Semicondutores: os tambores de guerra imperialismo

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Escassez de chips transtorna a indústria mundial. EUA tentam controlar produção e bloquear acesso chinês. Movimento precisa despertar América do Sul, que não produz componentes, mesmo tendo minerais indispensáveis às novas tecnologias

A situação de desabastecimento de semicondutores é reflexo do amadurecimento de um modelo de desenvolvimento do capital que caracteriza o atual ciclo sistêmico de acumulação do capitalismo. As últimas décadas do século XX, segundo Giovanni Arrighi e Beverly Silver (2012), apresentavam sintomas de esgotamento do modelo de desenvolvimento preconizado a partir dos desdobramentos da Primeira e Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, o “keynesianismo militar global do governo norte-americano”, que estruturou o desenvolvimento do capitalismo no século XX, não representava mais alternativa de modelo compatível com os interesses de lucro do capital das altas finanças.

Neste período de transição do século XX para o século XXI coincide com o momento de busca pelo capital financeiro de novas bases materiais para reprodução da lógica de acumulação do capital. Neste contexto, o desenvolvimento da infraestrutura da Internet passa a ser identificada como um potencial elemento estruturante de um futuro modelo de reorganização da lógica de acumulação do capital. As políticas neoliberais dos governos dos Estados Unidos, desde Ronald Reagan (1981-1989) ao governo de Bill Clinton (1993-2001), tiveram, dentre outras questões, a nítida compreensão do papel que esta infraestrutura poderia desempenhar no futuro.

Em balanço realizado em 2015, em Dublin, na Irlanda, no 54º encontro da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN, em inglês), Ira Magaziner, que foi o conselheiro senior do governo de Bill Cllinton em matéria de Desenvolvimento de Políticas na Casa Branca e supervisor das políticas de comercialização da internet, sublinhou esta percepção:

[A] Internet oferecia a promessa de estimular a economia global de uma forma que nada fizera e, além disso, nós [governo Clinton] também identificamos a sequência do genoma humano e o impacto que isso poderia ter na biotecnologia e, também, nas energias renováveis, como as três grandes áreas tecnológicas. Mas a Internet nós sentíamos que estava vindo primeiro. E que se nós colocássemos em posição uma série de processos que a tornassem “amigável” com o mercado, para a Internet se desenvolver, para as pessoas investirem e um conjunto de acordos globais que a tornassem amigáveis, para a Internet decolar como meio comercial, nós sentimos que podíamos realmente ajudar a Internet a agitar a economia (destaque realizado pelo autor).

As bases de desenvolvimento, simplificadamente apresentadas, eram a internet, o genoma humano e as energias renováveis. Sem que implique um imobilismo no desenvolvimento dos outros dois setores, o desenvolvimento da “promessa de estimular a economia global” pela internet teve como síntese a constituição de uma economia política dos dados ou, como tem sido tratado pela literatura, inclusive discutido pela presidenta Dilma Vana Rousseff, formou um “capitalismo de vigilância”. Denomino de “economia política dos dados” este fenômeno porque considero que as relações sociais e econômicas que definem a dinâmica de extração, processamento e análise de dados passam a estruturar parte das relações de um setor de produção, distribuição e circulação de bens e serviços no capitalismo. Da transformação dos dados em recurso que se origina, nos espaços do mercado, a terminologia de “mega dados” ou “big data” que consiste, basicamente, nos nomes dados pelo capital ao material que Karl Marx entendeu como “substância social”.

Ao longo das primeiras duas décadas do século XXI, esta economia política dos dados – cuja vanguarda é representada pelas empresas provedoras de serviços de aplicações na internet como a Google, Facebook, dentre outras – se formou e amadureceu. O desabastecimento de semicondutores reflete este amadurecimento. Não tanto pelo desabastecimento em si – que é atribuído ao efeito de desaceleração da produção em razão da redução de atividades por causa da pandemia – mas pela relevância estratégica que o abastecimento destes componentes assumem na configuração de poder nas relações internacionais. Afinal, toda a infraestrutura da internet, bem como os serviços baseados nesta infraestrutura, é constituída por todo tipo de dispositivo eletrônico que é formado por estes semicondutores, mas este componente abrange muito mais que serviços e bens baseados na internet.

