Chile vira uma página de sua história

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Em data histórica, chilenos vão às urnas para eleger representantes para escrever nova Constituição

No dia 11 de setembro de 1973, no Palácio de La Moneda, sede do governo, o presidente eleito Salvador Allende tinha motivos para estar preocupado. Naquela manhã, o palácio estava cercado por militares dispostos a derrubá-lo, vivo ou morto. Às 11h50, o edifício começou a ser bombardeado por aviões da Força Aérea Chilena. O golpe militar era claro. Seu comandante das Forças Armadas, o general Augusto Pinochet, o havia traído.

Para Allende, a ação daquela manhã terminou às 11h50, quando se suicidou com um tiro de fuzil que o amigo Fidel Castro lhe havia presenteado. A partir de então, repressão, perseguição e assassinatos e uma ditadura militar brutal que perdurou até 1990. O general Augusto Pinochet, comandante da ação, contou com apoio norte-americano (CIA) e de outros atores, incluindo brasileiros.

A brutalidade deste dia e da ditadura que se seguiu ((1973-1990), deixou marcas e cicatrizes profundas na sociedade chilena. E também uma Constituição, redigida em 1980 e ainda em vigor. Os resquícios do autoritarismo, a desigualdade social e a estrutura legislativa se tornaram incômodos para boa parte da população e essa insatisfação acumulada culminou em uma onda de grandes e violentos protestos em 2019. Desta convulsão social emergiu a proposta de se escrever uma nova Constituição.

Todo este processo tem neste fim de semana um passo muito importante: a eleição da Assembleia Constituinte que redigirá a nova Carta Magna. Serão eleitos 155 pessoas para elaborar uma nova Constituição que permitirá a este país de economia rica, mas muito desigual, estabelecer novas regras para avançar rumo a uma sociedade mais representativa e inclusiva, com maior bem-estar social.

São mais de 14 milhões de eleitores – entre 19 milhões de habitantes – convocados neste sábado e domingo para votar em meio a um clima marcado pelas restrições da pandemia, que interrompeu, adiou e dificultou a campanha dos 1.373 candidatos concorrentes para esta que é considerada a eleição mais relevante em 31 anos de democracia.

“Esta eleição definirá quem redigirá uma Constituição que provavelmente se projetará por 40 ou 50 anos”, advertiu Claudio Fuentes, acadêmico da Escola de Ciências Políticas da Universidade Diego Portales. A eleição deste fim de semana é “definitivamente” a mais importante na democracia e um novo Chile está em jogo, acrescenta.

Cada eleitor votará em quatro cargos: um constituinte, um prefeito, um vereador e pela primeira vez chilenos elegerão um governador regional, outro sinal de que se busca uma sociedade mais participativa em um dos poucos países da OCDE que não elegeram autoridades regionais.

“É como realmente começar a se livrar de ‘Pinóquio’, sua sombra, sua herança, seu tudo”, disse Carmela Urquiza, administradora de 62 anos, na saída de um edifício em Providencia, Santiago.

A Constituição atual, várias vezes alterada desde que o Chile recuperou a democracia em 1990, é considerada a armadura legal deixada pelo ex-ditador Augusto Pinochet – “Pinóquio”, como é popularmente chamado pelos opositores – para estabelecer um sistema com pouca participação do Estado e grande abertura ao livre mercado.

Mais de 1,3 mil candidatos, em 70 listas diferentes, disputam uma vaga para escrever essa nova Carta Magna, que enterrará a ditada por Pinochet em 1980, apontada como a origem das desigualdades. Mais de 60% da população, de acordo com pesquisas, considera que esta Carta Magna criou um sistema benéfico para um pequeno número de pessoas privilegiadas, com predomínio do setor privado na educação e saúde, e um sistema de previdência privada que só se alimenta pela contribuição dos trabalhadores.

Pandemia e otimismo

A Assembleia Constituinte, composta por 155 membros eleitos pela população, foi a opção escolhida por quase 80% do eleitorado no plebiscito de 25 de outubro, com a maior participação eleitoral dos últimos anos (51%). Em razão da pandemia, a eleição, que já tinha sido adiada uma vez, ocorrerá em dois dias e o objetivo é que a população possa votar com tranquilidade e a segurança sanitária necessárias

A eleição ocorre em um contexto de um nascente otimismo devido ao aumento espetacular dos preços mundiais do cobre, principal produto de exportação do Chile. Também há uma diminuição progressiva das infecções, mortes e ocupação de hospitais por Covid-19. Mais de 48% da população-alvo de 15,2 milhões de habitantes já está imunizada com as duas doses contra o coronavírus.

Este processo também marcará a primeira vez no mundo que uma Constituição é escrita por constituintes eleitos e também na história do Chile em que 17 cadeiras são reservadas para os 10 povos originários do país.

O país sul-americano tenta, assim, canalizar o grande descontentamento social também expresso com a violência em outubro de 2019. “Esta Constituição tem que ser escrita sem qualquer tipo de medo, mas também tem que ser escrita sem qualquer tipo de raiva”, diz nas redes sociais o jogador de futebol da “geração de ouro” da seleção chilena, Jean Beausejour Coliqueo, de ascendência haitiana e mapuche, convidando para a votação.

