Vazamento do Wikileaks aponta mais de 200 brasileiros como sócios de grupos fundamentalistas na Espanha. País é o maior doador financeiro da América Latina – e chave para infiltrar ações ultraconservadoras no continente
Brasileiros estão entre os principais sócios dos movimentos ultraconservadores de extrema direita HazteOir e CitizenGO, sediados em Madri, na Espanha. Documentos publicados pelo WikiLeaks – em vazamento nomeado “A Rede da Intolerância” – revelam a mobilização dos grupos que promovem agendas antidireitos, como iniciativas contra o aborto legal e contra pautas LGBTQIA+, em vários países. Entre os mais de 17 mil arquivos, a Pública encontrou uma lista que cita mais de 200 brasileiros que seriam sócios das organizações. Entre eles há servidores públicos, ex-candidatos a cargos políticos, empresários, médicos, juristas e nomes ligados a grupos que disseminam desinformação no Brasil.
A CitizenGO foi lançada como plataforma internacional da HazteOir em 2013, tornando-se o guarda-chuva do grupo ultracatólico, que já realizava campanhas LGBTfóbicas e contra direitos reprodutivos na Espanha desde 2001, e que também é conhecida por possíveis conexões com a sociedade secreta católica El Yunque, do México. Apesar da mudança de nome, a principal estratégia de atuação continuou sendo o ciberativismo, com a organização de petições on-line, e o lobby político.
Na justificativa para o vazamento dos documentos (veja a íntegra do comunicado traduzido para o português aqui), o WikiLeaks afirma: “Ambas, a HazteOir e a CitizenGO, veiculam suas campanhas e outros trabalhos usando o disfarce de princípios familiares, mas os documentos vazados evidenciam que seus valores são traçados em um universo ultraconservador cristão. Eles fazem muitas ações on-line através de petições, mas também trabalham no mundo real. Como, por exemplo, com o “Ônibus do Ódio” – um ônibus laranja brilhante que estampa slogans como ‘Meninos são Meninos’ e faz tours pela Espanha e América”.O comunicado se refere ao “Free Speech Bus”, ônibus que carrega mensagens transfóbicas pela Europa e Estados Unidos.
Microdoações voluntárias (grassroots) são a principal fonte de renda da CitizenGO, segundo seu site. De acordo com os documentos vazados, em 2014 brasileiros fizeram 102 doações para a entidade, totalizando 1.222,18 euros. Um documento interno da CitizenGO, acessado pela Pública em colaboração com o site mexicano Contralínea, mostra o Brasil como o quinto país em volume desse tipo de doações, atrás apenas de Itália, Polônia, Reino Unido e Espanha, onde fica a sede. Nas Américas, segundo esses documentos, os brasileiros lideram os apoios financeiros ao grupo ultraconservador, ficando à frente de países como México, Canadá e Estados Unidos.
A lista com mais de 200 nomes de cidadãos brasileiros identificados como sócios, à qual a reportagem teve acesso e que também está entre os documentos reunidos pelo WikiLeaks, mostra 182 pagamentos feitos na moeda brasileira BRL (real); um montante de R$ 1.873,05, com doações entre R$ 0,87 e R$ 28,94. Esse outro documento não detalha o montante doado por cada sócio, nem a data dos repasses, mas é possível saber que os apoiadores são de várias localidades: desde capitais como Brasília, Manaus, Fortaleza, Belo Horizonte, Goiânia e São Paulo até cidades como Ouro Branco, em Minas Gerais. Há ainda uma outra lista com quatro doadores brasileiros, que registra repasses feitos em 2009, no valor total de 140 euros.