No dia 11 de fevereiro de 2021, a Associação da Indústria de Semicondutores (AIS), nos Estados Unidos, enviou uma carta à Presidência dos Estados Unidos defendendo a relevância do setor para a “estratégia de recuperação econômica e de infraestrutura” (economic recovery and infrastructure strategy). Além de indicar o conjunto de setores da economia estadunidense que é dependente do fornecimento de semicondutores – como, por exemplo, “transporte mais inteligente e seguro, maior acesso de banda larga, energia limpa e grade de energia mais eficiente, ao mesmo tempo em que proporciona empregos de alta remuneração para americanos e fortalecendo a nossa avançada base de manufatura”, bem como “ajudou os pesquisadores no desenvolvimento de vacinas que salvam vidas e ajudou os americanos a trabalhar e aprender remotamente” – a carta denunciou a queda, do setor estadunidense, na participação da produção mundial – “nossa participação na produção global de semicondutores tem decaído constantemente de 37% em 1990 para 12% hoje”. O reflexo deste cenário – a relevância dos semicondutores para o conjunto das atividades econômicas e redução relativa da autonomia produtiva do país – a AIS sinaliza que a “nossa liderança tecnologia está em risco na corrida pela predominância na tecnologia do futuro”.

No dia 25 de fevereiro, o The Register noticiou que o governo estadunidense emitiu uma ordem-executiva, orientando a realização de um estudo, dentro do prazo de 100 dias, para acessar a informação sobre o estado da cadeia de abastecimento do país no que diz respeito ao fornecimento de componentes estratégicos. Dentre os componentes estratégicos estão os semicondutores e – em consonância com as demais “grandes áreas de tecnologia” comentada por Ira Magaziner – os insumos para produção de ingredientes farmacêuticos – a biotecnologia – e o abastecimento de metais de terra-rara e baterias de alta capacidade – a área de energia renováveis.

A orientação política estadunidense sobre as cadeias de produção e abastecimento destes componentes – semicondutores, baterias de alta capacidade e ingredientes farmacêuticos – se insere numa estratégia mais ampla de disputa pela liderança tecnológica. Na mesma ordem-executiva, o gabinete de Joe Biden declarou: “a recente escassez de semicondutores automotivos forçou a desaceleração nas fábricas de automóveis, destacando como a escassez pode prejudicar os trabalhadores”. Apesar da ênfase no setor automotivo, os setores apontados como estratégicos e dependentes destes componentes são a base da indústria de defesa; a base da saúde pública e indústria biológica; a base da indústria da tecnologia de informação e comunicação; a base da indústria do setor de energia; a indústria de transporte; e cadeias de abastecimento para a produção de alimentos e a agricultura. Ademais, no Guia Interino da Estratégia de Segurança Nacional, publicado em março, os Estados Unidos sinalizaram que, em matéria de segurança nacional – que consiste, no caso estadunidense, em planejar e executar ações ofensivas – faz parte da sua estratégia a cooperação com “democracias de mesma orientação para desenvolver e defender cadeias de abastecimento críticas e infraestrutura tecnológica”.

Estes comunicados e redirecionamento da estratégia internacional dos Estados Unidos precisa ser observada com muita atenção, por qualquer projeto que vise um Brasil e uma América do Sul integrada e soberana. A região sul-americana possui, por exemplo, reservas de matérias-primas imprescindíveis para a produção destes componentes, especificamente as baterias de lítio. A Bolívia, por exemplo, possui a maior reserva mundial de lítio, cerca de 28% das reservas mundiais; os Estados Unidos possuem a segunda maior reserva, cerca de 21% do total; o Chile, a terceira maior reserva, com 18% das reservas mundiais; e, por fim, a Argentina, sem posição definida, com 5,6%. Os jornais estadunidenses já relatam uma “corrida” sobre o acesso às salinas e minas de lítio de empresas estadunidenses nos Estados Unidos e com projetos de internacionalização.

Neste contexto que a declaração, na sua conta no Twitter, do bilionário, Elon Musk, se constitui uma representação de um “imperialismo sincero”. Segundo noticiou o Brasil de Fato, a Tesla, empresa do bilionário, estaria prospectando a construção de uma fábrica de carros elétricos no Brasil – além das montadoras que ainda permanecem no país – dentre outros motivos pelo potencial acesso às fontes de lítio. No Twitter, Elon Musk criticou a proposta de pacote de estímulo econômico da plataforma política do então candidato à presidência Bernie Sanders: “Outro pacote de estímulo governamental não é do melhor interesse das pessoas”. Em resposta, um usuário do Twitter comentou: “Você sabe o que não interessa às pessoas? O governo dos EUA organizando um golpe contra Evo Morales na Bolívia para que você possa obter lítio lá”. Em aparente plena franqueza, Musk fez a tréplica, “vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”.

O imperialismo estadunidense já está tocando os tambores de guerra. Reitero que qualquer projeto que vise uma América do Sul soberana, organizada a partir da integração dos seus povos, não pode abrir mão de constituir mecanismos de defesa regional. Esta defesa regional, por sua vez, não pode, evidentemente, estar amparada sobre as atuais estruturas de máquinas genocidas que são, por exemplo, as forças de segurança do Brasil. Igualmente central, a soberania da América do Sul não é viável se ela for buscada sob as bases de um modelo exploração predatória das riquezas da terra, violentando os povos que ocupam esta terra e a terra em si. (Outras Palavras)

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais