‘O auto da Compadecida’: uma teologia do pós morte?

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
A misericórdia determina o desfecho da pessoa no pós-morte

O filme O auto da Compadecida, da obra homônima de Ariano Suassuna, é um filme brasileiro do ano dois mil, campeão de bilheteria daquele ano. Produzido por Guel Arraes, o filme foi filmado no cenário paraibano da interiorana cidade de Cabaceiras. O enredo remonta aos anos trinta e conta sobre o cotidiano de João Grilo e Chicó, dois homens pobres que são contratados para trabalhar na padaria do casal Eurico e Dora, sob condições degradantes de trabalho se comparadas às condições de tratamento que a patroa dedicava à sua cadela de estimação.

Conforme supracitado, o filme é baseado na obra homônima de Ariano Suassuna, autor paraibano falecido em Recife, em julho de 2014. O autor, formado em direito, estreou sua produção literária com publicações de poemas num jornal local. Sua vasta produção compreende romances, poesias, ensaios e dramas. O auto da Compadecida, como o próprio nome já diz, indica um estilo literário que remonta à Idade Média. O representante mais conhecido desse estilo é o português Gil Vicente, cuja obra é situada entre os séculos 15 e 16.

O auto, do latim, diz respeito à ação, ao ato. Nesse aspecto, uma tentativa de sistematização indica que esse ocorre de forma breve, mas essa característica não recebe o consenso da crítica literária. O cenário é bastante simples, assim como a história que foge às complexidades. Do ponto de vista da temática, os autos desenvolvem geralmente assuntos religiosos e ou profanos com uma intenção moralizante. Desse modo, as personagens normalmente são planas, isso significa que não se desenvolvem psicologicamente na trama, são estáticas e previsíveis porque estão predispostas a repetir padrões em situações cotidianas. Personagens planas tendem a condensar os estilos e ideias de coletivos, funcionando como uma espécie de tipo de pessoas, comunidades ou grupos.

Os espectadores do filme, a partir dessas considerações, já poderão perceber como essas características são pontualmente marcadas em O auto da Compadecida. Todas as personagens aparecem como tipos de personalidades e de comportamentos de pessoas de ética e moral questionáveis. Nessa perspectiva, ressaltam-se posturas luxuriosas, avarentas, violentas, soberbas, gulosas, mentirosas, preguiçosas. Como se pode ver, trata-se de posturas relacionadas aos convencionados pecados capitais.

Nesse aspecto, justifica-se o título da obra. O auto da Compadecida culmina no julgamento instaurado depois do assassinato da maioria das personagens do drama, após Severino, um cangaceiro, invadir a pequena cidade e mandar matar o padeiro e sua mulher, o padre e o bispo e João Grilo, espertalhão que também articula a morte do próprio Severino durante a chacina. Chegados na outra vida, as personagens se encontram entre si e são recepcionadas pelo demônio que os quer enviar para os quintos do inferno. Por medo de irem para o pior lugar possível, João Grilo apela para Nosso Senhor (Jesus Cristo), assim invocado, personagem que atua como juiz nesse pós-morte. O tribunal é instaurado. O demônio apresenta suas queixas, Emanuel, Nosso Senhor, o juiz, considera o apresentado, e João Grilo recorre à Nossa Senhora, que atua como advogada de defesa dos réus.

Nessa cena, os telespectadores sentem-se na plateia de um grande teatro acompanhando todos os desdobramentos da ação. Podemos ressaltar que tudo ocorre em sintonia com o imaginário teo-religioso da nossa gente, formado a partir das matrizes catequéticas da colonização cristã-católica europeia. O demônio acusa, Nossa Senhora defende, Jesus, Nosso Senhor, encarrega-se da sentença final. Além disso, conforme apontado, nenhuma personagem está isenta de uma vida de moral questionável. Todas são transparentes quanto aos pontos que deveriam ter desenvolvidos para terem passado pela vida como pessoas melhores, mais honestas e justas nas relações que mantiveram com outras pessoas. Até aqui, o auto cumpre a sua tarefa, engajar o leitor, neste caso, o espectador na questão que tramita como pano de fundo e que é explicitada nessa cena: “Cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”.

Ninguém escapa da morte. Todas as pessoas carregam pecados comuns e serão julgadas exemplarmente pelo que fizeram de suas vidas. Compreende-se que a morte é o instante definitivo no qual ter-se-á uma consciência mais abrangente do que se fez em vida. Até aqui, tudo segue na perspectiva que se espera a partir do imaginário teo-religioso da nossa gente. Mas a perspectiva literária desenvolvida até aqui é suficiente para afirmar que a obra pode ser lida numa perspectiva teo-literária apenas por fazer jus ao seu estilo base em desenvolver a temática religiosa? Essa é uma questão a ser conversada.

A nós, o autor parece arriscar uma teo-logia apenas no desfecho do julgamento. Após as considerações misericordiosas de Nossa Senhora sobre o passado e o futuro dos réus, Emanuel libera todos os destinos do inferno. Após todos se retirarem de cena, apenas Nosso Senhor e Nossa Senhora travam um breve diálogo pelo olhar, pelo toque e pela consideração vinda de Emanuel: “Mãe, se você continua intercedendo desse jeito por todos, o inferno vai terminar virando uma repartição pública: existe, mas não funciona”. O discurso teo-lógico parece situar-se na esteira de um fato do cotidiano criticado por muitos: o péssimo funcionamento das repartições públicas. O inferno estaria condenado à mesma sorte, porque a misericórdia ?” na figura de Nossa Senhora ?” determina o desfecho da pessoa no pós-morte, não sem o reconhecimento dos limites e das fraquezas, mas os considerando como parte fundamental da experiência de vida. Além disso, o coração de Nosso Senhor, destacado no figurino, não parece ser tão duro e insensível como ensinado tradicionalmente, ele também é compadecido das dores dos homens, porque experimentou a negação e a maldade que condiciona a todos ao nascer.

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