O lobby político na indústria das secas no semiárido

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Governo corre para aprovar obras na Transposição do São Francisco sem o licenciamento adequado, mas com grande publicidade. Em novo capítulo da exploração da crise hídrica, ministro Rogério Marinho beneficia seu estado e reduto político

Apesar de o Ministério de Desenvolvimento Regional – MDR ter anunciado recentemente 1,2 bilhão de reais para a realização de obras de infraestrutura no Rio Grande do Norte, estado de origem do atual ministro Rogério Marinho, “os projetos expostos com grande publicidade” não apresentam “novidades em termos de obras concretas” que solucionem os problemas perpetuados pela indústria da seca há décadas, diz João Abner Guimarães Júnior em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Ao contrário, argumenta, megaempreendimentos, como o da Transposição do Rio São Francisco, condicionam parte considerável das políticas na área do semiárido. O lobby político em torno dessas obras, assegura, “contaminou o Estado brasileiro ainda no governo Itamar Franco e vem se replicando e se fortalecendo em todos os seguintes governos federais, até o presente momento, no governo Bolsonaro, com a sua última cepa que chegou com a presença de Rogério Marinho no MDR”.

Segundo ele, “a chegada de Rogério Marinho ao MDR representou uma nova ênfase ao projeto tradicional de Transposição do Rio São Francisco, que se encontrava em fase de teste para conclusão das obras iniciadas em 2007”. Cerca de R$ 2 bilhões serão destinados a grandes obras vinculadas ao projeto de Transposição do Rio São Francisco no Rio Grande do Norte, como “a conclusão da Barragem de Oiticica, que receberá as águas da Transposição que chegarão ao Rio Grande do Norte pelo leito do rio Piranhas-Açu, e para os dispêndios das obras advindas da licitação de um novo ramal da transposição para a bacia hidrográfica do rio Apodi/RN”, informa.

A seguir, o engenheiro critica, questiona e denuncia a licitação do projeto do Ramal do Apodi, concedida no final do ano passado. “O Ramal do Apodi foi licitado sem as devidas licenças ambientais prévia e de instalação, fato esse reconhecido por despacho da Secretaria de Segurança Hídrica do MDR”, diz. Além disso, pontua, “o Licenciamento Ambiental do Projeto de Integração do Rio São Francisco – PISF, na versão atual, teve seus estudos de impactos ambientais contratados pelo governo federal em dezembro de 2013 e concluídos em 2014. Entretanto, o Relatório de Impacto Ambiental – Rima do projeto é de julho de 2004”.

A integração dos sistemas hídricos é uma alternativa para universalizar o  abastecimento de água no Nordeste. Entrevista especial com João Abner  Guimarães Júnior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU

João Abner (Foto: Blog Jair Sampaio)

João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Sobre a transposição do rio São Francisco, publicou diversos artigos, tais como “A transposição do Rio São Francisco e o Rio Grande do Norte”, “O lobby da transposição” e “O mito da transposição”.

Confira a entrevista

Como a presença de Rogério Marinho à frente do Ministério de Desenvolvimento Regional – MDR tem impactado o Rio Grande do Norte?

O norte-rio-grandense Rogério Marinho assumiu um ministério de grande visibilidade e forte vínculo com a Região Nordeste, o MDR, que juntou os ministérios da Integração e Cidades e herdou um expressivo orçamento de um pacote de obras que, apesar de restrito pela ênfase nas grandes obras, engloba as áreas estratégicas de recursos hídricos no semiárido e o saneamento e a habitação no meio urbano. Sem dúvida, esse fato trará repercussões políticas ao Rio Grande do Norte. Tanto é que Rogério, deputado federal pelo Rio Grande do Norte por dois mandatos intercalados entre 2007 e 2019, já tenta viabilizar um projeto político seu para o Senado ou para o Governo do Rio Grande do Norte.

O ministro destinou, neste mês, 1,2 bilhão de reais ao Rio Grande do Norte, seu estado, para a realização de obras de porte, como construção de adutoras, cisternas, parques eólicos. Que tipo de empreendimento ele pretende ressaltar ou colocar em curso no estado?

Matérias jornalísticas recentes denunciaram um possível fisiologismo do ministro pelo direcionamento de ações do MDR para o seu Estado, o Rio Grande do Norte, fato esse desmentido pelo ministro, mas não contestado. Na prática, Marinho lamentaria a inverdade do fato.

Que problemas o senhor evidencia nos empreendimentos previstos com a verba destinada pelo MDR ao estado?

Em geral, muitos projetos têm sido expostos com grande publicidade no Rio Grande do Norte, porém, sem grandes novidades em termos de obras concretas, excetuando-se o direcionamento de R$ 2 bilhões, a médio e longo prazo, em grandes obras vinculadas ao projeto de Transposição do Rio São Francisco no Rio Grande do Norte: para a conclusão da Barragem de Oiticica, que receberá as águas da Transposição que chegarão ao Rio Grande do Norte pelo leito do rio Piranhas-Açu, e para os dispêndios das obras advindas da licitação de um novo ramal da transposição para a bacia hidrográfica do rio Apodi/Rio Grande do Norte.

Qual é a atual situação das obras da Transposição do Rio São Francisco? O senhor disse que a primeira iniciativa do ministro à frente do MDR foi resgatar o projeto dos últimos trechos 3 e 4 do Eixo Norte da Transposição não contemplados nas obras atuais, agora denominado de Ramal do Apodi, que foi licitado apressadamente e com inúmeras irregularidades no final de 2020 com um custo próximo de R$ 2 bilhões. Pode explicar de que se trata?

A chegada de Rogério Marinho ao MDR representou uma nova ênfase ao projeto tradicional de Transposição do Rio São Francisco, que se encontrava em fase de teste para conclusão das obras iniciadas em 2007.

De forma apressada, no final de 2020, poucos meses após a ascensão do novo ministro ao cargo, o MDR licitou o projeto do Ramal do Apodi resgatando os últimos trechos (3 e 4) não executados do projeto de Transposição do Rio São Francisco da mesma forma que foi concebido ainda em 1998 no governo FHC, tendo como base hoje o atendimento de condições projetadas totalmente inexistentes – as obras licitadas foram superdimensionadas para uma vazão de 20 m³/s irreal, dado que a outorga global de água do eixo norte para a Paraíba e Rio Grande do Norte deverá pouco superar os 3,0 m³/s para serem repartidos, em tese, entre as bacias do Piranhas-Açu (PB/RN), Salgado (CE) e Apodi (RN). E aqui já se aponta uma primeira e importante irregularidade no campo da improbidade administrativa facilmente comprovada.

Como sempre, o megaprojeto de R$ 2 bilhões é vendido como a redenção econômica e social da pretensa região beneficiada, englobando parte dos estados do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Promete-se agora, como no passado, de forma enganosa, atender as populações de dezenas de municípios e propiciar o desenvolvimento de centenas de milhares de hectares nos vales úmidos e chapadas férteis dos estados do Rio Grande do Norte e Ceará, sem a comprovação das mínimas condições para se assegurar a sustentabilidade hídrica e econômica do projeto do Ramal do Apodi. Destaca-se, nesse ponto, o vício de origem do licenciamento ambiental tendencioso, que nesse caso se torna de gravidade muito maior pela inexistência de licenciamento ambiental específico exigido pela Lei para obras de ampliação do porte e da natureza das licitadas para o Ramal do Apodi.

Licitação sem licenciamento ambiental

Sendo esta, portanto, de todas as ilegalidades cometidas pelo MDR na condução do Projeto, a mais flagrante: o Ramal do Apodi foi licitado sem as devidas licenças ambientais prévia e de instalação, fato esse reconhecido por despacho da Secretaria de Segurança Hídrica do MDR em resposta ao MPF/RN com respeito a uma denúncia que fiz da irregularidade no licenciamento ambiental do citado projeto (que teve início na Notícia de Fato nº 1.28.000.001776/2020-62).

Por conta da pressa em viabilizar a licitação das obras do Ramal do Apodi, o MDR apoiou-se indevidamente no Licenciamento Ambiental do Projeto de Integração do Rio São Francisco – PISF como um todo.

