Do total de investigações abertas desde 2001, 201 ainda estão em curso
Dias atrás, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu investigar militares do Exército e da Aeronáutica por supostas irregularidades em licitação para a compra de móveis de escritório, no valor de R$ 120 milhões. Agora, levantamento do Estadão nos dados do TCU mostra que este caso está longe de ser isolado: o tribunal fez pelo menos 278 auditorias envolvendo possíveis prejuízos para os cofres públicos em órgãos das Forças Armadas nos últimos 20 anos, desde 2001.
O número se refere às chamadas Tomadas de Contas Especiais (TCEs) em unidades militares e no Ministério da Defesa, e não é pequeno: as 278 apurações encontradas pelo levantamento representam cerca de 10% dos 2.743 processos do tipo abertas no período, excluindo as relacionadas a prefeituras ou governos estaduais. Além de outros ministérios e órgãos da União o universo de 2,7 mil TCEs inclui associações privadas, partidos políticos e até entidades do Sistema S – que o TCU fiscaliza ao receberem recursos federais.
A compilação de processos no tribunal mostra uma imagem das Forças bem diferente da alardeada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos militares do governo, segundo a qual Exército, Marinha e Aeronáutica seriam imunes à corrupção. As investigações incluem desde suspeitas de fraudes em obras até o desvio de combustível de navios da Marinha, como numa apuração envolvendo o roubo de mais 100 mil litros de óleo diesel da antiga corveta Frontin, afundada em um exercício militar em 2016. A lista inclui ainda dezenas de casos de pagamentos indevidos de pensões.
A TCE é um tipo de processo administrativo usado em casos que envolvem prejuízo aos cofres públicos. Pode ser instaurada pelo próprio órgão onde ocorreu o problema ou pelo TCU, que é quem a julga. No caso das Forças Armadas, a maioria dos processos ainda está em andamento: das 278 apurações abertas desde 2001, só 77 são consideradas encerradas pelo tribunal. Ou seja: ao menos 201 investigações do tipo ainda estão em curso. E a punição também não é muito comum: desde 2010, apenas 73 militares foram punidos pelo Tribunal com multas e com a obrigação de reparar o dano, segundo dados compilados pelo TCU a pedido da reportagem.
Segundo um ministro do TCU ouvido pelo Estadão, o número relativamente baixo de militares punidos se deve a uma certa “deferência” que existia na Corte em relação aos fardados – muito por causa do prestígio que Exército, Marinha e Aeronáutica tinham na administração pública. Este prestígio, porém, estaria se “esvaindo”, na opinião do auditor.
Outro Poder
Ao contrário do que o nome sugere, o Tribunal de Contas não integra o Poder Judiciário: ele é ligado ao Poder Legislativo, com a missão de auxiliar o Congresso na tarefa constitucional de vigiar o Executivo. Tem o poder de aplicar multas e determinar o ressarcimento dos danos. Quem é condenado – seja militar ou civil – pode recorrer no próprio TCU e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Alguns tipos de irregularidades apuradas nas TCEs também podem ser punidas pela Justiça, inclusive com prisão.
Desde o começo de 2001, o Tribunal de Contas da União fez 27.657 Tomadas de Contas Especiais. Mais da metade (15.708) são de municípios. Nos casos mais antigos há registros incompletos: nem sempre o objeto do processo está discriminado de forma explícita.
Procurado, o Ministério da Defesa disse em nota que “as Forças Armadas vêm atuando no sentido de buscar, por meio de processos de Tomada de Contas Especial (TCE), a apuração de irregularidades e responsabilidades com a reparação de possíveis danos ao Erário” e que a instituição é “comprometida com a legalidade, moralidade e transparência de todos os atos administrativos”.
Nos casos em questão, informou o ministério, “a Administração Militar iniciou procedimento administrativo ” e “quaisquer irregularidades serão apuradas e tomadas as medidas julgadas cabíveis, conforme as decisões proferidas pelo Judiciário e pelo TCU”.
Óleo diesel e comida
A complexa logística das Forças Armadas significa que elas estão sujeitas a problemas que dificilmente ocorrem em outras áreas do serviço público. Por exemplo: no ano passado, o 22º Depósito de Suprimento do Exército, localizado em Barueri (SP), instaurou uma apuração para investigar a “subtração de gêneros alimentícios” do almoxarifado, entre 2016 e maio de 2018. O valor do prejuízo foi estimado em R$ 171,8 mil.
O extravio não é só de alimentos: uma das tomadas de contas apurou o roubo de óleo diesel da antiga corveta Frontin da Marinha, reformada em 2014. O fato ocorreu em 2012. Alegando que o diesel estocado no navio estaria contaminado por água do mar, o seu chefe de máquinas autorizou a retirada de 118,5 mil litros do óleo – o capitão de corveta agiu sem o conhecimento do superior e não fez qualquer análise para comprovar se o óleo estava contaminado.
O diesel foi levado por uma empresa de transportes e nunca foi recuperado. Ao se defender, o militar disse que “o precário estado de conservação” do navio tornava problemas deste tipo comuns. “Ao tomar conhecimento da contaminação do óleo (…) decidiu proceder à remoção do combustível contaminado de modo discreto, com a intenção de preservar a boa imagem do navio e da Marinha”, narra o TCU.
As alegações da defesa não foram aceitas e o capitão de corveta foi condenado a ressarcir a União em R$ 316 mil, além de pagar multa de mais R$ 40 mil. Outras cinco pessoas envolvidas também foram multadas.
Pensões questionadas
Em número de casos, o tipo de problema mais comum investigado pelo TCU é o pagamento indevido de pensões: pelo menos 52 das 278 apurações identificadas pelo Estadão são sobre o tema. Há de tudo: desde filhas que continuaram recebendo após a morte dos beneficiários até o caso de uma mulher que recebeu pensão como viúva de um servidor da Defesa sem nunca ter sido casada com o mesmo.
Em um dos casos, a filha de uma pensionista continuou recebendo o benefício em nome da mãe durante 16 anos, de janeiro 2001 a agosto de 2017, depois do falecimento da titular da pensão. O prejuízo ao Erário, de acordo com o TCU, foi de R$ 2,1 milhões. A apuração foi instaurada pelo próprio Exército por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM), ao perceber a irregularidade – o caso aconteceu no 2º Regimento de Cavalaria Mecanizado, na cidade gaúcha de São Borja.
Para continuar recebendo o benefício, a filha da pensionista não só omitiu a morte da mãe ao Exército, mas também apresentou à perícia uma “terceira pessoa, como sendo aquela (a própria mãe)”.
Em outro caso parecido, a fraude foi descoberta quando a filha da ex-pensionista Ismênia Mendes da Silva, já falecida, tentou levar uma outra pessoa que não sua mãe à Seção de Servidores Inativos do Exército para fazer a chamada prova de vida. Como as digitais eram diferentes, o golpe malogrou. Condenada, a filha recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro de 2017 o ministro Luiz Fux, do STF, aceitou o recurso da defesa e livrou a ré da punição.
No começo deste mês, a União divulgou, por determinação do TCU, os gastos com pensões de dependentes de militares: ao longo de 2020, foram R$ 19,3 bilhões. Nada menos que 137,9 mil filhas de militares recebem o benefício – elas perfazem 60% do total de pensionistas. Os dados também mostraram que as pensões nas Forças são, em média, maiores que as dos civis. O benefício médio dos 226 mil pensionistas militares foi de R$ 5,8 mil em fevereiro de 2021, último mês para o qual há dados divulgados. Em fevereiro, a lista incluiu também 77 pensionistas que recebem acima do teto do funcionalismo público, de R$ 39,3 mil.
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