Garimpando com o cocar alheio

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Ao discursar em inauguração de obra no AM, Bolsonaro veste adorno originário e defende a mineração como “demanda dos índios”. Cínico, atua como porta-voz da legalização do garimpo em Terras Indígenas, que bateu recorde em 2021

Ao inaugurar a reforma de uma ponte próxima à Terra Indígena Balaio e à maior jazida de nióbio do mundo, nos últimos dias de maio, o presidente Jair Bolsonaro vestiu um cocar pela segunda vez em seu mandato. “Não é fácil você mudar: décadas de trabalho contra vocês, de emaranhado de leis que não permitem que vocês possam progredir”, discursou no Amazonas. Fazia quase um ano e quatro meses que Bolsonaro havia enviado ao Congresso projeto de lei que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas, uma exigência da Constituição para liberar a atividade, considerada ilegal. Desde então, vêm batendo recordes os pedidos de pesquisa e de permissão de lavra garimpeira que chegam à Agência Nacional de Mineração. Àquela altura, pedidos apresentados desde a posse de Bolsonaro se estendiam sobre 13,3 mil km2 de terras indígenas e seus entornos, área equivalente a quase nove vezes a cidade de São Paulo.

Apenas nos primeiros quatro meses de 2021, os processos minerários registrados na ANM que solicitam permissão para garimpo ou pesquisa em áreas indígenas somam 4,3 mil km2, mais do que o primeiro ano inteiro de mandato de Bolsonaro – eleito prometendo “nem um centímetro a mais para as terras indígenas”. Na escala seguinte da mesma viagem ao Amazonas em que vestiu o cocar, Bolsonaro voltou a defender que a mineração nessas áreas era uma “demanda dos índios”, embora não haja sinal de nenhuma cooperativa indígena nos registros da agência reguladora.

 A suposição de que os índios são os maiores interessados na mineração em seus territórios une mineradoras e cooperativas que entraram com pedidos na ANM, na expectativa de regulamentação da atividade. O maior argumento é que, para combater a mineração ilegal, o caminho é legalizar a extração de minérios em terras indígenas. A Associação Nacional do Ouro (Anoro), que reúne garimpeiros e as entidades financeiras que comercializam o mais procurado dos minérios nas terras indígenas, reconhece que o interesse é mais amplo: “Quando comparamos as demarcações de terras indígenas na Amazônia Legal com os mapas geológicos da CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), identificamos que as reservas indígenas estão sobre os maiores potenciais minerais do Brasil. Por isso, o desenvolvimento equilibrado do setor mineral das terras indígenas interessa a todo o país.”

A regulamentação da mineração em terra indígena foi proposta ao Congresso por Bolsonaro no projeto de lei 191, com tramitação parada na Câmara dos Deputados desde fevereiro de 2020, apesar do pedido de urgência do presidente. Caso seja aprovado da forma como foi proposto por Bolsonaro, permitirá a exploração de minérios e de recursos hídricos para geração de energia em terras indígenas mesmo sem aval das comunidades. O artigo 14 do projeto diz que compete ao presidente da República encaminhar ao Congresso Nacional pedido de autorização para as atividades mesmo com manifestação contrária dos indígenas.

A novata Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé, em Mato Grosso, lidera o ranking em área de exploração de lavra garimpeira pleiteada ao órgão regulador durante o governo Bolsonaro: quase 352 mil hectares (3,5 mil km2) para explorar ouro sobretudo na Terra Indígena Aripuanã e seu entorno, além de um pedido de garimpo de diamante na TI Zoró, também em Mato Grosso. Aberta em março de 2020 por dois ex-funcionários da prefeitura de Conquista D’Oeste (MT), a cooperativa registrou na Receita Federal um endereço inexistente e ainda não conta com nenhuma lavra ativa fora de terras indígenas.

O diretor da Guaporé Mineração, nome de fantasia da cooperativa, Ezequiel Alves, diz tratar-se de um projeto ambicioso. “Hoje somos a maior cooperativa em requerimentos de lavra garimpeira, são 360 requerimentos, que somam 2 milhões de hectares, é um investimento que dará retorno”, disse à piauí. “Defendo com unhas e dentes o PL 191 desde que não seja para as mineradoras multinacionais explorarem as terras indígenas”, completou.