O PISF, na versão atual, teve seus estudos de impactos ambientais contratados pelo Governo Federal em dezembro de 2013 e concluídos em 2014. Entretanto, o Relatório de Impacto Ambiental – Rima do projeto é de julho de 2004.

Histórico do Licenciamento Ambiental do PISF:

2005 – Obtenção da Licença Prévia – LP-200/2005;

2007 – Obtenção da Licença de Instalação – LP-438/2007;

  • 38 Planos e Programas Ambientais,

  • 62 Condicionantes.

2013 – Renovação da Licença de Instalação – LI-925/2013;

2016 – Solicitação da Licença de Operação;

  • Julho/2016 solicitação da LO conjunta,

  • Dezembro/2016 – Requerimento da Licença de operação por Eixo.

Entende-se que: a licença de operação do Eixo Norte não se aplicaria ao Ramal do Apodi devido ao fato da inexistência de obras concluídas dos Trechos 3 e 4 na época da expedição da mesma e, do mesmo modo, as licenças ambientais, prévia e de instalação, do PISF não serviriam para o licenciamento ambiental do Ramal do Apodi tendo em vista que, passados mais de seis anos sem renovação, estariam vencidos os prazos de validade das mesmas para os Trechos 3 e 4, não incluídos no conjunto de obras atuais do PISF em fase de conclusão.

O projeto Executivo do Trecho 2 do Eixo Norte do PISF que transporta as águas do reservatório de Jati/CE ao reservatório de Caiçara/PB introduziu modificações importantes ao Projeto Básico desse trecho, que produzem impactos negativos significativos nas condições operacionais do Ramal do Apodi, fato esse que não foi em nenhum momento considerado no licenciamento hídrico e ambiental original do PISF.

No Trecho 2, na parte compreendida entre o Reservatório de Atalho e o Túnel Cuncas I, onde estava previsto, no Projeto Básico, o reservatório de Logradouro e uma série de cinco aquedutos, essas estruturas foram substituídas por cinco grandes reservatórios (Porcos, Cana Brava, Cipó, Boi I e II) que deverão acumular em conjunto 229 milhões de m³, com impactos significativos na operação do sistema, requerendo um tempo de enchimento mínimo de 803 dias (2,2 anos). Isso tudo sem que se tenha conhecimento de licenciamento ambiental específico.

Na parte seguinte desse mesmo Trecho 2, compreendido entre os túneis Cuncas I e Cuncas II, onde estava previsto o Reservatório Cuncas com cerca 150 milhões de capacidade de armazenamento, consta como executado, também sem licenciamento ambiental específico, o Reservatório de Morros, com 10 milhões de m³ e tempo de enchimento de 35 dias, e o maior reservatório interno do PISF – o Reservatório de Bela Vista, com 350 milhões de capacidade de armazenamento e 1.315 dias de tempo de enchimento.

Diante do exposto, encaminhei na época oportuna ao Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte – MPF/RN parecer, e anexei provas que estão sendo periciadas, recomendando a paralisação do processo licitatório do Ramal do Apodi pelas inconsistências, insuficiência e ilegalidade do seu processo de Licenciamento Ambiental vinculado ao do PISF; por requerer estudos técnicos específicos que levem em consideração as condições operacionais atuais e efetivas do PISF com respeito ao projeto do Ramal do Apodi e contemplem a análise do conjunto de alternativas tecnológicas para viabilizar a solução ampla e definitiva do abastecimento humano na área de influência direta do Ramal do Apodi.

Quais são os indicativos de que a indústria da seca está se tornando mais intensa na região?

Antes de tudo, gostaria de reconhecer e agradecer o precioso espaço que sempre me foi concedido no IHU para desenvolver minhas teses em defesa do desenvolvimento sustentável do semiárido brasileiro na última década, com destaque para a análise do controverso projeto de Transposição do Rio São Francisco, tal como nas minhas últimas entrevistas que, além da crítica ao projeto tradicional inviável, vinha apresentando proposições para o problema do abastecimento humano prioritário na região, com destaque para o estudo de caso do Rio Grande do Norte.

