REPÓRTER BRASIL – O Carrefour se encontra no meio de uma polêmica envolvendo a compra de carne com ligações ao pecuarista Bruno Heller, apontado como o “maior devastador da Amazônia” pela Polícia Federal. Esta transação lança luz sobre a questão da “lavagem de gado”, uma prática em que animais criados em áreas irregulares são movidos para áreas tidas como “limpas” e, em seguida, vendidos a grandes frigoríficos, apresentando um desafio considerável para a sustentabilidade da indústria de carne no Brasil.
Fazendas da família Heller vendem gado para o frigorífico Frialto, fornecedor da rede de supermercados de origem francesa. Bruno Heller e parentes já receberam R$ 27 milhões em multas ambientais.
O pecuarista Bruno Heller, preso no início do mês e apontado pela Polícia Federal (PF) como o “maior devastador da Amazônia”, transportou gado de uma fazenda da família multada por violações ambientais para outras duas sem autuações, em 2021 e 2022. No mesmo período, as propriedades venderam animais para um frigorífico fornecedor do Carrefour. Essa triangulação é um indício da chamada “lavagem de gado”, quando bois criados em locais irregulares são repassados para áreas consideradas “ficha limpa” e, posteriormente, vendidos para grandes frigoríficos.
A prática é comumente utilizada para driblar mecanismos de controle e considerada um dos principais desafios de sustentabilidade da indústria da carne no país. Informações de trânsito de animais obtidas pela Repórter Brasil mostram que animais criados na fazenda Formosa II – multada por desmatamento ilegal e com suspeita de grilagem – foram transferidos em 2021 e 2022 para a Formosa V e a Formosa VI, livres de implicações ambientais. No mesmo período, estas duas propriedades, em nome de filhas de Bruno Heller, venderam animais para o frigorífico Vale Grande, do grupo Frialto. Em 2020, o próprio Bruno já havia vendido animais ao matadouro.
A Frialto possui três abatedouros no norte de Mato Grosso, todos eles habilitados para exportação à União Europeia e outros países. Foi uma dessas unidades, a de Matupá (MT), que adquiriu os animais da família Heller com suspeitas de irregularidades. Esse mesmo abatedouro forneceu carne ao Carrefour nos anos de 2021 e 2023, segundo o aplicativo “Do Pasto ao Prato”. A ferramenta rastreia o código de vigilância sanitária encontrado na embalagem dos produtos e identifica o frigorífico de origem da carne. Procurado, o Carrefour afirmou por meio de nota que examinou “minuciosamente o extenso banco de dados de fazendas que fornecem carne a todos os frigoríficos que abastecem o Grupo e confirmou a ausência de qualquer propriedade vinculada ao denunciado mencionado ou a indivíduos com o mesmo sobrenome”.
A Frialto, no entanto, confirmou que abateu 249 animais “em nome de Tatiana Heller”, filha de Bruno, em 2022 e 2023. O frigorífico informou ainda que bloqueou as propriedades, depois de identificar “possível ligação com não conformidades de Bruno Heller”. A nota da Frialto reconhece o problema da triangulação de gado, mas diz não haver ferramentas para “monitoramento de fornecedores indiretos”. O grupo é um dos signatários do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, proposto pelo Ministério Público Federal em 2009 para que frigoríficos não comprem gado de áreas irregulares.
O Carrefour enviou novo posicionamento afirmando que a carne dos animais criados pelos Heller não chegou aos supermercados do grupo, apesar de os bois da família terem sido abatidos na unidade fornecedora da rede varejista. A defesa de Bruno e Tatiana Heller afirmou, por meio de nota, que aguarda a conclusão das investigações e só se manifestará nos autos do processo, “oportunidade em que os fatos serão devidamente esclarecidos e devidamente comprovada a inocência de Bruno”.
Heller é investigado pela Polícia Federal por suspeita de ter desmatado ilegalmente 6.000 hectares de floresta em Novo Progresso (PA), o que o caracterizaria como “maior devastador do bioma amazônico já investigado”. Desde 2007, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) notifica o pecuarista tentando retomar as terras que teriam sido griladas por ele. A prisão, no último dia 3 em Novo Progresso (PA), ocorreu no âmbito da Operação Retomada. Na ocasião, Heller foi detido por porte ilegal de arma e porque os policiais encontraram ouro escondido sem documentação.
