Criada na ditadura militar, a corporação tornou-se um “cantinho” do estado de exceção e, hoje, é responsável por 13,3% das mortes violentas no país. Reforma policial é urgente para combater o apartheid nas periferias e a erosão da democracia
Quando um assassinato pelas mãos da PM comove os jornais, a gente que não vive na periferia fica com aquela impressão de que, em poucos dias, outra morte como essas vai acontecer. Essa impressão não podia estar mais errada. Passada quase uma semana do brutal assassinato de Kathleen Romeu, o mais provável é que a polícia brasileira já tenha feito pelo menos mais uma centena de vítimas. 122, para ser mais exato, se tomarmos a média de 2019 como padrão. Por isso, o título deste artigo não é uma calúnia, não é uma difamação, nem sequer é uma denúncia. É apenas a constatação da mais bruta realidade brasileira. Não tenha dúvidas de que, hoje, a PM vai matar.
Essa estrutura de morte foi muito bem bolada, e nem falo aqui do nascimento das Polícias Militares, lá na época da escravidão, quando estas eram acionadas para destruir quilombos e agir como capitães-do-mato estatais. Também não falo do comecinho da República, quando elas só saiam dos quartéis para acabar com as greves do nascente movimento operário brasileiro. O plano mortal foi mesmo posto em prática pelo Exército, já na época da ditadura civil-militar.
Foi o Exército quem teve a brilhante ideia de transformar as PMs nas únicas polícias ostensivas do país, colocando um fim nas antigas Guardas Civis. No desejo de controlar a tudo e a todos, nada melhor do que garantir que a função de policiamento diário das ruas, justamente aquele que é feito de forma mais próxima (e mais vigilante) da população, fosse dada nas mãos dos pequenos exércitos estaduais das Polícias Militares, subordinados ao comando central do próprio Exército Nacional. Era o Brasil enfim ocupado militarmente em seu cotidiano. E assim ficou sendo até hoje.
Foi a partir daí que a morte violenta se tornou uma tragédia cada vez mais rotineira no Brasil. Pra se ter uma ideia, entre 1920 e 1960, a cidade de São Paulo até apresentava um índice de homicídios relativamente baixo, de 5 a cada 100 mil habitantes por ano. Na década de 60, com o início da ditadura, este número dobraria e, após a medida, em 1969, de colocar a PM diariamente nas ruas, dando em suas mãos a exclusividade do policiamento ostensivo, a coisa pioraria de vez. Criada em 1970 para proteger os bancos paulistas de assaltos de guerrilheiros, a ROTA também seria colocada para fazer o policiamento comum ostensivo das cidades, naquilo que muitos consideram a “institucionalização do Esquadrão da Morte”. Em 1980, a taxa de homicídios já seria de 20,3 a cada 100 mil habitantes paulistanos.
As mortes não só aumentavam, como também mudavam de figura. Até o início da década de 1960, muitos homicídios tinham características familiares ou passionais. Ainda em 1965, a maior parte deles (65%) ocorria dentro das residências. Em 1975, este número caiu para 45%. A maioria das mortes violentas passou a ser representada pelos corpos que amanheciam já sem vida nas ruas das periferias, largados durante madrugada. Os homicídios, que eram apenas a quarta maior causa de morte em São Paulo em 1960, já ocupavam a primeira posição deste pódio ingrato no último ano do regime militar em 19851.
A ditadura passou, mas a estrutura policial militarizada, ostensiva e subordinada ao Exército ficou. O “modus operandi” também, assim como a escalada de violência brasileira. Em São Paulo, o índice de homicídios atingiu seu pico em 1999, com 64,3 casos a cada 100 mil habitantes, e só depois conseguiria, enfim, iniciar um movimento de redução. No total do país, ainda hoje, o índice de mortes violentas intencionais se mantém no alto nível de 20,7 por cada 100 mil habitantes, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ao menos 13,3% destas mortes foram causadas pelas próprias polícias, mas o número pode ser ainda maior se considerarmos que boa parte dos assassinatos do país não são solucionados.
Isso significa dizer que nossa sociedade, teoricamente redemocratizada, herdou um entulho autoritário que, por um lado, não consegue evitar as mortes violentas cometidas pela criminalidade comum e, por outro, segue fazendo suas próprias vítimas através da violência de Estado. A esmagadora maioria destas últimas, aliás, pelas mãos das Polícias Militares.
É difícil falar em defender o Estado Democrático de Direito quando este sempre reservou, para a nossa população negra, pobre e periférica, um “cantinho” de Estado de Exceção permanente. Fenômeno que, aliás, é mundial. Do apartheid imposto aos palestinos por Israel à “guerra ao terror” liderada pelos EUA, proliferam “guetos de exceção” encantinhados dentro de supostos Estados Democráticos de Direito mundo afora. A violência e a morte se tornaram parte integrante, e às vezes até necessária, ao próprio Poder “Democrático”.
No Brasil, nada simboliza melhor este fenômeno do que a atuação diária das polícias nas periferias de grandes cidades do país, principalmente através das Polícias Militares. Nosso modelo de Estado se alimenta desta guerra permanente e se sustenta neste terror diário. É urgente repensar a estrutura das polícias. Mais, é preciso repensar o Estado ou, mesmo além, a nossa própria autoconstrução como sociedade. Enquanto isso não acontece, podemos acordar todos os dias com esta certeza: hoje, a PM vai matar.