A história da indústria das secas no Nordeste nas últimas décadas está intrinsecamente vinculada ao projeto de Transposição do Rio São Francisco, o seu carro-chefe que hoje condiciona grande parte das políticas na área do semiárido brasileiro, com destaque aos aspectos políticos relacionados com o lobby do megaprojeto, já denunciado por mim em 2004, que contaminou o Estado brasileiro ainda no governo Itamar Franco e vem se replicando e se fortalecendo em todos os seguintes governos federais, até o presente momento, no governo Bolsonaro, com a sua última cepa que chegou com a presença de Rogério Marinho no MDR.

Pretendeu-se, nessa oportunidade, fechar vários pontos do enredo do projeto de Transposição do Rio São Francisco, tratando da questão do projeto do Ramal do Apodi, que corresponderia à última etapa do Projeto de Transposição concebido em 1998, ainda no Governo FHC, passados mais de 20 anos de aprendizados nessa temática.

Em comum, os fatos marcantes de três norte-rio-grandenses de um estado periférico desse projeto estiveram à frente da sua condução em momentos importantes e estratégicos. Tudo começou com Aluízio Alves, no governo Itamar Franco, se consolidou com Fernando Bezerra, no Governo FHC, chegando agora com o ministro Rogério Marinho, ressuscitando o inviável projeto do Ramal do Apodi.

Entender a importância da participação de norte-rio-grandenses na condução desse projeto explica bem e fecha um dos elos que fortaleceu o lobby da indústria da construção civil de grandes obras públicas no Nordeste.

Destaca-se também a questão do Ceará, que precede tudo pelo forte vínculo histórico desse estado com a Transposição do Rio São Francisco, reconhecendo que:

a) Condições topográficas favorecem o bombeamento da água, relativamente perto – menos de 200 km do cotovelo do rio São Francisco em Cabrobó, Pernambuco, até o divisor de águas entre as bacias do rio São Francisco e do rio Jaguaribe, no Ceará – combinado com uma declividade ascendente relativamente suave de 1 m/km.

b) Também não se discute aqui o risco efetivo de escassez hídrica global para o consumo humano no Ceará, já em médio prazo; destaca-se aqui a experiência da região metropolitana de Fortaleza, que justificaria a importação de água externa ou a produção local de água potável por outros meios.

Apesar de se falar, no Ceará, desse projeto há bastante tempo, mais de cem anos, só recentemente, entretanto, se alcançaram condições políticas para executá-lo, com a transformação do mesmo num grande projeto de caráter regional envolvendo os outros estados do NE Setentrional (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte).

E foi aí que o lobby das grandes obras se instalou e consolidou a Transposição como uma das maiores infraestruturas de bombeamento do mundo voltada para atender as demandas de grandes polos de irrigação no Ceará e Rio Grande do Norte.

No próximo mês de junho, especula-se a possibilidade da realização de um evento em Natal, com a presença do presidente Bolsonaro. Qual é a finalidade do evento e que repercussões poderá ter do ponto de vista eleitoral?

Dentre outros objetivos políticos do presidente, anuncia-se que o mesmo deverá visitar obras federais em andamento no Rio Grande do Norte e formalizar a conclusão da licitação das obras do Ramal do Apodi e, possivelmente, assinar sua ordem de serviço.

Neste mês, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei – PL 3.729, de 2004, que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental. Quais as consequências da flexibilização das regras de licenciamento ambiental para os projetos de infraestrutura em curso no Rio Grande do Norte, caso o texto seja aprovado no Senado?

As mudanças propostas na legislação brasileira terão pouca relação com as demandas ambientais de cunho governamental tal qual as que estamos aqui tratando. Na realidade, a experiência aqui relatada comprova, no mínimo, as fragilidades dos órgãos de controle do Estado brasileiro no enfrentamento do rolo compressor das decisões políticas e administrativas oriundas do poder Executivo com forte apelo econômico. Isso tudo ocorre frequentemente sem que se possa justificar pela falta de legislação específica e instrumentos adequados de controle. Dessa forma, o problema, antes de se tornar legal, é principalmente institucional.

João Abner Guimarães Júnior, em entrevista a Patricia Fachin, no IHU Online

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