Os MEIs e a fábula perversa do empreendedorismo

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Perfis são diversos; mas microempresários vivem realidade oposta à lenda neoliberal. Jogados na informalidade pela crise, têm rendimentos baixos, jornadas exaustivas, empréstimos limitados. Um projeto de lei procura mudar essa realidade

Conhecendo os microempreendedores individuais

Marta, 50 anos, foi demitida da empresa em que trabalhou como secretária sênior por mais de duas décadas. Logo percebeu que não adiantava buscar outro emprego, uma vez que a função que ocupava vinha sendo rapidamente substituída por eficientes programas de computadores e a economia do país estava em plena recessão.

Precisando ajudar o filho desempregado, a filha subempregada e se manter com as poucas economias que tinha, Marta resolveu transformar uma de suas melhores habilidades, a cozinha, em atividade produtiva e finalmente, se a sorte lhe sorrisse, realizar o sonho de ser empreendedora!

Assistiu aulas de culinária na TV, fez cursos de aperfeiçoamento na internet, de gestão no Sebrae e começou a elaborar pratos, salgados e doces e oferecer a seus vizinhos. Rapidamente os pedidos surgiram e ela sentiu a necessidade de se formalizar, constituir uma MEI que lhe possibilitasse ter CNPJ, abrir conta em banco, emitir Nota Fiscal, obter empréstimos bancários, continuar contribuindo com o INSS e manter a esperança de um dia se aposentar.

Robson, 34 anos, foi demitido da empresa de ônibus na qual trabalhava como motorista, passando a fazer parte da triste estatística de 14 milhões de desempregados no país. Com 2 filhos pequenos para sustentar e sua esposa também desempregada, Robson resolveu financiar um carro com o dinheiro do Fundo de Garantia e da rescisão e trabalhar como motorista de aplicativo.

Como os ganhos obtidos em 8 horas de trabalho diário, descontados o combustível, a manutenção do veículo, a comissão do aplicativo e a prestação do financiamento, não eram suficientes para as despesas da casa. Robson passou a trabalhar 12 ou até 14hs dia, mesmo aos sábados e domingos.

Sua esposa, Norma, conseguiu arrumar um serviço temporário para fazer em casa, conserto de roupas para uma loja de varejo. Como precisaria emitir Nota Fiscal, passou a fazer parte do exército de 2,6 milhões de pessoas que abriram MEIs em 2020.

Leo, 26 anos, graduado em Tecnologia da Informação, viu a empresa na qual trabalhava ir à falência e fechar as portas na pandemia. Ficou desempregado e sem receber o que lhe era devido.

Sem ganhos, teve que abandonar o curso de pós-graduação antes que as mensalidades atrasadas se tornassem um pesadelo em sua jovem vida. Somente com a aposentadoria do pai não seria possível a família sobreviver com dignidade e assim, sem outra opção, Leo monta uma MEI e começa a fazer qualquer trabalho que aparece, passando a ser mais um brasileiro a viver de “bico”.

A utopia, os desafios e a distopia do empreendedorismo no Brasil

O que Marta, Robson, Norma e Leo têm em comum? Conforme afirmam as propagandas veiculadas no horário nobre da TV, são empreendedores destemidos, merecedores de aplausos e com um futuro promissor à sua frente.

No entanto, ao olhar a questão com um pouco mais de profundidade vemos que de todos eles, apenas Marta sempre cultivou o sonho de trabalhar por conta própria e a situação de desemprego fez esta vontade aflorar. Os outros foram conduzidos para este tipo de atuação por pura necessidade, pela situação econômica precária do país em que vivem.

Todos eles rapidamente percebem que para empreender não basta trabalhar duro, ter habilidade, fazer uma boa gestão do negócio, aprender a usar com eficiência as redes sociais para um bom marketing. A constante alta no custo dos alimentos, gás, energia elétrica, combustível e a enorme concorrência, faz com que os preços cobrados, os ganhos adquiridos sejam insuficientes para suas necessidades básicas.

Em noites de insônia Marta teme falhar, não ser capaz de rapidamente crescer e prosperar como tantos casos que as campanhas apregoam.

Robson nada mais é do que um trabalhador precarizado, sem direito a férias e fins de semana remunerados, sem assistência médica, sem aposentadoria. Lamenta todos os dias a sua sorte, tem medo de sofrer um acidente pois nem plano de saúde tem mais, de ser assaltado, de pegar a covid-19, de nunca poder se aposentar.

Rosa costura sozinha, em sua própria sala, tentando aproveitar ao máximo a luz do dia para não aumentar muito a conta de luz. Seus olhos ardem, mas ela não pode parar, pois o ganho por peça é mínimo.

Daria tudo para voltar ao salão de beleza onde trabalhava, ganhando salário fixo, comissão e gorjetas muitas vezes generosas das clientes. Sem falar da alegre balbúrdia, dos domingos e segundas feira livres para cuidar da casa e descansar.

Leo gasta a maior parte do seu tempo no transporte público lotado para ir e vir às casas e escritórios dos clientes e para buscar insumos e peças mais em conta para os computadores que conserta. Teme contrair o vírus, ficar sem trabalhar e contaminar os avós idosos que moram em sua casa.

E se Marta pudesse ter equipamentos mais modernos e adequados em sua cozinha, contratar uma ajudante, quem sabe as vendas aumentariam e ela ganharia na quantidade;

E se Norma pudesse comprar tecidos, uma máquina de costura mais moderna e uma mesa de corte poderia confeccionar lindas peças e vender para lojas de varejo da vizinhança;

E se Leo pudesse comprar motos, computadores, softwares, propor uma associação de MEIs a seus colegas para que colaborassem e não competissem, mantendo os preços em um patamar digno, agilizando a locomoção, atendendo just in time, como apregoam os cursos de empreendedorismo, expandindo sua atuação para a região metropolitana e conquistando mais clientes;

E se Robson pudesse quitar o financiamento do carro e ter mais dinheiro no fim do mês, não precisaria correr o risco de dormir ao volante e, quem sabe, teria tempo de procurar outro emprego de motorista, carteira assinada.

São muitos os questionamentos, as angústias, os desafios e atropelos que nossos personagens enfrentam.

Mas eles não estão sozinhos, 53% das 11,3 milhões de MEIs no Brasil tem um faturamento que oscila em torno de R$ 1.000,00 por mês, embora a legislação lhes permita faturar até R$ 81.000,00/ano.

Apesar de estarem legalizados, apenas uma em cada cinco MEIs obtém empréstimos de bancos ou instituições financeiras formais. A maioria busca recursos com amigos, parentes e até mesmo agiotas.

A criação da categoria MEI, significou uma expressivo avanço para tirar da ilegalidade milhões de pessoas que viviam à margem do sistema, mas a simples obtenção de um CNPJ e alguns direitos não garante a esses trabalhadores um passaporte para o empreendedorismo exitoso, digno, ético.

Muitas vezes significa apenas a legalização do trabalho precarizado.

Propostas emancipatórias que começam a ser trabalhadas

Ciente desta triste realidade, a AlampymeBr (Associação Latino-Americana de Pequenas e Microempresas) elaborou proposta para a Câmara de Vereadores de São Paulo instituir um Comitê de Crise Suprapartidário, com a participação da sociedade civil e a criação de Programa de Desenvolvimento Econômico para MEIs – PDE – a fim de estabelecer políticas emergenciais que garantam o funcionamento das MEIs e das Micro e as Pequenas Empresas contribuindo efetivamente para a redução do desemprego.

Em resposta à demanda da Alampyme, a Câmara elaborou um Projeto de Lei para criar o PDE de MEIs absorvendo suas sugestões e indo além. A discussão sobre o projeto está aberta e, se aprovado, significará um avanço enorme para dirimir os problemas que os microempreendedores enfrentam em um sistema capitalista liberal e altamente competitivo.

Só assim o empreendedorismo popular poderá sair do campo da ficção e se tornar realidade no Brasil.

por  na coluna Mercado x Democracia – Outras Palavras

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