Documentos da CitizenGo mostram o Brasil como maior fonte de doações das Américas
Em entrevista à Pública, no entanto, o pesquisador e secretário do Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos, Neil Datta, afirma que as doações mais altas à CitizenGO vêm de outras fontes: “A CitizenGO alega que é financiada apenas por pequenas doações feitas por cidadãos, mas isso não é totalmente verdade. Por um lado, ela tem muitas pequenas doações de indivíduos […], mas você não pode simplesmente criar um site e começar a coletar dinheiro sem um capital inicial. E o que o vazamento do WikiLeaks mostra é que, para estabelecer a CitizenGO, a HazteOir fez basicamente o que todos fazem, que é criar um documento com um conceito e mandar para potenciais doadores pedindo US$ 100 mil, US$ 200 mil. E quem são esses doadores que eles abordaram? Primeiro os bilionários espanhóis. […] Famílias ricas, algumas da aristocracia espanhola. Eles abordaram também o bilionário mexicano Patrick Slim, que é suspeito de estar associado ao El Yunque, e dois oligarcas russos [Vladimir Yakunin e Konstantin Malofeev] que tiveram conexão com separatistas ucranianos de extrema direita. Em termos de lavagem de dinheiro, uma coisa que o WikiLeaks mostra é que a CitizenGO também foi financiada por um político italiano [Luca Volontè], que no começo deste ano foi condenado a quatro anos de prisão porque estava recebendo dinheiro ilegal vindo de fontes de corrupção do Azerbaijão em troca de votos contra os direitos humanos do Conselho Europeu. Então você tem o financiamento vindo de famílias aristocratas espanholas, lavagem de dinheiro e oligarcas russos na base da CitzenGO”, explica.
Vazamento “A Rede da Intolerância” mostra a atuação de grupos conservadores para a promoção de agenda antidireitos
Neil Datta detalha essas doações no estudo “Tip of the Iceberg – Religious Extremist Funders against Human Rights for Sexuality and Reproductive Health in Europe 2009-2018” (A ponta do Iceberg – Financiadores extremistas religiosos contra os direitos humanos para a sexualidade e saúde reprodutiva na Europa de 2009 a 2018, em tradução livre) e afirma que em dez anos o financiamento a grupos e ações antidireitos humanos (por exemplo, ações para fazer retroceder direitos ao aborto e direitos reprodutivos em geral, divórcio, direitos LGBT, políticas antigênero) foi de mais de US$ 700 milhões.
Sócios no Brasil
Entre os nomes citados na lista onde aparecem mais de 200 nomes de brasileiros como sócios da CitizenGO estão pelo menos três servidores Federais: o ex-candidato a deputado estadual pelo PSL do Rio de Janeiro Douglas Lacerda, que é técnico do Ministério Público da União (MPU); o servidor da Câmara do Deputados Vilson Pereira de Sousa, que faz parte do quadro efetivo da Casa e usou o e-mail institucional no cadastro da CitizenGO; e a funcionária concursada da Petrobras Ludmila Carvalho Coradine.
No Gab, uma rede social de ultradireita,Douglas Lacerda fez posts defendendo o voto impresso auditável e ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Não confunda discurso de ódio com verdades que você odeia. Uma mentira repetida mil vezes se torna jornalismo”, escreveu na descrição do seu perfil. Ludmila, além de contratadora de serviços da estatal desde 2006, se apresenta como “mentora de mães” e é dona da plataforma “Multimãe”
A lista de brasileiros associados à CitizenGO inclui ainda acadêmicos e médicos que misturam discurso científico e religioso. Um deles é Daniel Secco, coordenador do curso de engenharia mecatrônica do Instituto Federal de São Paulo. Além de orientar alunos e ministrar aulas na universidade, ele é representante da entidade cristã “Ministério de Universidades Renovadas” no campus da USP São Carlos, conforme divulgado nas redes sociais.
Presidente da HazteOir em frente a ônibus considerado transfóbico
A lista de brasileiros associados à CitizenGO inclui ainda acadêmicos e médicos que misturam discurso científico e religioso. Um deles é Daniel Secco, coordenador do curso de engenharia mecatrônica do Instituto Federal de São Paulo. Além de orientar alunos e ministrar aulas na universidade, ele é representante da entidade cristã “Ministério de Universidades Renovadas” no campus da USP São Carlos, conforme divulgado nas redes sociais.
Outro nome citado no documento é o do professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) Marco Ridenti. Ele mantém o “Diálogos Fé e Ciência”, um canal no YouTube que se autointitula “um grupo ecumênico”, embora seja apoiado pela Paróquia Salesiana Sagrada Família, que é católica. Ridenti também assinou um artigo na Gazeta do Povo no qual questiona o lockdown como medida de combate à pandemia. Após a publicação da reportagem, o professor escreveu uma resposta sobre as afirmações da reportagem. No texto ele confirma que fez a doação para a CitizenGo, como afirmamos, mas refuta as afirmações sobre a definição do seu canal do Youtube ser ligado a um grupo católico e se apresentar como ecumênico, e diz que o artigo que escreveu sobre o lockdown não questiona a medida, mas apresenta vários aspectos da questão.
