De onde vem a autoimagem europeia dos argentinos

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Fala do presidente Alberto Fernández de que argentinos chegaram em barcos da Europa mostra força de mito racial criado no século 19. Estratégia incluiu apagar afrodescendentes e povos originários de registros.

A declaração do presidente da Argentina, Alberto Fernández, de que “os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, chegamos em barcos (…) que vinham da Europa” expôs resiliência de um mito sobre a formação do povo argentino que remonta ao século 19, e foi condenada por setores da sociedade empenhados em reconhecer as suas raízes indígenas e africanas.

Fernández fez o raciocínio na quarta-feira (09/06), durante um encontro com o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, em Buenos Aires. A fala imediatamente provocou reação dentro e fora da Argentina. Mais tarde, ele escreveu no Twitter que se orgulhava da “diversidade” do país, que não quis ofender ninguém e pediu desculpas “a quem tenha se sentido ofendido ou invisibilizado”.

Composição étnica da Argentina

Assim como em outros países latino-americanos, a população da Argentina tem três raízes fundamentais: os povos originários que já ocupavam o território há milhares de anos, os europeus que invadiram o continente e os escravos africanos levados para lá à força.

Nos séculos 16 a 19, estimativas apontam que mais de 200 mil escravos africanos chegaram a Buenos Aires e a Montevidéu, capital do Uruguai. Para efeito de comparação, nesse mesmo período 388 mil escravos africanos foram levados aos Estados Unidos. Um censo realizado em 1778 apontou que cerca de um terço da população da Argentina era formado for afrodescendentes e africanos.

O maior fluxo migratório para o país ocorreu entre 1850 e 1950, quando cerca de 7 milhões de europeus, principalmente da Espanha e da Itália, mudaram-se para a Argentina. Junto a isso, iniciou-se um esforço deliberado do Estado para reduzir a presença dos negros e povos originários nos registros oficiais.

Em 2010, pela primeira vez desde o final do século 19, o censo da Argentina perguntou se as pessoas eram afrodescendentes, mas muitos ativistas consideram que faltou o governo promover, antes, um processo de sensibilização para que essa parcela da população se reconhecesse como tal.

Naquele ano, apenas 0,4% da população local se declarou afrodescendente. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em 2008 a partir da coleta de material genético, no entanto, estimou que 9% dos argentinos têm origem africana, e que 31% descendem dos povos originários.

Origens da autoimagem europeia

Gisele Kleidermacher, professora da Universidade de Buenos Aires e especialista em sociologia das migrações, afirma à DW Brasil que a declaração de Fernández causou espanto por ele ser o presidente do país, mas coincide com o que pensam muitos argentinos.

Esse imaginário começou a ser construído por um grupo de políticos e intelectuais no século 19, que assumiram a condução do país após a independência da Espanha e se dedicaram à construção da nação argentina. Faziam parte desse grupo o escritor e ativista Esteban Echeverría (1805-1851) e o intelectual e sétimo presidente da Argentina Domingo Sarmiento (1811-1888).

“Eles começaram com a ideia de povoar o país com pessoas que viessem da Europa, e não da Espanha e da Itália, mas principalmente da Inglaterra, da Alemanha, da França, porque consideravam que esses países estavam mais desenvolvidos, e que isso não tinha a ver apenas com sua economia, mas também com seu perfil populacional”, afirma Kleidermacher.

Nessa época, estavam em voga conceitos do racismo científico, segundo o qual haveria raças superiores e inferiores entre os homens – tese hoje rechaçada pela ciência.

“Eles consideravam que as populações presentes na América Latina e na Argentina, majoritariamente de povos originários e afrodescendentes trazidos ao país pela escravidão, não teriam um perfil populacional que servisse para criar uma nação desenvolvida”, diz a professora da Universidade de Buenos Aires.

Processo intencional de invisibilização

A partir dessa concepção, houve um esforço do Estado para esconder as raízes ligadas aos povos originários e aos escravos, caminho diverso do adotado por outros países latino-americanos, como o Brasil, onde tentou-se construir uma ideia positiva sobre a diversidade de seu povo, com o uso de mitos como o da suposta convivência harmônica entre diferentes etnias.

“No nosso país [Argentina], tratou-se de apagar esses componentes por meio de diversos mecanismos. Em alguns casos, com um genocídio direto no qual tentou-se exterminar parte da população originária [como na Campanha do Deserto]. Em outros casos, com a segregação residencial, os separando em áreas desfavorecidas e menos visíveis, ou com uma invisibilização censitária”, diz Kleidermacher.

Essa estratégia se somava à narrativa de que a Argentina “descendia dos barcos” que chegaram da Europa. Navios esses que aportaram principalmente em Buenos Aires, que não é representativa do perfil populacional das outras áreas do país.

O antropólogo Norberto Pablo Cirio, diretor da Cátedra Livre de Estudos Afro-argentinos e Afro-americanos da Universidade Nacional de La Plata, afirma que quatro instituições foram essenciais para implementar essa estratégia: o censo, os museus, o mapa e a escola.

“Desde a segunda metade do século 19, o Estado prega uma memória exclusiva, de matriz europeia, uma história parcial do surgimento da Argentina que nega que sua riqueza material e cultural se deve a genocídios contra os povos originários, à apropriação de suas terras e ao benefício de 350 anos do comércio de escravos”, diz.

Ele menciona que a população afrodescendente deixou de ser mencionada em textos de história e exposições em museus, de ser considerada nos censos e de ser indicada no mapa do país. “A escola foi, e é, parte vital na reprodução geracional dessa memória branca”, afirma. “Diferentemente do resto da América Latina, este país tem sérios problemas mentais para se assumir americano, isso é, mestiço.”

Mudanças à vista?

A forte reação da mídia argentina e de outros países à fala de Fernández é um sinal de mudanças em setores da sociedade que buscam reconhecer a diversidade étnica do país e reagir a tentativas de esconder os segmentos de origem não europeia, diz Kleidermacher.

Isso está relacionado a uma narrativa mundial “multiculturalista”, mas também a movimentos locais na Argentina, como os indígenas que se identificam como “marrones”, apontam as fontes de sua discriminação e reivindicam a sua história. “Mas são processos lentos. A narrativa sobre a nação argentina branca e europeia tem dois séculos, e os processos para romper com isso também são lentos”, afirma.

Cirio, que estuda a cultura afro-argentina há 30 anos, diz que há muitos coletivos de afrodescendentes e povos originários trabalhando “com muito esforço e poucos recursos” por sua visibilização e respeito social. A declaração do presidente argentino, porém, evoca nele a imagem de semear trigo no mar: “Nada muda. Essa ideologia europeísta é tão forte que, no momento atual da realpolitik, o não branco é irrelevante.”

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais