Presidente segue o modelo ultradireitista de outros países e ameaça legado de 36 anos de regime democrático brasileiro
Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ― uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva ― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela em e-mail. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.
Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.
“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ― o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política ― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.
O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.
Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.
Democracia verde oliva
Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.