Uma das discípulas de Olavo de Carvalho, a advogada Martha Balby Gandra, também está listada entre os sócios da CitizenGO. Em post do blog de Carvalho, há uma menção a ela como “musa olavete”. Também olavista, Marlon Derosa é listado como doador da organização. Ele é diretor da editora conservadora Estudos Nacionais e colunista no portal de mesmo nome, onde publica artigos de opinião defendendo, entre outras coisas, a criminalização total do aborto e a regulamentação do homeschooling (ensino doméstico) e criticando o que ele chama de “agenda globalista”. Em alguns de seus textos no site, ele divulga petições da CitizenGO.
Derosa é especializado em “bioética”, área de estudo transdisciplinar entre biologia e filosofia, muitas vezes usada por conservadores para misturar a moral judaico-cristã com a ciência. Dentro dessa especialidade, publicou os livros “Abortos forçados”, “Abortos ocultos” e “Precisamos falar sobre aborto: mitos e verdades”, e coordena um grupo de Telegram antiaborto chamado “Formação Pró-Vida”. Nas redes sociais, ele ainda compartilha conteúdos contra anticoncepcionais e fertilização in vitro.
Em resposta à reportagem, Derosa contou ter conhecido a CitizenGO “pela internet, por ver petições online” e confirmou ter realizado doações de R$ 10 mensais, sem detalhar o período, que já teriam sido canceladas. “Não há uma associação, qualquer cidadão pode doar pelo site esses valores se quiser apoiar a ONG”, afirmou.
Outro articulista de site de extrema direita também aparece na lista de sócios: Lívio Oliveira. O economista escreve para o “Vida Destra”, onde publica textos como o intitulado “A importância da Religião na Economia”, muitos deles com elogios a Bolsonaro. Em um de seus artigos, publicado em março de 2020, Oliveira chamou de “grito de Independência” as manifestações antidemocráticas, que atacaram instituições como o Congresso e o STF e geraram aglomeração em meio à pandemia de Covid-19.
A reportagem contatou todos os apontados como sócios ou doadores, mas não obteve retornos até a publicação. O coordenador da entidade no Brasil, Guilherme Araújo, escreveu à Pública: “A CitizenGO é apartidária. Qualquer aproximação com figuras políticas se dá por afinidade de valores e das petições, na medida em que algumas dessas figuras se identificam com alguma petição ou utilizam a plataforma para fazer alguma campanha”. Por email, o diretor pontuou ainda que qualquer pessoa pode fazer uma petição na plataforma.
Neil Datta afirma que a HazteOir e a CitizenGO têm conhecida relação com o partido de extrema direita espanhol Vox e que a estratégia é coletar assinaturas através de diferentes causas para depois pedir doações financeiras e engajar as pessoas em causas relacionadas ao espectro ultraconservador: “Eles abordam essas pessoas com pedidos de financiamento. Esse é o principal objetivo das petições. Você tem esses milhões de endereços de e-mails e pode pedir que eles mandem 5€, US$ 2. Além disso, você assina uma petição e depois outra, e acaba em várias listas, sendo abordado para mais e mais doações”. Por outro lado, ele explica que quem cria as petições também recebe dinheiro: “Eles estabelecem acordos em que dizem: “Nessa língua você vai produzir esse tanto de petições e por essas petições nós vamos lhe dar esse valor em euros ou dólares. Se você criar dez petições, nós vamos lhe dar mil euros por petição. E por cada cem ou mil assinaturas nós vamos lhe dar esse tanto de dólares e euros, e você compartilha essas assinaturas com a gente”.
