quem “o artigo 72 da nossa lei [nº 9.279, de 14 de maio de 1996] estabelece a possibilidade de emissão de licenças compulsórias nos casos de emergência nacional ou de interesse público”.
Sob o governo Bolsonaro, entretanto, o Brasil optou por não alinhar-se à Índia, África do Sul e outros 110 países em desenvolvimento que pediam a quebra imediata de patentes das vacinas contra a covid-19 na OMC, mas optou por propor um caminho alternativo. Segundo a proposta brasileira, os laboratórios privados que desenvolvem esses imunizantes poderiam transferir espontaneamente e de forma “consensual” seu “expertise e know-how” para a fabricação das doses em países em desenvolvimento.
Essa “terceira via”, como foi apelidada a proposta, recebeu o apoio dos governos de Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia, mas é possível que a mudança americana mude a posição dos propositores no futuro.
Pressão parlamentar
O Senado aprovou no dia 29 de abril um projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que estabelece parâmetros para a quebra de patente das vacinas contra a covid-19. O texto, que espera votação na Câmara dos Deputados, deve ganhar novo impulso com a mudança de posição dos EUA no plano internacional.