O fazendeiro foi liberado no dia seguinte e responderá em liberdade pelos dois crimes. A Repórter Brasil teve acesso às 299 páginas do processo movido pela autarquia que revela como Heller dividiu as terras supostamente griladas entre seus familiares. Esposa, filhas, irmãos, sobrinhos e outros parentes do pecuarista foram usados para tentar regularizar as fazendas, o que o Incra chamou de “fracionamento fraudulento”. Entre os familiares que atuavam como laranjas de Heller, segundo o Incra, está a filha dele e fornecedora da Frialto, Tatiana Heller. Em 2008, época em que o fracionamento do terreno foi realizado, ela tinha 17 anos. Isso indica, segundo o Incra, que não era ela quem explorava a área naquele momento.
Desde a década de 1990, Bruno Heller e seus familiares acumularam 43 autuações ambientais do Ibama, que vão de desmatamento ilegal à compra de gado de áreas protegidas, somando R$ 27 milhões em penalidades. Bruno recebeu, sozinho, cerca de metade das multas. Já a filha do pecuarista recebeu três multas do Ibama, em 2023, no valor total de R$ 5 milhões por comprar e comercializar mais de 1.600 cabeças de gado criadas em unidade de conservação federal, a Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso.
Cruzando informações geográficas das duas autuações do Ibama mais recentes no nome de Bruno Heller com imagens de satélite na plataforma Planet Explorer, é possível identificar a dimensão da devastação atribuída ao pecuarista. Em menos de cinco meses em 2021, uma área de quase 1.700 hectares foi completamente devastada, o equivalente a 11 vezes o parque do Ibirapuera, na capital paulista.
Grilando terras da reforma agrária
Parte da área grilada por Heller (1.900 hectares) está sobreposta ao assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa. Heller é um dos 144 fazendeiros que, segundo relatório elaborado pelo Incra, invadiram a área destacada pelo governo federal para reforma agrária. Com as invasões do agronegócio, o assentamento é afetado pelo roubo de madeira, como a Repórter Brasil mostrou em 2019, e também pela soja, que foi semeada próxima à vila que concentra casas de alguns moradores, como a Repórter Brasil denunciou em 2022. Esse tipo de cultivo contraria a finalidade dessa modalidade de reforma agrária, que deveria ser de interesse social e ecológico, destinado à subsistência das famílias assentadas.
Assassinatos no campo
Os conflitos por terra levaram ao assassinato de dois líderes comunitários que atuavam no Terra Nossa. Em 2018, Antônio Rodrigues dos Santos, o Bigode, desapareceu após denunciar extração ilegal de madeira dentro de seu lote. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar da vizinha Castelo dos Sonhos, Aluísio Sampaio (conhecido como Alenquer), passou a exigir publicamente a investigação do desaparecimento de Bigode. Também foi assassinado. A atual liderança, Maria Márcia Elpídia de Melo, sobreviveu a um atentado e está escondida, vivendo sob a proteção do governo federal. “Os grileiros estão avançando e fomentando a venda de lotes”, disse Melo à Repórter Brasil em 2022.
O Terra Nossa foi criado em 2006 em uma área de 150 mil hectares, equivalente ao tamanho da cidade de São Paulo, localizada entre os municípios de Novo Progresso e Altamira. Ali, 350 famílias de pequenos agricultores vivem em lotes já demarcados pelo Incra, mas ainda aguardam que o órgão consolide o assentamento, com criação de infraestrutura, concessão de crédito e auxílio técnico.
Há exatos quatro anos, em agosto de 2019, Novo Progresso, onde estão concentradas as atividades da família Heller, foi o epicentro do episódio que ficou conhecido como Dia do Fogo, quando fazendeiros do Pará combinaram por WhatsApp para queimarem ao mesmo tempo áreas de pasto e floresta, ainda no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL).
Foi também em Novo Progresso que bolsonaristas indignados com a derrota do ex-presidente nas eleições fecharam a BR-163 e atacaram policiais rodoviários federais, que tentaram acabar com o bloqueio.