A vergonha da raça

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
‘Para um traidor como Sérgio Camargo, lacaio dos nossos algozes, está reservada a lata de lixo da história’

Nunca na história da humanidade houve uma movimentação forçada de tantos seres humanos, como a da nossa gente preta trazida em diáspora para as Américas, a partir do século 16, com vistas a atender as demandas das grandes potências econômicas da época. Mais de 6 milhões de pessoas foram trazidas para o Novo Mundo em tumbeiros. Milhares pereceram na travessia, outros tantos à beira dos portos, famélicos, combalidos, descartáveis para o trabalho; e milhões sofreram nas lavouras, nas minas, nas casas dos senhores, no comércio da gente de bem. Tudo isso sob o olhar complacente da Igreja.

Há quem ainda acredite, todavia, que nossa liberdade é fruto de uma princesa generosa. Há, também, quem diga que somos vitimistas, que já passou, que é preciso olhar para frente. Sim, é preciso seguir adiante, e até perdoar, mas sem nunca nos esquecermos da dor e do martírio sofrido pelos nossos ancestrais, pessoas arrancadas de suas terras e tradições que tiveram que se reinventar do outro lado do Atlântico, ao mesmo tempo em que eram vistas tão somente como mercadoria, animal doméstico.

Não queremos reescrever o passado, mas encará-lo como realmente foi, livre de simulacros, para que o horror nunca mais se repita e a gente preta tenha seu devido lugar na história da nação, que foi erguida sobre nossos corpos lanhados, terra nutrida com o nosso sangue. Ultimamente, aliás, tenho passado longos períodos em Ouro Preto, trabalhando nos livros dos meus autores e nos meus próprios. Adoro a cidade, sua paisagem e aquilo que nem sempre está a olhos vistos. Muitos amigos quando vem para cá relatam o seu encantamento, mas certo mal-estar, afirmando sentir aqui um clima pesado, fruto de séculos de escravidão. A mim extasia a imponência das igrejas, engenhosidade das ruas e pontes, o gosto da comida e da cachaça, as histórias da gente simples cujos antepassados viveram sob esta terra, abrindo-lhe o ventre para fazer jorrar o ouro, porque é justamente aqui onde eu me reconheço: herdeiro de uma gente forte, resistente e criativa, dotada de poder para reinventar a si mesma todos os dias.

Por isso, figuras como Sérgio Camargo, atual presidente da Fundação Zumbi dos Palmares, me causam vergonha e evito, até mesmo, pronunciar o nome. Pois quando me lembro de minha mãe adotiva, Dona Ana, que cuidou do filho que Marião, minha mãe biológica, não pôde cuidar, ambas pretas e pobres, rememoro que são a fortaleza em pessoa, apesar dos corpos frágeis e violados, do cansaço das lidas. É o espírito de Dona Ana que me move, sua pomba-gira rainha me conduzindo pela mão. É a garra de Marião que me inspira, porque fez sua casa erguendo pedra sobre pedra, amassando barro com os pés, dando aos filhos um pouco de comer graças ao suor do seu rosto marcado pelo tempo, um rosto que ainda guarda a nobreza de quem nunca abaixou a cabeça para ninguém.

Neste ano, num dos ataques mais odientos aos negros deste país, Camargo excluiu, da lista de personalidades negras da Fundação Palmares nomes como Milton Nascimento, Benedito da Silva, Gilberto Gil, Elza Soares e Martinho da Vila, numa atitude de total desrespeito à memória nacional. Todavia, esses ataques são diários e afetam não somente personalidades das mais diversas áreas, mas a todos nós, a gente preta.

É por isso que Dona Ana e Marião me fazem lembrar que de Machado de Assis aos irmãos Rebouças, de Chica da Silva a Zumbi e Dandara dos Palmares, de Carolina de Jesus a Milton Santos, há toda uma raça vitoriosa e aguerrida, que soube se refazer a cada canto do galo entre os despojos da noite, que sobreviveu ao chicote e ao pelourinho, às balas das quais desviaram como palmeira que enverga, mas não quebra.

 É dessa gente que fica o exemplo para a posteridade, sua memória ecoando em cada página a ser escrita, na pele de cada criança preta que vai nascer. Para um traidor, pessoa odienta como Sérgio Camargo, lacaio dos nossos algozes, está reservada a lata de lixo da história, porque é somente, e tão somente, vergonha da nossa raça. (por Leonardo Costaneto) 

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais