No auge da pandemia, sociedade civil se organiza contra fome

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.

Movimentos promovem campanhas para socorrer a população e criticam ausência do Estado

“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”, canta Caetano Veloso na canção Gente. De fato, o acesso à alimentação adequada é um direito humano básico, fundamental. Está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e é assegurado pela Constituição Brasileira.

No entanto, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro passado 10,3 milhões de pessoas não tinham acesso regular à alimentação no país. Isto é, passavam fome. E a situação se agravou ainda mais nos últimos meses, apontam especialistas, em meio ao recrudescimento da pandemia de Covid-19 e ao contexto de crise econômica.

Para José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil está de volta ao Mapa da Fome, de onde havia saído oficialmente em 2014. Isso significa que mais de 5% da população encontra-se em situação de insegurança alimentar grave, sem ingerir as calorias recomendadas para uma vida saudável e digna.

Em meio à pandemia, histórias tristes e pedidos de ajuda se multiplicam nas ruas, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Diante disso, a sociedade civil tem se organizado de diferentes formas para auxiliar a população. Dezenas de campanhas de arrecadação de alimentos, encabeçadas por diferentes entidades e organizações, estão em ação.

Auxílio cai, preço dos alimentos sobe

A suspensão do auxílio emergencial de R$ 600, pago pelo governo federal de abril a dezembro de 2020, gerou efeitos enormes na população em situação de vulnerabilidade social. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) projeta que em agosto de 2020 – com o auxílio – 9,5 milhões de brasileiros (4,5% da população) viviam na extrema pobreza. Em fevereiro de 2021, o número aumentou para 27 milhões de pessoas (12,2% da população). Viver na extrema pobreza significa sobreviver com R$ 246 por mês (R$ 8,20 por dia).

A partir de abril, o auxílio emergencial voltará a ser depositado por quatro meses, mas com valores menores: R$ 150 para famílias de uma pessoa só, R$ 250 para famílias de 2 pessoas ou mais, ou R$ 375 no caso de mães solteiras.

Além da interrupção e redução do auxílio, dados do IBGE mostram que o preço dos alimentos teve um aumento de mais de 15% nos 12 meses desde o início da pandemia. O número é quase o triplo da inflação, que foi de 5,2% no mesmo período.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que a cesta básica ficou mais cara em todas as capitais em 2020. Com base na cesta mais cara de janeiro de 2021, a de São Paulo, o Dieese indica que uma família de quatro pessoas – dois adultos e duas crianças – precisaria de um salário mínimo de R$ 5.495,52. Isso corresponde a cinco vezes o valor do salário mínimo atual, que é de R$ 1.100.

Ainda segundo o IBGE, a taxa de desemprego atual é de 14,2%, a maior registrada na série histórica, iniciada em 2012. São cerca de 14,3 milhões de desempregados. É nesse contexto que os movimentos sociais têm se organizado.

‘As pessoas estão desesperadas’

“Não tem nada mais cruel do que a fome. Porque com fome você não pensa, não age, você não consegue de fato sair daquela condição”, diz o cientista político Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos. A organização composta por mais de 200 entidades ligadas ao movimento negro lançou, em março, a campanha Tem Gente Com Fome. Em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, entre outras, a Coalizão quer atender mais de 222 mil famílias em todos os estados do país.

“Cotidianamente eu recebo mensagens dizendo ‘Olha, não precisa nem ser uma cesta básica, pode ser um arroz, um fubá’. As pessoas estão desesperadas por coisas mínimas”, diz Souza. A campanha, que se sustenta através de financiamento coletivo, já arrecadou cerca de R$ 5 milhões. Mas o cientista político alerta: “É muito pouco diante da demanda que temos. Com R$ 5 milhões conseguimos atingir pouco mais de 30 mil das 222 mil famílias”.

Outra iniciativa que teve início em março é a Cozinha Solidária, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O MTST pretende inaugurar, até o fim de abril, 16 cozinhas comunitárias em 11 estados do Brasil. Quatro já foram abertas. Cada cozinha oferece gratuitamente ao menos uma refeição todos os dias. A quantidade de porções diárias, que gira em torno de 150 a 300, varia em cada estado. A iniciativa também é mantida através de financiamento coletivo.

Danilo Pereira, da coordenação nacional do MTST, diz que a maioria das pessoas atendidas pelas cozinhas são trabalhadores informais, como camelôs e ambulantes. “Já teve casos de desmaio na fila porque a pessoa chega em uma situação sem alimentação há muito tempo, no calor, pessoas vindo de outros municípios”, relata. Apesar de a iniciativa estar estruturada, a previsão não é boa: “A nossa previsão, e espero que não esteja correta, é que na ausência do auxílio emergencial ou com esse valor reduzido, nos próximos meses tenhamos um quadro igual ou pior ao do ano passado”.