A Patium Beneficiamento de Minérios aparece em segundo lugar nesse ranking. A empresa foi vendida em março de 2021 pelo Grupo Recursos Minerais do Brasil à Serra Morena Mineração. “Ressaltamos que antes de solicitar esses referidos requerimentos, a empresa manteve contato com lideranças indígenas que, na ocasião, manifestaram interesse em receber um empreendimento de mineração em seus territórios. Esse foi um dos fatores considerados para que, à época, a empresa fizesse os referidos requerimentos de pesquisa”, informou em nota o grupo RMB. Os requerimentos somam quase 136 mil hectares (1.360 km2) para a exploração de minério de manganês nas terras indígenas Kayapó, Las Casas e Badjonkore, no Pará.

A 3Maria Mineração aparece na sequência no ranking por extensão de área requerida à Agência Nacional de Mineração. A mineradora fez requerimentos de pesquisa para a exploração de manganês e estanho em terras indígenas em Mato Grosso e em Rondônia. O dono da empresa, Rodrigo Galvão Diniz, está otimista com a perspectiva de aprovação do projeto de lei 191 no Congresso, embora o presidente da Câmara, Arthur Lira, não faça previsão de data para a votação.

“Os indígenas Cinta Larga vêm procurar a gente para tirar o minério, eles querem renda”, sustenta, repetindo o argumento frequente dos lobistas da mineração em terras indígenas. Diniz insiste também em outro argumento comum aos lobistas da mineração, segundo o qual o dano ambiental da mineração não seria tão grande se a atividade vier a ser regulamentada. “Os mineradores são os que degradam menos a área que exploram, só naquele lugarzinho ali, quem acaba com a floresta são os fazendeiros e o agronegócio.”

Não é desprezível o estrago da mineração na floresta, no entanto. O sistema de alertas de desmatamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais atribui à mineração o desmatamento de 277 km2 na Amazônia Legal desde 2019. O ritmo registrado nesses 29 meses e meio é 37% maior do que o desmatamento atribuído à mineração nos quatro anos anteriores, desde 2015. Grande parte do desmatamento registrado pelo Inpe decorre do garimpo ilegal em áreas protegidas, como as terras indígenas, sem licença ambiental nem autorização da ANM. Nas terras indígenas da Amazônia, o desmatamento superou 925 km2 em 2019 e 2020, também segundo dados do Inpe, num ritmo jamais visto desde 2008, quando o instituto passou a medir a perda de floresta nessas áreas.

Qualquer pessoa física ou empresa pode requerer pesquisa mineral ou lavra garimpeira no Brasil. Para os requerimentos de pesquisa, a ANM cobra taxa anual de 1.012 reais. Os requerimentos de lavra garimpeira custam 204,13 reais. Esse é o valor que desembolsaram os pretendentes a minerar terras indígenas, mesmo sem saber se o Congresso Nacional vai autorizar a exploração de minérios nesses territórios ou mesmo se os atuais requerentes terão alguma vantagem sobre as áreas que pleiteiam. “A Constituição Federal estabelece que o Congresso Nacional tem de autorizar por meio de uma nova legislação a mineração em terras indígenas, e ninguém sabe o que vai sair do Congresso, se os atuais requerentes terão ou não direito sobre esses processos. É impossível saber o que a nova legislação vai estabelecer”, explicou a agência reguladora também com base na Lei de Acesso à Informação.

Ainda de acordo com a ANM, encontram-se “sobrestados” todos os processos minerários em terras indígenas desde 1988, data em que a Constituição passou a exigir uma lei para regulamentar a mineração nesses territórios. A agência registra cerca de 3.700 processos nessas condições, registrados desde 1941; parte deles, anterior à Constituição, foi suspensa pela homologação das terras indígenas a que os processos se sobrepunham. Nos 80 anos de registros da ANM, só outros sete anos registraram volume maior de área requerida que os anos de governo Bolsonaro.

A Terra Indígena Yanomami, localizada nos estados de Roraima e Amazonas, na fronteira com a Venezuela, tem o maior número de pedidos de mineração, de quarenta minérios diferentes. Estima-se a presença de 21 mil garimpeiros no território, atuando ilegalmente. A Mineração Silvana Indústria e Comércio Ltda. lidera o ranking da ANM entre todos os processos minerários registrados em terra indígena e não respondeu aos pedidos de entrevista. A novata Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé já aparece em sexto lugar nesse ranking, atrás da Vale S.A., que aparece em quarto lugar.

