Para muitos negócios, a pandemia é uma aflição. Para um número incontável de trabalhadores, significa redução de salário e incerteza quanto ao futuro. Mas, para a minoria que detém a maioria do dinheiro, os chamados bilionários, está tudo correndo lindamente.
No nosso idioma, o bilião, ou bilhão, é um neologismo, importado duma má tradução da língua inglesa. Um “billion” são mil milhões, como se diz em Portugal, e não dois milhões, ou um milhão de milhões. Portanto, um bilionário é alguém que tem um valor de mil milhões de dólares, a moeda internacional de referência. Esse montante pode ser de capital, rendimento ou ambos. Diz-se que uma pessoa “vale” bilhões, o que não quer dizer que os tenha no cofre ou no banco, ou que possa gastá-los em compras; em economês, tem “ativos”, o que é diferente de liquidez.
Com o tempo, o termo “bilionário” passou a significar estupidamente rico, seja qual for a solvência do nababo. A maneira de fazer o cálculo varia, mas há pessoas que são bilionárias em qualquer tabela. Evidentemente, são muito poucas; os famosos “um por cento”, detinham em 2017 mais de metade da riqueza do mundo. Numa estatística semelhante, os 10% mais ricos possuem 85% dessa riqueza e os outros 90% ficam com os 15% restantes. Se considerarmos os 30% mais abonados, têm para si 97% do bolo total.
Que a situação é assim, já todos sabíamos há muito tempo. A novidade é que num ano de grande crise, 2020, essa diferença obscena aumentou ainda mais; segundo a Oxfam, citada pelo site “Inequality.org”, entre março e dezembro de 2020, a riqueza dos bilionários registou um incremento de 3,9 trilhões de dólares, enquanto os rendimentos dos trabalhadores caíram 3,7 trilhões.
A revista “Forbes” uma referência incontornável quando se fala de dinheiro, publica uma lista anual de bilionários que nos revela em maior detalhe a situação em 2021. Em relação ao ano passado, há mais 660 bilionários, totalizando 2.755. Juntos, valem 13,1 trilhões de dólares, mais oito trilhões do que em 2020.
(Só para termos uma ideia: um trilhão são 1.000.000.000.000 de dólares. Doze zeros.)
Com o crescimento “natural” da economia, todos os anos o número de pessoas e o seu valor global aumenta, exceto nos períodos de crise. Ora, este ano, a crise teve a característica inovadora de ser favorável aos mais favorecidos. Alguns casos são evidentes, como o do homem mais rico do mundo, Jeff Bezzos, que beneficiou do aumento exponencial das compras online. No ano passado valia 64 biliões, este ano, já vale 177, ou seja, quase o triplo.
Já é mais difícil compreender como é que Elon Musk, o espalhafatoso dono da Tesla, subiu que nem um dos seus foguetes Spacex, para o segundo lugar da lista, com 151 bilhões, mais 126 do que no ano passado. Não se venderam assim muito mais carros, nem o sucesso dos lançamentos espaciais dá lucro; o crescimento tem a ver com um dos mistérios do sistema capitalista, a valorização em bolsa.
Mas não se pense que são só os americanos, esses capitalistas/imperialistas impenitentes, que ganharam aos montes no meio das lojas fechadas e espetáculos cancelados. O francês Bernard Arnauld, dono do maior conglomerado de marcas de luxo do mundo, a LVMH (Louis Vuitton/Moët Chandon/Hennessy e mais outras, como a Christian Dior e a Sephora), viu a sua fortuna duplicar. Como, se ninguém compra nada de luxo há 18 meses? Mais uma vez, é a alquimia da bolsa funcionando.
Para falar de alguma coisa menos irritante, podemos dizer que a lista deste ano é mais inclusiva; aumentaram as mulheres e as etnias. O número de bilionários chineses aumentou muito, como seria de esperar, embora ainda sejam menos do que os norte-americanos. A Índia também já está em terceiro lugar, o que quer dizer que, num país com mais de um bilhões de esfomeados, há 140 de barriga cheia.
Na Rússia, onde os bilionários se chamam oligarcas, há 117 deles, o que não inclui Putin, evidentemente, que ganha um mísero salário de funcionário público. (Sim, porque a lista da Forbes, recorrendo a indicadores oficiais, não inclui os bilionários do tráfico, os grandes investidores nos bancos do Panamá, a corrupção e o rendimentos “abaixo do radar”).
O que concluir deste súbito crescimento de pessoas que não precisam de se preocupar com a conta bancária? Não vale a pena vir com os males do capitalismo; todos os países são capitalistas, apenas há alguns em que o Estado é o detentor do capital. Alguns serão desonestos, mas outros, como Bezzos, precisamente, ou Mark Zukerberg, ficaram ricos porque tiveram uma ideia genial e ninguém está disposto a abdicar dos seus serviços.
Também não vale a pena avançar que os bilionários são responsáveis pelo sistema. Não o inventaram, apenas o sabem usar melhor do que o comum dos mortais. E a maioria nem sequer nasceu num meio privilegiado, tiveram de trabalhar para lá chegar.
A perversão não está no fato de haver ricos, mas sim de existirem pobres.
A questão mais geral é a equação apresentada pelo economista Thomas Piketty, de que nos fartamos de falar nesta coluna: os rendimentos do capital crescem mais do que o PIB, portanto a distribuição de riqueza tende a ser cada vez mais desigual.
Mas o que dizer, especificamente, desta inflação de bilionários num ano de contenção geral? Que a economia tem humor pernóstico, certamente. Que a desgraça de uns favorece sempre outros. Só que são sempre os mesmos outros. Sabe-se que dinheiro gera dinheiro. Quanto mais dinheiro se tem, mais hipóteses de fazê-lo crescer. Porque há capital para investir e informação obtida em meios privilegiados que permite riscos calculados com retorno proporcional.
Nestes dias em que nos questionamos sobre justiça, ocorre pensar que, pelo menos na saúde, todos somos iguais. Só que nem isso.
Disse a personagem de Louis de Funès, cobrador de impostos no filme La folie des grandeurs (A mania das grandezas): “é normal: uns nasceram para ser ricos, outros para serem pobres”.
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