Operações no Brasil
No Brasil, a CitizenGO abriu uma filial em 2016, registrada em Belo Horizonte (MG). “Em quatro anos de atuação arrecadamos cerca de 120 mil reais, com contribuições mensais na faixa de R$2,5 mil”, respondeu por e-mail à Pública o diretor da associação, Guilherme Ferreira Araújo. Católico conservador, dono de uma editora de publicações religiosas e tradutor. Além de sua militância a favor da agenda ultraconservadora nas campanhas da CitizenGO, Araújo criou a Edições Cristo Rei para “contribuir para a instauração do Reinado Social de Cristo”. A ideia reúne católicos que defendem a instauração de uma sociedade regida pela lei divina, que siga as regras da doutrina católica.
O projeto de transpor princípios religiosos para leis e decisões judiciais é um ponto comum que une a atuação da CitizenGO e de outros grupos ultraconservadores no Brasil. Araújo é ligado ao Centro Dom Bosco, uma entidade católica que trabalha com a missão de “recristianizar o Brasil”, através de influência no debate público e incidência política, com interlocutores como a deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ), uma das principais articuladoras de pautas antiaborto na Câmara dos Deputados. Ela aparece em um post da entidade no Facebook, ao lado de uma assessora e de Gregory Mertz, um ativista da CitizenGO nos Estados Unidos, durante a 63a CSW – 63ª Sessão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher das Nações Unidas. O Brasil foi representado no evento por Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em uma petição dirigida à ONU, a entidade afirma que “três militantes pró-vida da CitizenGo participariam das negociações”, muitas delas sobre direitos reprodutivos e igualdade de gênero.
O diretor da CitizenGO Brasil e Chris Tonietto têm atuações complementares na defesa de pautas ultraconservadoras e interagem nas redes sociais. Em 2019, Araújo publicou uma campanha da CitizenGO para que o estudioso Paulo Freire, reconhecido mundialmente, deixasse de ser o patrono da educação no Brasil. O diretor marcou a deputada pedindo ajuda na divulgação, ao que ela respondeu positivamente. Em outra ocasião, o diretor da CitizenGO Brasil foi convidado para ser mestre de cerimônias do lançamento da Frente Parlamentar contra o Aborto na Câmara dos Deputados.
A deputada Chris Tonietto (PSL-RJ) é uma das interlocutoras da CitizenGO no Brasil
A atenção dada às pautas de educação é outra característica que marca a direção da CitizenGO no Brasil. Na ata de fundação, que está entre os documentos vazados, aparece Luiza Monteiro de Castro Dutra Araújo, como sócia curadora. Tradutora, esposa de Guilherme Araújo e também sócia de uma das empresas da Edições Cristo Rei, Luiza ganhou o cargo de Diretora de Desenvolvimento Curricular e Formação de Professores Alfabetizadores no Ministério da Educação (MEC), em 2019.
A tradutora, que em seu currículo tem experiência no ensino de grego bíblico e produção de conteúdos para blog, foi alçada ao cargo no MEC na esteira da nomeação de seu companheiro de trabalho Carlos Nadalim. Juntos, eles produziam cursos para educação e alfabetização de crianças pelos próprios pais, em casa, conhecido como homeschooling. Luiza Araújo foi exonerada do cargo depois de seis meses no MEC, mas Nadalim, com quem trabalhava no site “Como educar seus filhos”, se manteve à frente da política de alfabetização nacional.
Além de Guilherme e Luiza Araújo, à frente da CitizenGO Brasil aparecem nos registros os nomes de Thales Augusto Costa e do presidente do grupo CitizenGO, Ignacio Vicente Arsuaga Rato. Desde 2013, o espanhol vem concentrando esforços em expandir a CitizenGO internacionalmente, espalhando “membros da entidade em quinze cidades de três continentes, disseminando petições em 50 países e traduzindo conteúdo online para seis idiomas”.
Ignacio Arsuaga Rato (fundador da CitzenGo) e Pedro Mejías Rguez em capanha antigênero
A rede de intolerância desembarca no Brasil
A presença do Brasil no radar da rede espanhola não é novidade. Ainda em 2006, dez anos antes da fundação do escritório brasileiro, um artigo da HazteOir criticava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que teria “caído na armadilha preparada pelo Centro de Direitos Reprodutivos através da ONU” ao enviar, naquele ano, um projeto que ampliaria o direito ao aborto.
