A infâmia das patentes

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
As farmacêuticas ganham bilhões com as vacinas, exemplo nefasto de como lucrar com uma catástrofe de saúde sem precedentes

As empresas farmacêuticas, seus executivos e acionistas já estão ganhando bilhões com as vacinas contra covid, em um dos exemplos mais nefastos de como lucrar a partir de uma doença. Isso se deve em grande parte a um sistema, perverso em sua origem, que concentra a capacidade de produção na mão de poucos – sejam empresas ou Estados – o que intensifica e produz novas desigualdades na distribuição e consumo desses produtos. Nesse sistema, a indústria farmacêutica age em parceria com os Estados: primeiro, recebe subsídios governamentais para desenvolver medicamentos; em seguida, na combinação de preços geralmente muito acima dos custos, o que gera lucros exorbitantes para além dos que são considerados “necessários”, dentro desse sistema, para investimentos de risco como vacinas. Enquanto isso, os países mais pobres são deixados para trás novamente: 90% da produção das vacinas está sendo distribuída em países considerados desenvolvidos, enquanto que o restante pode demorar anos para ter vacinas suficientes para dar conta de suas populações. Pior: com a defesa ferrenha, por parte dos governos destes países, dos direitos de propriedade intelectual das empresas, evita-se (ou se dificulta) que os países mais pobres possam produzir vacinas de modo mais rápido e barato.

Traduzimos (melhor dizendo: adaptamos) dois textos do site britânico Corporate Watch [este e este], que desde 1996 cobre e pesquisa corporações, para dar mais detalhes dos abusivos lucros que a indústria farmacêutica obtém a partir da exploração das patentes de medicamentos produzidos, em sua maior parte, a partir de dinheiro público.

Cinco maneiras pelas quais as grandes empresas farmacêuticas ganham tanto dinheiro:

1. Persiga o lucro, não as demandas

Um dos maiores problemas com um sistema que direciona a pesquisa médica mais para obtenção de lucros que para as necessidades de saúde da população é que o investimento em P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) é canalizado para os produtos que podem gerar mais dinheiro para as empresas farmacêuticas. Os melhores negócios são os medicamentos para pacientes que precisam de medicações caras (como câncer) e os que vão ser usados por muito tempo. Os melhores pacientes são os dos EUA, onde os preços dos remédios são mais altos e certas condições crônicas do sistema de saúde local exigem prescrições repetidas. Ou onde as drogas são altamente viciantes, como no caso de opióides como o Oxycontin, indicado para o tratamento de dores moderadas a severas por período de tempo prolongado.

Por outro lado, as vacinas de dose única contra epidemias que afetam principalmente os países mais pobres são o exemplo clássico de um mau negócio. Assim, a pesquisa sobre vacinas foi relativamente negligenciada até o ano passado – quando a covid-19 se tornou um problema global e o financiamento do Estado entrou em ação.

2. Patentear tudo

As empresas farmacêuticas detêm patentes – licenças que garantem seus direitos de “propriedade intelectual” – de novos medicamentos. Isso significa que ninguém mais pode produzir o mesmo medicamento sem sua permissão durante a vigência da patente, que é de 20 anos na maioria dos países.

A ideia do livre mercado é que, se uma empresa obtém altos lucros, novos participantes poderão entrar fazendo a mesma coisa (produto, medicamento, etc), mas mais barato, puxando então para baixo os preços e os lucros de todo esse mercado. As patentes significam que as empresas farmacêuticas têm monopólios legais sobre medicamentos específicos: como nenhuma outra empresa pode baixar os preços, elas podem estabelecê-los e obter grandes lucros.

O sistema de propriedade intelectual é imposto por governos em todo o mundo sob o acordo TRIPS, que é um dos principais documentos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Alguns estados são apoiadores mais fervorosos do que outros; os EUA são particularmente conhecidos como um forte defensor da propriedade intelectual das empresas; a UE não está muito atrás (como mostra este relatório recente do Corporate Europe Observatory).

Governos como da Índia e África do Sul, juntamente com ONGs como a Médicos Sem Fronteiras, pediram que as patentes de vacinas fossem canceladas durante a pandemia da covid-19. Isso poderia permitir que os países mais pobres começassem a fabricar suas próprias vacinas a preço de custo – em vez de esperar até 2023 para que as empresas farmacêuticas atendam aos seus pedidos. A ideia sofreu forte oposição dos EUA, UE, Reino Unido e outros países ricos, como contamos aqui no BaixaCultura em janeiro.