No governo Bolsonaro, as terras indígenas Parque do Aripuanã, em Mato Grosso e Rondônia, Kayapó, no Pará, e Aripuanã, em Mato Grosso, registram as maiores áreas requeridas por garimpeiros e mineradores, consideradas também as margens de 10 km nos arredores desses territórios. O ouro é o minério mais procurado, de acordo com os registros da agência, bem mais do que manganês, diamante, cobre, estanho e cassiterita, por exemplo.

Representante das mineradoras, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) avalia que ainda não é possível especular sobre o potencial de mineração em terras indígenas. “Um ponto importante é que, sem a regulamentação, não se pode estabelecer o necessário e estratégico conhecimento geológico do que há no subsolo de cerca de 13% do território nacional, que se encontra demarcado. O IBRAM defende que a mineração industrial pode e deve ser viabilizada em qualquer parte do território brasileiro”, afirmou a entidade em nota.

Pouco mais de dois meses antes de ir ao Amazonas e vestir um cocar, Jair Bolsonaro recebeu em audiência no Palácio do Planalto caciques de três aldeias Kayapó (Gorotire, Moidjam e Kikretum), o presidente da Associação Cacique Coronel Tuto Pombo, Niti Kayapó, o presidente da Câmara Comércio Brasil-Índia, Roberto Paranhos do Rio Branco, e o empresário João Sidnei Gessi, além dos generais palacianos Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno e o presidente da Funai, Marcelo Xavier.

Ao final do encontro, Bolsonaro gravou um vídeo destinado ao amigo, ex-deputado e cantor Sérgio Reis, que integraria o grupo favorável ao garimpo na terra indígena Kayapó. O grupo recebido pelo presidente havia participado da criação de uma cooperativa Kayapó em 2018, segundo Reis “para desmascarar as ONGs”. “Nossos irmãos indígenas querem e têm o direito de serem tratados como nós e mais ainda, que suas terras sejam usadas para o bem deles e do Brasil, por exemplo para a agricultura, pecuária, exploração mineral, recursos hídricos”, disse o presidente, no vídeo, a Reis. Em programa de televisão, pouco antes de Bolsonaro enviar o projeto ao Congresso, o cantor mencionou a criação da cooperativa: “Estamos fazendo com que o índio brasileiro tenha a vida que ele merece. Estão sentados em cima de uma fortuna que todo mundo quer. O Bolsonaro falou que o índio tem de viver como o índio americano. É um índio que quer vencer.”

O ex-madeireiro e empresário João Gessi também gravou um vídeo após a reunião no Planalto, em que estimula indígenas a pressionarem o Congresso a votar o projeto de lei 191. À piauí, ele afirmou: “Estamos numa guerra, e pode ter certeza de que vamos ganhar.” No final de abril, foi criada pelo mesmo grupo a Cooperativa Indígena Agroindustrial e Florestal Totoi Kayapó, a COOPTOTOI, cujo estatuto não menciona mais, como na primeira cooperativa criada, a exploração de minérios. O objetivo, porém, não foi abandonado. O próprio Gessi explica o porquê: “Os kayapós têm 12,6 milhões de hectares da maior província mineral do planeta, uma Bélgica e uma Holanda juntas.”

Enquanto os pedidos de pesquisa e lavra em terras indígenas avançavam para um novo recorde em 2021, ao se aproximar em quatro meses de toda a área reivindicada em 2020, Brasília acolheu duas manifestações de indígenas. Em 20 de abril, cerca de cinquenta indígenas mundurukus, da Associação Indígena Pusuru, do Pará, levaram à Praça dos Três Poderes faixas de apoio ao projeto que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas, contra a presença de ONGs e em apoio a Bolsonaro. A mobilização para o deslocamento dos indígenas contou com o apoio de empresários, como Roberto Katsuda, revendedor de retroescavadeiras usadas no garimpo.

Na véspera, dia do índio, cerca de 130 indígenas de seis estados, representantes de dez etnias, haviam se manifestado na Esplanada dos Ministérios, dessa vez contra o projeto de lei 191 e pela retirada de garimpeiros de seus territórios. O documento divulgado também protestava contra o projeto de lei 490, que fragiliza limites de terras indígenas ao dificultar novas demarcações e abre caminho para contatos com povos isolados. Esse projeto foi aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. (Por Marta Salomon, na Piauí)

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