Paulo José e Tarcísio Meira, uma homenagem

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O adeus a Shazam e João Coragem

Depois do tombo, veio o coice. Ainda muito emocionado com a notícia da morte de Paulo José na última quarta-feira, enquanto assistia à sessão da CPI da Covid no dia seguinte, tomei conhecimento de outra enorme lacuna que se abria. O senador Alessandro Vieira interrompeu os trabalhos da comissão para anunciar que acabávamos de perder Tarcísio Meira, mais uma das mais de 560 mil vidas ceifadas pelo coronavírus no país.

O Congresso – que deveria ser sempre a casa do povo – de fato nos representou naquele momento, ao reconhecer e homenagear ao vivo com um minuto de silêncio a memória do grande ator. Para a turba de senadores, quer seja governistas, independentes ou da oposição, em meio a acusações e ataques, Tarcísio conseguiu ser a única unanimidade.    

Foi-se o irmão Coragem remanescente, o galã quintessencial das novelas brasileiras que, ironicamente, desprezava este tipo de personagem. Acabou superando o estereótipo quando,  mais de vinte anos após o início da carreira televisiva, pôde finalmente provar sua versatilidade ao enveredar pela comédia, em Guerra dos sexos, de Silvio de Abreu.

Logo em seguida, em 1985, vieram o capitão Rodrigo Cambará, de O tempo e o vento, e o chefe de jagunços Hermógenes, vilão do Grande sertão do Avancini – ambos marcos em sua trajetória, conquistando em definitivo a convergência do sucesso popular com o respeito da crítica.  

Durante as cinco décadas em que nos acostumamos a vê-lo na telinha, se nem todos os papéis foram memoráveis, a culpa é menos dele do que da TV, veículo reconhecidamente inconstante no que diz respeito à relevância e qualidade dramatúrgica de sua produção.   

No cinema, jogou-se sem rede de proteção à ferocidade de Glauber Rocha em a Idade da Terra e encarnou com elegância o alter ego do antonioniano Walter Hugo Khoury no filme Eu. Mas bem antes disso, ao lado da amada e companheira da vida inteira Gloria Menezes, foi também aquele dom Pedro I galã, de Independência ou morte – curiosamente, na mesma época em que Paulo José deu vida ao Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade.

Os dois ícones (o primeiro imperador e o herói sem nenhum caráter) não poderiam representar Brasis mais diversos, assim como os dois filmes espelham duas vertentes irreconciliáveis do nosso cinema. Em comum, apenas a verdade da performance de seus intérpretes.  

Sobre a vida pessoal de Tarcísio, a justa homenagem feita pelo Fantástico no último domingo foi esclarecedora, enaltecendo o gosto pelas coisas simples que o ator cultivava (como a vida rural na fazenda em Porto Feliz em oposição ao glamour alcançado com a profissão) e a companhia dos amigos queridos que tanto prezava. A matéria de meia hora de duração pode servir também como chave para entender o programa, verdadeira elegia ao excesso e à estridência em que qualquer notícia vira melodrama.

Ao mesmo tempo que reafirmava o poder da Rede Globo (mais até como instituição do que como veículo de comunicação), a peça também pecava ao tentar nos comover a qualquer custo. O contraponto fica claro se colocarmos em paralelo o depoimento emocionado de Tarcisio Filho – que escolheu o programa para se manifestar e agradecer o carinho recebido de todos os lados – com a fala desnecessária de desconhecidos, inserida para atestar o lado “comum” do ator, só porque o viam pessoalmente na fila da padaria.      

Já com Paulo José pude compartilhar alguns momentos. Primeiro, no set do filme Policarpo Quaresma, em meados da década de 90, onde tive o prazer de vê-lo em ação por integrar o time de produção das sequências rodadas em Minas Gerais. Tendo interpretado Policarpo e Macunaíma, ele dizia ter abarcado o “caráter brasileiro” em tudo que este carrega de antagônico: o jeitinho versus o escrúpulo; o instinto de sobrevivência contra o idealismo.

Dez anos depois, conversei com ele em longa e rica entrevista, durante o primeiro festival de cinema de Ouro Preto. Quis saber qual era o segredo para transmitir tanta ternura em seus papéis e conquistar o carinho do público, até mesmo ao interpretar um vilão (o corcunda de A madona de cedro), um opressor (o pai cigano de Explode coração) ou um alcoólatra que, seguidamente, decepcionava todos à sua volta (o inesquecível Orestes de Por amor).

A resposta reverbera em mim até hoje. Em apenas uma frase, Paulo José ofereceu preciosa aula sobre o seu ofício: “eu sempre penso que o personagem é melhor do que eu”. Olhando o mundo assim, com tanto calor e humanidade, ele pôde se manter íntegro em cada escolha profissional que fez, desde o início no Teatro de Arena e nos filmes de Domingos de Oliveira até o fim. Bicho político e politizado que era, viveu sua arte com a intensidade dos deuses para encarnar a esperança como nenhum outro ator brasileiro ousou.  

Em coluna recente neste Dom Total, em que discorria sobre as relações entre TV e literatura, destaquei também seu trabalho como diretor:

“Li Um certo capitão Rodrigo antes do primeiro episódio de O tempo e o vento, li o Incidente em Antares porque me entusiasmei com a minissérie – do Érico para o Paulo José e de volta ao Érico por causa do Paulo José. Eu não passava de um mineiro tateando pelo Rio Grande de meu pai e guiado por dois gaudérios da melhor estirpe, um escrevendo e o outro dirigindo”.

Ainda que tardiamente, incluo agora Tarcísio Meira na equação porque, sem dúvida e mesmo sem ser gaúcho, seu Rodrigo Cambará é definitivo. Apesar disso, se tivesse que eleger um personagem favorito entre todos vividos por Tarcisão na TV, minha escolha recairia no Aristênio Catanduva, o ex-agente do SNI viciado em roubar calcinhas, de Araponga. A paródia de mocinho de filme de espionagem, atrapalhado e infantil, representa a antítese mais profunda de todos os galãs vividos pelo ator em sua carreira.

O de Paulo José seria o vendedor ambulante Gladstone, de Tieta, pelo motivo oposto, quase uma síntese. Combina muito com ele essa ideia do amor como agente de transformação, capaz de mover montanhas e mudar destinos que o personagem carrega (muito parecido com o ideário defendido pelo Shazam lá da época da TV em preto e branco ainda).

Para ambos, a morte será apenas uma passagem – porque já haviam conquistado em vida a eternidade. (por Alexis Parrot)

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