3. Preços muito mais altos do que os custos

Como os apoiadores da indústria farmacêutica justificam um sistema que nega medicamentos a preços acessíveis para bilhões de pessoas? O argumento é que essa é a única maneira de cobrir os custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de novos medicamentos. O principal grupo de lobby da indústria dos EUA, a Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PHRMA), afirma: “Em média, leva de 10 a 15 anos e custa US $ 2,6 bilhões para desenvolver um novo medicamento, incluindo o custo de muitas falhas”. Sem patentes, dizem, os “rivais” (atenção ao vocabulário) poderiam simplesmente copiar suas receitas e ninguém se daria ao trabalho de desenvolver novos medicamentos.

Um sistema global e perverso, que concentra a produção nas mão de poucosUm sistema global e perverso, que concentra a produção nas mão de poucosAs empresas farmacêuticas gastam, em média, cerca de 20% de toda a receita de vendas em P&D. Isso é realmente alto em comparação com outras indústrias: apenas a aviação e a indústria espacial têm percentual maior em P&D. Mesmo assim, as vendas cobrem os custos muitas vezes. Uma vez que os medicamentos estão na linha de produção, os custos reais de fabricação são minúsculos em comparação com os preços frequentemente altos (ao contrário das naves espaciais e de aviões, que são muito caros de produzir por unidade). Essa diferença é o que explica aquela já citada margem de lucro de 20% que a indústria farmacêutica obtém com seus produtos.

A insulina custa em média menos de 6 dólares por frasco para produzir, mas é vendida por até 275 dólares nos Estados Unidos – um exemplo dado pelo grupo da campanha Pacientes por Drogas Acessíveis (Patients for Affordable Drugs). Na Europa, a gigante farmacêutica Gilead cobrou uma média de 55.000 euros por um tratamento de 12 semanas contra a hepatite C – quando os remédios custam menos de 1 euro por comprimido para fabricar [fonte]. Esses exemplos extremos ilustram um padrão; um estudo acadêmico da Universidade do Sul da Califórnia descobriu que as empresas farmacêuticas dos EUA têm uma margem média de lucro bruto de 71% nas vendas de medicamentos – ou seja, o dinheiro que ganham com um medicamento após descontado o custo de produção, mas antes das despesas de toda a empresa, como marketing, impostos ou bônus executivos.

4. Minimize o risco

As empresas farmacêuticas argumentam que têm de assumir o risco de desenvolver medicamentos experimentais que nunca chegam ao mercado. Por exemplo, o custo médio de um novo medicamento contra o câncer foi estimado em 648 milhões de dólares. A cifra de 2,6 bilhões de dólares citada no PHRMA acima é, na verdade, uma estimativa de “risco ponderado” que “inclui o custo de muitas falhas”. Se uma empresa farmacêutica inventar 10 medicamentos que custam 260 milhões de dólares cada, mas apenas um for aprovado, então a empresa teve o custo de 2,6 bilhões de dólares no total para produzir um remédio que possa ser vendido.

Só que, na realidade, as grandes empresas farmacêuticas “inventam” apenas alguns dos medicamentos que patenteiam e vendem. Uma análise de dois gigantes da “Big Pharma” mostra que a Pfizer desenvolveu apenas 10 dos 44 medicamentos mais vendidos “da casa” (23%) – e a Johnson & Johnson desenvolveu apenas 2 de 18 (11%). A “inovação” ocorre em grande parte em laboratórios universitários e governamentais, ou em empresas de pesquisa menores.

E muito disso é financiado pelo Estado. Os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, o principal (mas não o único) órgão governamental de pesquisa médica do país, doam 39,2 bilhões de dólares por ano para universidades, escolas médicas e outras organizações de pesquisa.

Uma vez que os medicamentos foram descobertos, os gigantes farmacêuticos intervêm – para comprar uma licença, ou uma empresa inteira – uma vez que o medicamento já se provou por meio de testes iniciais. (Veja um relatório recente dos EUA sobre esse tema.) As vacinas contra covid-19 são exemplos clássicos.

