Reality shows: fazemos qualquer negócio

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Aqui se vê, aqui se compra

Já lá se vão 48 anos desde que a semente foi lançada. Em janeiro de 1973 estreava o primeiro reality show, An american family, atração que durou 12 episódios levados ao ar pela PBS, a TV pública dos EUA. A ideia de observar o cotidiano real de uma típica família de Santa Barbara na Califórnia foi verdadeiro pulo do gato na história do broadcast e sua influência se mantém até hoje, com a cristalização do gênero em um dos mais longevos e populares da televisão contemporânea.

O outro grande salto (no final dos anos 90) foi seguramente a ideia de unir confinamento e competição, criando um novo formato no universo dos realities. Ao aliar a antiga matriz – que se propunha como documento jornalístico – ao game show, a mágica se fez e o Big Brother foi o fiat lux dessa nova etapa. Daí em diante, testemunhamos a transformação de programas em franquias transnacionais em que o engajamento interativo do público se tornou regra e medida, turbinados pelo advento das redes sociais.

Se alguns realities de competição ainda se preocupam em sagrar alguém campeão devido a alguma expertise (como os de culinária, canto ou moda), prescindir de talento parece ser a regra para vencer ou até mesmo apenas garantir uma vaga em tantos outros.

Entretanto, mesmo esses não conseguem escapar da lógica dos programas que apenas acompanham o cotidiano de seus protagonistas. Com prêmio ou sem prêmio, o objetivo principal de um reality é sempre o mesmo: reforçar a celebridade de seus participantes ou transformá-los em celebridades. No final, tudo vira produto já embalado para comercialização em grande escala.

Recém-saídos da fornalha de vaidades do BBB, Juliette e Gil são os mais recentes cases a comprovar a tese. O mercado se apaixonou pelos dois – que já anunciam de iogurte a cerveja e de chocolate a maquiagem. Enquanto o grande derrotado da atração virou garoto propaganda de banco, o rosto da vencedora foi colocado (à revelia da própria) até em trouxas de maconha no Rio de Janeiro.

Até que surja uma nova Juliette, a Juliette da hora seguirá firme cantando em lives alheias, por mais que desafine. Se ela mesma já se tornou riqueza natural do Brasil, os figurinos cafonas que veste tornam-se commodities instantâneas. Esgotado o estoque exibido nas vitrines digitais dos sites de e-commerce, abundam nas bancas de camelôs e shoppings populares peças alternativas inspiradas nos modelitos originais.

Podemos nem perceber, mas enquanto assistíamos ao programa ou votávamos pela saída ou permanência de um dos concorrentes, já estávamos transicionando de telespectadores para consumidores. Somos fregueses inconscientes de um balcão de loja de departamentos onde cada pessoa, prova de resistência ou jogo da discórdia só faz sentido de existir naquele contexto enquanto instância monetizável, tanto faz quem ganhe ou perca a disputa.

No território superpovoado de telas que se tornou o planeta, quanto mais interativa a programação, menos importa nossa opinião. No streaming, a equação parece ser mais cruel ainda: eliminado o intervalo comercial, tudo é publicidade ou está à venda.

Não por acaso, até mesmo o serviço de streaming da HBO (provavelmente um dos canais que menos tenha se dedicado a este tipo de programa) estreou no Brasil com 6 títulos contemplando o gênero, além da ficcionalização dos bastidores daquele reality pioneiro, o filme Cinema verité, um dos últimos trabalhos protagonizados por James Gandolfini.

O Amazon Prime oferece hoje cerca de 15 opções desse universo e na Netflix, com seu caudaloso e cada dia mais esquizofrênico catálogo, são mais de 30 programas dedicando-se a produzir versões construídas da realidade que se apresentam como verdade.

Alegando estar sob o manto sagrado do documentário, os inúmeros formatos tentam justificar o injustificável, trazendo à tona questões éticas que ultrapassam as fronteiras do jornalismo. Se perdemos completamente a capacidade de distinguir o público do privado e a ficção da realidade; se nos divertimos com o assédio moral indiscriminado; e assentimos com a banalização da noção de talento, é necessário admitir que algo vai muito mal – talvez sintoma de um tipo de involução.

Da ágora grega onde se criou o conceito de cidadania, fomos jogados primeiro para trabalhar na linha de montagem das fábricas, depois para o interior dos shopping centers. Agora vivemos dentro dessas telas, incapazes de diferenciar umas das outras.

Das Kardashians aos BBBs, de peões às modelos superstar, de cozinheiros às real housewives, aqui se vê, aqui se compra. No ecossistema do reality, não há espaço para a inocência. (por Alexis Parrot)

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