Os talibãs, uma história de sucesso

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Criados para suprir a necessidade de ordem num país sem eira nem beira, os talibãs criaram uma mística que aguentou anos de desaires sem nunca esmorecer, até chegarem à vitória final

Todos odiamos os talibãs, evidentemente. Além de sujos e feios, têm ideias aberrantes e representam a volta a valores a que costumamos chamar de medievais. Não é por serem muçulmanos; é pelo tipo de muçulmanos que são, e pelo modo brutal como impõem a sua visão da sociedade. Para muita gente, talibã, Al-Qaeda e Daesh é tudo a mesma coisa: fanáticos perigosos que é preciso eliminar ou, no mínimo, conter. Mas a primeira regra da guerra é conhecer o inimigo, e agora, que não se fala noutra coisa, é interessante relembrar como tudo aconteceu e as diferenças entre eles.

Já falamos aqui sobre como os norte-americanos perderam o Afeganistão; agora vamos ver como os talibãs o ganharam.

O movimento dos “estudantes” data de 1994, na confusão que se seguiu à retirada dos russos, derrotados pela união das 14 tribos que vivem na região: pastuns, tajiques, hazaras, uzebeques, balochis, turcos, nooritanos, pamiris, árabes, gujars, brahuis, quisilbaches, aimaques e paschais. Ao todo são 27 milhões de pessoas, que nunca se entenderam entre si (falam 59 idiomas), mas que se juntam sempre que é preciso repelir um invasor.

Nas lutas entre as tribos, chefiadas por conselhos de anciãos (Jirgas) vale tudo: traição, mudança de lado, coação, corrupção e simulação. Se dá jeito a uma tribo, finge que se submete, ou aceita uma contrapartida, ou contrapõe um favor. Andam nisto há mais de mil anos e realmente, em termos da definição moderna de nação, o país nunca existiu. Quem definiu fronteiras foram os ocidentais, que precisam de delimitar os espaços geográficos que querem conquistar. Para as tribos na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, essa fronteira não existe. O mesmo para as que vivem entre o Afeganistão e o Irã.

Então, em 1989, derrotados os russos, as tribos voltaram a guerrear-se e os senhores da guerra de cada região tentando submeter ou comprar os das regiões próximas. A etnia dominante, os pastuns, formou uma associação chamada Liga do Norte, que, sendo a mais forte, conseguiu impor um governo central em Kabul, mas não conseguiu a paz e a calma em todo o território. (Também houve uma monarquia, entre 1933 e 1973, que acabou mal).

De repente, em 1994, os estudantes das madrassas, fartos da instabilidade, criaram um movimento religioso que prometia acabar com a desonestidade e a corrupção – não porque fossem más em si, mas porque iam contra os ensinamentos do Corão. Foi de repente mesmo: ninguém os viu chegar, nem imaginou que jovens estudantes se pudessem transformar em guerreiros. A pureza religiosa, sendo a religião um dos poucos elos comuns entre todas as etnias, deu-lhes um ascendente sobre as facções em conflito. Ao princípio eram apenas pastuns da província de Candahar, mas depressa se espalharam. Em 1996 tomaram Cabul e proclamaram o Emirado Islâmico.

O que se seguiu foi um recuo de séculos na sociedade afegã. Há fotografias da década de 1970 que mostram moças estudantes de saias curtas, a passear pela rua, ou então de bata a trabalhar em fábricas e laboratórios. Ouvia-se música pop, liam-se revistas coloridas, vivia-se numa cultura com um passado rico e um presente ocidentalizado, modesto, mas descontraído.

As fotografias e os vídeos pós 1996, parecem da série Guerra dos Tronos; as mulheres completamente cobertas com um manto azul, que as faz parecer fantoches, andando pela rua encostadas às paredes, ou então sendo espancadas em público, apedrejadas, desumanizadas. Proibidas de estudar e trabalhar. Há outros vídeos de execuções em estádios, violência indiscriminada. E há, evidentemente, a destruição do famoso buda de Bamiyan, uma jóia da cultura mundial, mandada explodir pelo mullah supremo, Moahmmed Omar, em 2001.

A Liga do Norte combateu sempre os talibãs, sem grande sucesso. O “Ocidente” ficava chocado com o que via, mas nada fazia. Os talibãs eram a lei daquela terra perdida, que não interessava a ninguém.

Tudo isto mudou em Setembro desse ano de 2001, quando a Al-Qaeda levou a cabo o famigerado ataque às Twin Towers, em Nova Iorque. A Al-Qaeda, da qual pouca gente tinha ouvido falar, é uma organização diferente. Constituída por células semiautônomas e dirigida por Bin Laden, dedicava-se a fazer a Guerra Santa contra os infiéis norte-americanos por todo o mundo. Logo se descobriu que o centro de operações era no Afeganistão, cortesia do Mullah Omar para com o seu correligionário, nascido na Arábia Saudita. Instado pelos norte-americanos, Omar recusou-se a entregar Bin Laden.

Pela primeira vez desde a sua fundação, em 1949, a Nato usou os poderes conferidos no seu Artigo 5, que diz que o ataque a um membro da organização é um ataque a todos eles. A intenção do Artigo 5 era deter os soviéticos, mas os Estados Unidos invocaram-no para desencadear uma operação em larga escala no Afeganistão.

Em 2004, os talibãs foram considerados oficialmente derrotados e instalou-se em Cabul uma nova república, dirigida por uma marionete dos norte-americanos, Hamid Karzai.

A Al-Qaeda do Afeganistão foi pulverizada e Bin Laden abatido no Paquistão, em 2011.

Espalhada pelo mundo, graças ao seu sistema de células autônomas, reaparece noutros teatros de conflito, como no Iraque e na Síria. Aliás, está na origem, embora não tenha sido fundadora, do infame Estado Islâmico do Leste e do Levante, na Síria, em 2013. O chamado Daesh chegou a ter um território considerável, espalhado entre a Síria e o Iraque, e praticava barbaridades dum nível diferente dos talibãs, devido à mistura de islâmicos radicais com militantes ocidentais tecnologicamente mais desenvolvidos. Enquanto os talibãs no seu apogeu se limitavam a fuzilar, bater e brutalizar à antiga, o Daesh usava métodos sofisticados de torturar e matar as suas vítimas, tudo impecavelmente gravado em vídeos de propaganda. Mas isso é outra história.

Voltando aos talibãs: durante cerca de vinte anos fizeram uma guerra de atrito contra os ocidentais (não só norte-americanos, mas sob o comando e com os fundos dos norte-americanos); desapareciam aqui e apareciam ali, nunca vencedores, mas também nunca derrotados. Pensava-se, contudo, que os desenvolvimentos entretanto provocados na sociedade afegã, com centenas de milhares de mulheres a estudar, trabalhar e fazer uma vida normal, e com o desenvolvimento do comércio e das estruturas de uma sociedade civil contemporânea, nunca mais os talibãs poderiam voltar ao poder. Usando as suas bases no Paquistão – não existe fronteira real entre os dois países, como dissemos, e o governo paquistanês passou a protegê-los – conseguiam sempre dar prova de vida. Pensava-se que seriam cerca de 80 mil, enquanto o exército de Cabul, treinado e equipado pelos norte-americanos, tinha oficialmente 300 mil soldados.

A retirada dos ocidentais teria de acontecer um dia, com certeza. O presidente Trump, sempre prático, achava que era um mau negócio gastar trilhões sem contrapartidas. Em 2020, sem a presença do Governo de Cabul, agora dirigido por Ashraf Ghani, fez em Doha um acordo com o inimigo: os americanos sairiam este ano, desde que os talibãs não atacassem mais as tropas da Nato (apesar de majoritariamente americanas, ainda tinham contingentes de outros países da aliança invasora inicial).

Este acordo, se inevitável, provou ser fatal para a jovem república afegã. Era inevitável porque a guerra teria de acabar um dia e a vitória total seria impossível; mas também fatal porque desmotivou completamente os afegãos que contavam com o apoio norte-americano. Esse apoio, deve dizer-se, não era só militar e logístico, mas também financeiro, enchendo os bolsos dos dirigentes de Cabul.

É impossível, mas seria elucidativo saber, quanto dinheiro essa “elite” política afegã tem depositado na Suíça…

Quando começou a retirada das tropas ocidentais, os talibãs voltaram a descoberto e percebeu-se que durante os anos na clandestinidade tinham preparado tudo: não só mantendo as suas tropas prontas mas, sobretudo, comprando e intimidando as tropas governamentais. Segundo os vários relatos que se foram ouvindo, na maioria das capitais de distrito nem houve troca de tiros. Os militares de Cabul ou fugiram, ou se renderam, ou passaram imediatamente para o outro lado.

Levanta-se agora a questão ingênua de saber se os talibãs mudaram nestes vinte anos e agora usarão o poder com mais contenção. O novo porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid, que tem um aspecto são civilizado como tinha Hamid Karzai, deu uma conferência de imprensa em que fez grandes promessas de anistia, tratamento decente para as mulheres, e tudo mais que possa acalmar as alminhas inquietas. Mas quem conhece os talibãs, sabe que estas relações públicas, uma novidade, não vão ter qualquer resultado na prática. Faz lembrar um filme de Tim Burton, “Marte ataca!”, em que os marcianos andam pelas ruas com alto-falantes a gritar “somos vossos amigos, não vos queremos magoar!” ao mesmo tempo que pulverizam toda a gente.

Enquanto o Daesh se desfez e a Al-Qaeda faz ataques furtivos em Cabo Delgado, os talibãs reconquistaram o seu país e exibem os turbantes com pompa e circunstância. Até agora, neste século, são o grupo de patifes mais bem-sucedido. (José Couto Nogueira)

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