Na década de 1960, gostar ou não gostar de Dylan representava uma visão da sociedade era como afirmar um estilo de vida com uma única referência. Mas os tempos mudaram e agora foi preciso ele fazer 80 anos para nos lembrarmos de que ainda está vivo
No Brasil há muito mais pessoas nascidas depois da década de 1960, e portanto é natural que o fenômeno seja uma antiguidade histórica que já pouco lhes diz musicalmente. E, politicamente, zero.
Contudo, no seu auge, Dylan era precisamente o contrário: toda a gente tinha uma opinião sobre a sua música e aquilo que representava – o anti–establishment – era objeto de grandes discussões, tanto dentro como fora do dito establishment.
Em oposição, e a título de exemplo, David Bowie, considerado por muitos o melhor músico do século 20, chocava consensualmente, e não havia quem não percebesse as suas brincadeiras de perplexidade perante o mundo, vistas como elocubrações filosóficas e não como crises de frustração.
Dylan, com uma atitude de “estou pouco ligando que gostem de mim” e “a caretice tem os dias contados”, embrulhada num estilo displicente, cativava a juventude rebelde, ou com vontade de ser rebelde, e irritava profundamente os mais velhos.
Musicalmente, era fracote do ponto de vista técnico, com música baladeira e voz desafinada – realmente não sabia cantar. Mas o que dizia e a forma como expressava o cansaço do sistema e a esperança de que ia mudar, tornaram-no um dos grandes artistas do século. A música Like a Rolling Stone deu origem ao mais icônico grupo de rock e a uma excelente revista semanal, que durante anos ditou os pontos de vista da contra-cultura.
Tinha um culto com seguidores fiéis e milhões e milhões de fãs. Não se preocupando realmente em agradar, mudou de estilo várias vezes, esteve anos calado e reapareceu com mateiral muito discutível. Passou de folk a rock e de rock a blues e, depois de um acidente, a country. Estes gêneros, que sempre tiveram públicos diferentes, provocaram-lhe incompreensões e a decadência comercial. Teve fases realmente ásperas, como quando se converteu ao cristianismo e optou pelo gospel. Tudo isto com músicas fundamentais, inesquecíveis (tantas) e com péssimas composições, à procura de um equlíbrio novo que nunca vinha. Nos anos 1980, descobriu as suas origens judaicas. Ao virar do século, ainda fazia albuns com o que lhe apetecia e, surpreendemente, ganhou o Prêmio Nobel da Literatura em 2016. Fiel ao seu estilo, não o foi receber.
A propósito dos 80 anos, podem encontrar-se extensas opiniões sobre ele em todas as publicações interessantes, do Rolling Stone ao Guardian. Neste último jornal, até o fã incondicional Edward Docx, um dos milhares de grandes especialistas dylonianos, reconhece que o artista “teve períodos de travessia no deserto na década de 1980, fez música soporífera de boate rasca em meados de 2010 e gravou o pior álbum de Natal em 2009”, álbum esse que Docx considera “pior do que ouvir voicemails durante uma hora”.
Mas a verdade é que mesmo os que não gostavam de Dylan e mesmo os que nasceram quando já ele tinha morrido musicalmente, conhecem pelos menos dez músicas suas. A título de exemplo, porque se pode escolher entre umas 50: Like a rolling stone, A hard rain is gonna fall, Just like a woman, Mr. Tambourine Man, Blowing in the wind, Lay lady lay. Isto, além dos albuns impossíveis de ignorar numa história da música, como, Blonde on blonde, ou Highway 61 revisited.
Repito que são apenas exemplos, condicionados por um gosto pessoal: Dylan deve ser o artísta mais profílico dos Top 100 do século 20, uma época que produziu um manancial inesgotável de boa música contemporânea.
Um homem de mau humor, que não sabe cantar, mas que tem uma visão lírica da sociedade que comove, e nos transmite uma comoção irreprimível com os seus versos.
Que mais se pode dizer de um artista?
Talvez que tenha uma vida santa e a paz interior que procura, mas que se recolha no silêncio da sua grandeza…
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!