Busca de meio termo exige maturidade jurídico institucional da sociedade e representantes
Patentes são importantes porque ajudam a proteger o esforço humano e econômico/financeiro nos processos de invenção e inovação. Em alguns casos este esforço pode ser monumental. Uma patente pode proteger qualquer produto, design ou processo que atenda a certas especificações de acordo com sua originalidade, praticidade, adequação e utilidade. Evidentemente as patentes são muito importantes como incentivos aos indivíduos e às organizações, oferecendo-lhes reconhecimento por sua criatividade e recompensa material por suas invenções comercializáveis. Esses incentivos estimulam a inovação, o que é essencial para que a qualidade de vida do ser humano seja continuamente aprimorada.
Algumas questões práticas são importantes com relação às patentes. As organizações que as detêm não só demonstram seu potencial e capacidade de inovação, mas se tornam, em muitos casos, potencialmente atraentes para obter recursos necessários para investimentos. Isto porque elas podem potencialmente proporcionar mais certeza ou menos incerteza sobre os retornos dos investimentos feitos, uma vez que a receita de um produto de sucesso não seja perdida para imitadores e possa se tornar um cash cow (“vaca leiteira”) para futuros investimentos em pesquisa e inovação.
Sem dúvida as quebras de patentes trazem, de uma maneira genérica, uma séria questão de moral harzard (“risco moral”). As soluções embasadas no entendimento de que os fins justificam os meios podem ser satisfatórias no curto prazo, mas podem ter consequências profundamente adversas nos médio e longo prazos. A sinalização (signaling) para os empreendedores e os mercados podem ser muito ruins, além evidentemente da insegurança jurídica gerada por precedentes.
Mas se por um lado o sistema incentiva mais inovação, para o bem da sociedade, é também um dado de realidade que inovações que salvam vidas muitas vezes têm um preço acima das possibilidades dos pobres. Em algumas situações as patentes podem desencorajar ou até mesmo inviabilizar a inovação. As inovações de software mais importantes nos Estados Unidos aconteceram antes de os Estados Unidos começarem a permitir o patenteamento de software. Em alguns casos royalties que precisariam ser pagos em uma composição de produtos patenteados que serviriam de base para futuras e importantes inovações podem inviabilizar estas inovações. Ou podem limitá-las a um grupo muito restrito de inovadores.
Por exemplo, se muitos inovadores do final do século passado tivessem tido de pagar royalties por todos os softwares que pegaram emprestado, hoje não teríamos e-mail, nem smartphones, nem WhatsApp, nem Google. É fato que as empresas que têm os meios para adquirem patentes estratégicas as usam para extrair royalties elevados de outros inovadores. Estes custos podem chegar a um alto percentual dos gastos com P&D (Pesquisa e Desenvolvimento). De certa forma, em essência, isso é quase um novo imposto sobre a inovação. Para os pequenos inovadores, esta pode ser uma barreira quase intransponível.
Neste complexo contexto existem dois grandes desafios. O primeiro é entender que na complexidade do mundo real regras absolutas podem se tornar inviáveis e insustentáveis. Tanto do ponto de vista ético e moral como do ponto de vista econômico. Não cabem mais discussões baseadas no tudo ou nada. Mas isso nos levam ao segundo desafio. A busca de um meio termo exige uma maturidade jurídico institucional da sociedade e de seus representantes. O tudo ou nada característico de ideologias políticas e econômicas, em ambos extremos, não funcionam e não nos servem e têm nos conduzido com frequência a situações de perdas econômicas, sociais e de caráter humanitário.
Mas a busca por um meio termo e a evitação de generalizações simplistas para situações de alta complexidade e alto impacto se faz essencial. O caso a caso para excepcionalidades se faz necessário. Mesmo que, sem ingenuidade, tenhamos de reconhecer que isto é muito difícil. A própria definição de excepcionalidades dá espaço para inúmeras polemicas e distorções. Principalmente em sistemas jurídicos institucionais disfuncionais nada é fácil, com exceção dos erros e abusos. Sobretudo quando se busca um consenso em larga escala ou em um contexto global.
Por outro lado, um mínimo de bom senso e uma análise mais detalhada dos fatos pode, colocando de lado certos conceitos e juízos prévios, trazer luz a situações inicialmente polêmicas e consideradas solúveis apenas com a geração de graves efeitos colaterais. O caso de uma eventual quebra das patentes de vacinas contra o vírus Covid-19 é um ótimo exemplo. No desenvolvimento destas vacinas, o investimento feito pelos governos de diversos países e, portanto, pelos seus pagadores de impostos, foi massivo. Isto foi absolutamente essencial para a consolidação do salto tecnológico, a consolidação do potencial industrial para sua fabricação em larga escala e o sucesso que se avizinha no combate à pandemia. Mesmo que colocássemos em segundo plano a questão humanitária e questões morais e éticas essenciais (o que não é o caso) e ponderássemos apenas sob a ótica pecuniária, aqui o contribuinte acabou se tornando “sócio investidor” das farmacêuticas.
As farmacêuticas precisam de retorno pelos seus esforços e investimentos. De dezenas de pesquisas, às vezes apenas uma chega ao ponto de gerar um medicamento aprovado por uma agência como a FDA nos EUA ou Anvisa no Brasil. O lucro com este medicamento deve ser capaz de cobrir as despesas de todos os outros que fracassaram. E mesmo assim o risco não acaba. Imaginem uma situação hipotética e fictícia onde usuários de Viagra passem, após alguns anos, a ficar com as orelhas e narizes azuis… Também não cabe aos governos ficar regulando preços do setor privado. Mas, na perspectiva de situações excepcionais e no contexto específico das vacinas contra o Covid-19, três fatores importantes, adicionais à “sociedade” das farmacêuticas com o contribuinte, devem ser considerados na análise: há uma emergência humanitária global e de larga escala; parece que o retorno financeiro esperado com as vacinas é muitas vezes acima do que seria razoável para remunerar os acionistas (excepcionalmente isso pode e deve ser verificado); as farmacêuticas estão em uma situação de empreendimento sem risco, já que os contratos de venda das vacinas as isentam de responsabilidades por eventuais “orelhas e narizes azuis”.
Não é à toa que o governo Biden nos EUA está vencendo tabus com relação à quebra de patentes das vacinas para o combate a atual pandeia. Não é abrir mão de princípios importantes. Não é abrir precedentes. É analisar com bom senso e parcimônia os fatos e as especificidades de cada situação. A União Europeia e outros países em todo o mundo estão reexaminando suas posições. O Brasil também o fará e talvez um raro consenso global venha a ajudar a todos, inclusive e paradoxalmente às próprias farmacêuticas. Para o futuro cada situação excepcional exigirá uma combinação diferente de soluções. Outras situações poderão eventualmente ser resolvidas, por exemplo, sem quebra de patentes, mas com subsídios à P&D e/ou subsídios governamentais aos usuários e/ou renegociação dos valores dos royalties.
Vivemos uma grande oportunidade de colocar de lado justificativas entre fins e meios que já à priori vamos construindo como inerentemente conflitantes. A humanidade agradece.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!
Post Views: 4