Em 2012, o Brasil aparecia em destaque no VI Congresso Mundial de Famílias. No evento que reuniu vários grupos religiosos do campo conservador, o país foi tema constante em uma mesa sobre o impacto da política social europeia na Iberoamérica. A ata final do evento registra que “a estratégia seguida por aqueles que querem mudar o ethos dos países latinoamericanos” deve envolver “quatro países chave”, os “mais populosos e influenciadores”: Brasil, México, Colômbia e Argentina.
Na palestra, o professor argentino Jorge Scala detalhou como deveria ser a atuação antidireitos em cada um dos países. No caso brasileiro, “a chave parece ser o Judiciário Federal”, já que o Executivo precisa de maioria no Congresso para aprovar projetos, o que foi considerado uma dificuldade. A ata do evento apresenta também os direitos conquistados, como a legalização do casamento homoafetivo – o que o grupo considera uma “repercussão” brasileira do direito conquistado em Portugal. O documento menciona ainda a descriminalização do aborto em casos de estupro e aponta que a maioria da população brasileira seria contra as medidas.
Pouco mais de um ano depois do evento, Ignacio Arsuaga desembarcou no Brasil, conforme o registro de uma passagem de avião publicada pelo WikiLeaks. O fundador dos grupos extremistas chegou em São Paulo em 5 de novembro de 2013, ano em que conheceu Guilherme Araújo, futuro presidente da filial brasileira que seria criada três anos depois. Araújo contou à Pública que trabalha para a entidade espanhola desde 2013.
Segundo planilhas internas da CitizenGO, disponibilizadas pelo WikiLeaks, Guilherme Araújo figurava na lista de campaigners, ativistas financiados pela organização em 2015. Documentos de contabilidade indicam que somente entre janeiro e abril de 2015, por exemplo, Guilherme teria recebido 10.692,14€, aproximadamente R$ 36 mil, na cotação da época.
No ano seguinte, segundo os documentos, em um mês Araújo teria recebido mais 3.775,00€, cerca de R$ 12 mil, em transferências diretas. Em 2015 e 2016, o tradutor brasileiro figurava na lista de ativistas estrangeiros financiados pela entidade, junto com outros quatro nomes. Em 2015, Araújo foi o militante estrangeiro que recebeu o maior financiamento, à frente de colegas da Croácia e Alemanha. Por e-mail, Araújo disse à Pública que recebeu pagamentos da entidade por elaborar petições, traduzir textos, atender assinantes e doadores, além de gerir o processo de abertura da associação CitizenGO Brasil.
Transferências recebidas em nome de Guilherme Araújo
Na lista de militantes que recebiam financiamento direto, o brasileiro aparece ao lado de Jakob Herburger, um católico militante alemão que atualmente integra o Comitê de Identidade e Democracia da União Europeia. Herburger é ligado à AfD – Alternativa para a Alemanha –, partido de extrema direita nacionalista alemão. Em textos, defende a atuação política regida por valores bíblicos, como preconiza o partido ultraconservador, e em 2020 apareceu como contato para encomendas de um livro antimigração escrito por um candidato da AfD. Em 2015, quando era financiado pela CitizenGO, o militante alemão recebeu cerca de 5.834,00€, aproximadamente metade do valor recebido pelo ativista brasileiro.
Petições por Deus, pela família, pelo voto impresso e tratamento precoce
O site brasileiro da CitizenGO é recheado de petições a favor de pautas bolsonaristas. No mês passado, a organização criou uma petição direcionada ao presidente Jair Bolsonaro pedindo que ele vetasse o aumento do fundo eleitoral – aprovado no Congresso Nacional com o voto de bolsonaristas. O pedido já conseguiu mais de 43 mil assinaturas e tem a meta de atingir 50 mil.
Porém, a campanha nacional mais popular no momento é a que pede “Voto impresso auditável já”, que exige a execução da PEC 135/19, da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para aplicação do voto impresso nas eleições de 2022. A petição, que já tem mais de 168 mil assinaturas, é direcionada ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, alvo de ataques de bolsonaristas nas redes sociais.
“Com as petições em si, o que eles fazem é coagir diferentes atores a ir contra os direitos humanos. E isso já é uma tática superagressiva”, explica Neil Datta. “Não são petições legais ou gentis, são táticas de bullying.”
Além de temas nacionais, no site brasileiro da CitizenGO há petições internacionais traduzidas para o português. A maior delas se opõe a relatório que trata de direitos reprodutivos e pede a remoção de barreiras ao acesso ao aborto, o Relatório Matic, que foi votado pelo Parlamento Europeu em 23 de junho. A petição, que já atingiu mais de 412 mil assinaturas, classifica o projeto como “o mais agressivo já apresentado no Parlamento”.
A grande maioria das petições no site CitizenGO é de autoria da própria organização, mas qualquer pessoa ou organização pode colocar um abaixo-assinado no ar. A entidade brasileira que mais usou a plataforma para divulgar suas pautas foi o Movimento Legislação e Vida – com mais de 20 petições publicadas. O movimento é coordenado por Hermes Rodrigues Nery, que é diretor da Associação Nacional PROVIDAFAMILIA e do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – “Brasil sem Aborto” e autor do livro “Legislação e vida”, publicado pela editora Estudos Nacionais, de Marlon Derosa – um dos brasileiros associados à CitizenGO.
Hermes Rodrigues Nery, que é diretor da Associação Nacional PROVIDAFAMILIA e associado à CitizenGO
Além de atuar contra a legalização do aborto e por pautas conservadoras, o Movimento Legislação e Vida passou a defender o chamado tratamento precoce, comprovadamente ineficaz contra a Covid-19, e a criticar medidas de combate à pandemia como uso de máscaras e distanciamento social. Em parceria com o movimento Médicos Pela Vida, criaram manifesto pela não obrigatoriedade das vacinas, veiculado no site da CitizenGO, com mais de 74 mil assinaturas. Antes disso, haviam criado petições pelo fim do uso obrigatório de máscaras e pela nomeação da médica Nise Yamaguchi, fervorosa defensora de medicamentos sem eficácia contra o coronavírus, para o Ministério da Saúde.
Mais recentemente, manifestaram apoio à nomeação do senador Eduardo Girão (Podemos) para a presidência da CPI da Covid-19, com mais de 56 mil assinaturas. O senador é aliado do Movimento Legislação e Vida e militante antiaborto no Congresso, tendo assinado em conjunto um pedido de impeachment contra o ministro do STF Alexandre de Moraes – também assunto de petição no site da CitizenGO.
Grupos cristãos também usam a plataforma para pressionar por suas pautas. No ano passado, o movimento “Sou Cristão” criou uma petição no site pedindo a reabertura de igrejas apesar da pandemia de Covid-19 e conquistou mais de 13 mil assinaturas.
Em abril deste ano, o Instituto São Pedro de Alcântara, associação católica e antiaborto sediada em Belo Horizonte, criou uma petição que acusa o STF de querer “aprovar o aborto na surdina” no Brasil. É uma moção de repúdio à votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.581, que tratava, entre outras coisas, do aborto para fetos com microcefalia decorrente da infecção por zika vírus. “O agendamento dessa pauta em meio à crise em que vivemos revela não somente o oportunismo dos ministros do STF, mas também a hipocrisia de se defender o assassinato de bebês enquanto se fala tanto em defesa da vida”, diz a petição, que somou mais de 184 mil assinaturas. O instituto é autor de outros quatro abaixo-assinados no site.
Tentativas como essa de barrar eventos com pautas de gênero e sexualidade são um dos principais temas das petições no site. Ainda em 2017, uma campanha organizada pela própria CitizenGO tentou impedir que a filósofa Judith Butler realizasse uma palestra em São Paulo. “Judith Butler não é bem-vinda no Brasil!”, dizia a mensagem direcionada ao Sesc São Paulo, que sediou o evento, enviada por cada uma das mais de 373 mil assinaturas do abaixo-assinado.
No dia do evento, dezenas de manifestantes se reuniram na frente do Sesc com cartazes com dizeres transfóbicos e machistas. Eles queimaram um boneco que exibia uma foto de Butler.
“Não importa se as petições funcionam ou não, porque o real interesse é pegar esses endereços de e-mail das assinaturas. E então eles abordam essas pessoas com pedidos de financiamento”, explica o pesquisador Neil Datta. Nos últimos anos, a organização já conseguiu mais de 15,7 milhões de associados, ou “cidadãos ativos”, conforme divulgam em seu site.
Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ethel Rudnitzki, Laura Scofield e Mariama Correia, na Agência Pública
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