Dezenas de outras organizações também estão promovendo campanhas pelo país, como a Ação da Cidadania, A Cufa (Central Única de Favelas), G10 Favelas e o Banco de Alimentos. As entidades destacam que as doações diminuíram em relação ao início da pandemia. “Temos tido uma demanda muito maior e uma diminuição das doações”, explica Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos.

“A situação me deixa muito angustiada, triste. Eu tenho que fazer alguma coisa”, conta a professora aposentada Palma Orofino d’Ávila, de Porto Alegre, que tem contribuído com algumas iniciativas. A aposentada vê e sente os efeitos da crise econômica. “As pessoas estão mais pobres, e os alimentos estão mais caros. A conta não fecha, né? Não dá. Por isso a fome está aí”, diz.

O papel do Estado

Mesmo levando ajuda a milhares de brasileiros, os movimentos sociais apontam que a responsabilidade não deveria ser deles. “A gente assume essa responsabilidade porque a gente tem uma consciência coletiva. E porque senão nós, quem? É uma imoralidade que a gente esteja voltando a pedir uma coisa básica, que é um arroz e feijão”, afirma Seimour.

“Apesar de muito importantes, as mobilizações da sociedade civil não têm o mesmo alcance do Estado. A gente tem que louvar, mas essas iniciativas têm um papel de colchão de amortecimento”, diz Sergio Schneider, professor de desenvolvimento rural e sistemas alimentares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele ressalta que a segurança alimentar da população deve ser promovida através de políticas públicas. “E não é uma política de governo, é uma política de Estado”.

O cenário é paradoxal, pois mesmo estando entre os maiores produtores de alimentos do mundo, o país tem 10,3 milhões de pessoas sem ter o que comer. Schneider aponta que agronegócio é estratégico para a geração de divisas para a exportação, mas não tem cumprido o seu papel na garantia da segurança alimentar da população. “É uma grave falha. Pode até ter comida na prateleira do supermercado, mas o preço é proibitivo”.

Ele destaca ainda que, em um cenário de crise, o poder público tem a responsabilidade de agir. “O Estado precisa fazer políticas de segurança alimentar. Tem que fazer esse alimento chegar ao povo”, defende.

Danilo Pereira, do MTST, resume o cenário que o movimento tem encontrado: “Quem está no território sente na pele essa ausência do Estado no que diz respeito à garantia das condições básicas de vida. Nessas emergências, o movimento social está lá, tanto para ajudar no problema imediato, quanto para cobrar soluções.”

Desmantelamento de políticas públicas

Para Schneider, há um desmantelamento das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar no Brasil nos últimos anos. “O que o governo faz quando não quer que as políticas sejam executadas? Não aloca orçamento e não aloca pessoal. É uma tática de desconstrução intencional e organizada”, afirma.

Ele cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 como parte de um sistema de políticas públicas de segurança alimentar. “O PAA era um programa que tinha um orçamento muito expressivo e agora tem um orçamento baixíssimo”, diz.

No âmbito do PAA, alimentos produzidos pela agricultura familiar são comprados e destinados a pessoas em situação de insegurança alimentar, a restaurantes populares, à formação de estoques de alimentos e às redes de ensino e socioassistenciais. Em 2012, o orçamento do programa chegou a R$ 1,2 bilhão. Já em 2018 foram aplicados R$ 253 milhões, seguidos de apenas R$188 milhões em 2019: menos de um sexto do valor de 2012. Em 2020, houve um acréscimo com relação ao ano anterior para ações emergenciais devido à pandemia, e o orçamento foi de R$220 milhões.

Schneider também critica a falta de ação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – um dos mais conceituados do mundo – em acionar as cozinhas das escolas durante a pandemia, com ações organizadas, para alimentar famílias. “Nós não tivemos nenhuma ação dos responsáveis pelo PNAE, e os contratos de fornecimento dos alimentos estavam lá”, diz. “Vejo uma falta de interesse, uma desarticulação dessas políticas alimentares. Isso resulta, junto com a pandemia e a estagnação da economia, no recrudescimento da fome”, conclui.

Por enquanto, movimentos como o MTST e a Coalizão Negra Por Direitos continuam com as campanhas, arrecadando recursos e buscando ajudar o máximo de pessoas possível. Mas, nas palavras de Danilo Pereira, do MTST, o desejo a longo prazo é: “Chegar em um momento em que a gente não precise mais fazer isso, que o governo consiga implementar uma política de combate à fome efetiva, que chegue a todos os lugares, contemple uma alimentação saudável, como a gente já chegou perto no Brasil, em um passado recente”.

DW – Brasil

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