5. Lobby, lobby, lobby

A indústria farmacêutica é poderosa, com muitos amigos influentes. Nos Estados Unidos, o país com os preços de medicamentos mais altos do mundo, o setor farmacêutico gasta mais do que qualquer outro setor em lobby. Ao longo de 22 anos, as empresas farmacêuticas e grupos da indústria gastaram 4,45 bilhões de dólares em lobby com políticos dos EUA – quase o dobro do valor do segundo mais gastador, o mercado de seguros. De acordo com a OpenSecrets, a indústria tem mais de 1.450 lobistas trabalhando para ela, dentre os quais 66% são ex-funcionários do governo. E esta é apenas a face mais publicamente conhecida, oficialmente declarada, da influência política da indústria farmacêutica – ela apenas arranha a superfície de um mundo de doações políticas, cargos de diretoria, “portas giratórias” e muito mais.

Um relatório do Corporate Europe Observatory detalha como a União Europeia se tornou um instrumento cúmplice na defesa dos direitos de propriedade farmacêutica. As dez maiores empresas farmacêuticas gastaram até 16 milhões de euros em lobby lá em 2019. No Reino Unido, surgiram histórias sobre como a indústria financia grupos de pacientes para que eles ajudem a fazer lobby por novos tratamentos medicamentosos; ou sobre como o sistema público de saúde encomenda pesquisas como estratégia de compra de um grupo de lobby financiado pela indústria.

Vale salientar que governos, como o inglês, o dos países da União Europeia e os Estados Unidos, também são grandes (os maiores) clientes farmacêuticos, que pegam bilhões de seus contribuintes para comprar os medicamentos das empresas.

Vacinas contra a covid-19: quanto as empresas irão lucrar este ano

O Corporate Watch examinou três das quatro principais vacinas que têm circulado no mundo:

BioNTech e Pfizer, AstraZeneca e Oxford University, e Moderna. Quanto dinheiro as empresas por trás delas vão ganhar? Como eles têm sido apoiados pelo setor público? E onde o dinheiro vai parar?

BioNTech / Pfizer: lucro estimado de 4 bilhões de dólares, após vendas de 15 bilhões. A Pfizer diz que já tem pedidos acumulados de 15 bilhões de dólares em vacinas, onde cada dose está precificada em 19 dólares. Segundo o Financial Times, a margem de lucro pode ficar perto de 30% neste ano. Trabalhando sem nenhum melindre para maximizar o lucro, a empresa está sendo uma negociante dura com países mais ricos e também com os mais pobres.

Moderna: lucro estimado de US $ 8 bilhões de dólares, após vendas de 18,4 bilhões. A Moderna diz que está a caminho de produzir pelo menos 700 milhões de vacinas pré-encomendadas em 2021. As injeções da Moderna são as mais caras, entre 25 e 37 dólares a dose, e a empresa diz que o custo de produção de suas vacinas será de apenas 20% do preço de venda.

Oxford / AstraZeneca: lucro desconhecido, após vendas previstas de 6,4 bilhões de dólares em 2021. Está vendendo pelo preço mais barato (por enquanto) e promete produzir a preço de custo sem obter lucro durante a pandemia. Mas o que isso realmente significa? Um contrato visto pelo Financial Times sugere que eles poderiam declarar o fim da pandemia e aumentar os preços a qualquer momento a partir de julho de 2021. E o contrato da AstraZeneca com a Universidade de Oxford permite que a empresa ganhe até 20% além do custo de fabricação das injeções. Em outro indício dos limites da promessa de vender “a preço de custo”, alguns países mais pobres, incluindo Bangladesh, África do Sul e Uganda, podem ter que pagar mais pela vacina do que a União Europeia porque têm menos poder de barganha do que os grandes, que estão pegando a primeiro parte da produção das vacinas.

Vale destacar que as vacinas estão sendo compradas por governos em todo o mundo em encomendas antecipadas por atacado. Esses números de lucro, portanto, vêm predominantemente das vendas a autoridades públicas. Como vemos abaixo, os governos também subsidiaram maciçamente o desenvolvimento das vacinas. Portanto, o setor público está pagando duas vezes: primeiro financiando a pesquisa e depois comprando os resultados a preços inflacionados.

por Leonardo Foletto para o site Corporate Watch

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