Os opositores a uma nova Constituição propuseram reformas ao texto, mas nos últimos anos não houve respostas às demandas por mudanças, como marchas em massa para modificar o sistema previdenciário, que fornece à maioria pensões abaixo do salário mínimo (R$ 2,1 mil).

Esse processo foi finalmente alcançado após a explosão social de 2019 que colocou em xeque o governo conservador de Sebastián Piñera e todo o espectro político. Hoje é impossível prever a composição das forças políticas que farão parte da Assembleia Constituinte, mas dadas as dificuldades enfrentadas pelos independentes para financiar campanhas, acredita-se que os candidatos de partidos tradicionais acabarão sendo maioria.

“São muitas as novas variáveis em jogo: é uma eleição sem precedentes, os governadores são eleitos pela primeira vez, e isso é feito no contexto de uma pandemia, com um sistema de paridade, com a eleição de cadeiras reservadas, e com listas de independentes. Tudo isso é novo. Logo, é muito difícil fazer previsões específicas”, pontua Fuentes.

Os votos começam a ser apurados neste domingo. Primeiro, serão contados os votos dos constituintes, depois os dos povos indígenas, dos governadores, seguidos dos prefeitos e, por último, dos vereadores. O Chile costuma ter os resultados eleitorais poucas horas após o fechamento das urnas. No entanto, desta vez, os resultados devem demorar mais em razão do processo complexo que mistura sistema proporcional com voto distrital, além do ajuste entre candidatos homens e mulheres, que devem ter representação equivalente.

Novo modelo?

Um novo modelo de país, onde os direitos sociais são garantidos, ou a manutenção do modelo econômico atual, mas com um Estado “mais moderno” são duas grandes visões em jogo na histórica eleição. Educação, saúde, ou moradia, é a opção defendida pelos candidatos da esquerda opositora, agrupados em 69 das 70 listas inscritas. Por sua vez, os aspirantes da direita governante – reunidos em uma única grande lista de candidatos – defendem o sistema atual, ao qual atribuem o crescimento econômico do país.

Para Jorge Insunza, advogado de 54 anos, ex-ministro e ex-deputado do progressista Partido pela Democracia, um dos principais pontos de mudança da nova Constituição é o papel “subsidiário” do Estado, visão imposta pela ditadura que limita sua ação. “Precisamos de um Estado ativo para proteger a saúde, fortalecer a educação, fornecer pensões decentes, estabelecer o direito à moradia e à água como um direito humano fundamental”, diz Insunza, que faz parte da chamada “Lista de Aprovação”, que reúne os maiores partidos de centro-esquerda. O grande desafio desta eleição “é garantir os direitos sociais. Esta é a grande aspiração dos cidadãos, e temos que construir um amplo consenso em torno disso”, acrescenta.

“O Estado tem de continuar a ser um Estado subsidiário, porque tenho a certeza de que o que fez com que este país deixasse de ser o mais pobre do continente a um dos mais ricos ‘per capita’ foi a cooperação entre empresas privadas”, afirma Susana Hiplán, candidata da lista “Vamos pelo Chile”, a única que reúne todos os partidos de direita e de extrema direita. “Não creio que o Estado deva ter um papel preponderante, porque, infelizmente, neste continente isso não funciona”, acrescenta esta advogada, de 28 anos.

Para Hiplán, a solução para as demandas dos cidadãos é construir um “Estado mais moderno, mais eficiente e distribuir muito melhor os recursos que arrecada em impostos”. Também é vital proteger a propriedade privada. “Tem que ter forte proteção. Existe uma relação direta entre a proteção da propriedade privada e o desenvolvimento dos países, o fim, ou a redução da pobreza”, afirma.

Além dos constituintes, os chilenos também votarão por vereadores, prefeitos e governadores regionais. Os primeiros resultados serão divulgados na noite de domingo e a expectativa é a de que aqueles que farão parte da Convenção Constitucional já sejam conhecidos no mesmo dia.

Os deputados constituintes chilenos terão nove meses para elaborar a nova Carta Magna – o prazo pode ser prorrogado por mais três meses. Durante os debates, o setor que obtiver um terço dos 155 votos na Convenção Constitucional poderá vetar as propostas de seus adversários, que necessitariam de acordos transitórios para atingir os dois terços necessários para traduzir suas ideias em dispositivo constitucional.

Finalizados os trabalhos, cerca de 60 dias depois, ocorrerá um novo plebiscito e, desta vez, os chilenos decidirão se aprovam ou não o novo texto. Caso ele seja aprovado será o fim do último resquício da ditadura de Pinochet. Se for rejeitado, a atual Constituição, de 1980, seguirá vigente.

Em artigo, o sociólogo Andrés Kogan Valderrama afirmou que, “com a eleição, abre-se uma nova possibilidade de construir um país diferente, onde pensemos pela primeira vez o tipo de convivência que queremos ter, sem exclusões, onde a interculturalidade, a sustentabilidade, a diversidade sexual, a equidade de gênero, o direito à diferença e os bons viveres se concretizem em um novo marco institucional, que permita nos relacionar de outra maneira”.

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