Desde agosto, atos de protesto estão sendo convocados para 15 e 20 de novembro. Um coletivo recém-formado e um jovem teatrólogo e ator destacam-se na convocatória. Mas o que querem os manifestantes; e em que situação vive hoje a ilha?
Quem convoca os atos são grupos internos e externos à ilha. Entre os internos, destaca-se o coletivo Archipiélago, recém formado como um desdobramento do Manifesto 27N, de artistas e trabalhadores da cultura que criticam os decretos 349 e 371. Tais decretos foram aprovados em 2019 com objetivo de regulamentar a atividade “cuentapropista” de artistas e jornalistas independentes, mas despertaram uma onda de críticas vindas de setores precarizados desses profissionais. O governo foi acusado de censura pelo movimento, que enfrentou os decretos (especialmente o 349), por este exigir a aprovação do ministério da Cultura como requisito para se regulamentar o trabalho por conta própria de artistas de rua, e (no caso do 371) por coibir blogs e portais independentes com servidores alocados fora do país. Se por um lado o movimento San Isidro, que surgiu da mesma crítica, desenvolveu um discurso anticomunista; o Manifesto 27N pareceu inicialmente criar uma estratégia alternativa, declarando que atuava dentro dos limites da Constituição de 2019 – ou seja, dentro do conceito constitucional de que Cuba é “irrevogavelmente socialista” e suas implicações.
Vindo da mobilização do Manifesto 27N, o principal líder do Archipielago é um jovem até pouco tempo desconhecido, que alcançou um meteórico protagonismo individual: o ator e teatrólogo Yunior García Aguillera. Meteóricos protagonismos individuais sempre merecem atenção, ainda mais nesse caso. Yunior tem sido porta voz do Archipielago e feito muitas declarações à imprensa internacional sobre a necessidade de expandir e defender os direitos políticos dos cubanos. Tem conquistado popularidade nas redes sociais, como um jovem crítico, articulado e inteligente.
Por outro lado, é acusado pelo governo de receber financiamento de grupos imperialistas que convocam os mesmos protestos. Na verdade, são mais que acusações: o governo e o Partido Comunista já publicizaram algumas evidências de conexões suspeitas, incluindo telefonemas de Yunior García com líderes de grupos cubano-americanos de trajetória golpista, como Ramón Saúl Sánchez (agitador da Organización para Liberación de Cuba, do Movimiento Democracia, em Miami, e outras iniciativas consideradas terroristas pelo governo cubano).
Entre as forças externas que convocam o chamado “paro nacional” em Cuba estão grupos cubano-americanos anticomunistas, atrelados a aparelhos público-privados de hegemonia criados pela CIA, como o NED (National Endowment for Democracy), CADAL (Centro para la Apertura y el Desarrollo de América Latina) e o NDRI (Network of Democracy Research Institutes). Além de Ramón Saúl Sánchez, outro dos agitadores entusiastas desses atos em Miami é Orlando Gutiérrez-Boronat, líder da Assembly of the Cuban Resistance (coalizão de grupos anticomunistas dentro e fora de Cuba). O círculo de agitação contrarrevolucionária de Gutiérrez Boronat na Flórida já tem mais de três décadas e pode ser facilmente encontrado com uma breve pesquisa no Google e Youtube.
Entre os convocadores do “paro nacional” está também uma articulação anticomunista externa/interna à ilha consolidada em junho de 2021, sob um guarda-chuva chamado Consejo para la Transición Democrática en Cuba (CTDC). A criação desse grupo unificou a ação anticomunista em torno de uma plataforma programática que inclui: um plano especial para compensação pelas expropriações do período revolucionário; taxas de juros de mercado; câmbio flutuante e flexível; e cujo declarado objetivo é “converter Cuba a uma economia de mercado na qual o setor privado, as empresas de titularidade privada, sejam o eixo da economia”. Ou seja, neoliberalismo como estratégia de contrarrevolução.
O que é, então, esse “paro nacional”? É o que parece ser? Tudo indica que é um movimento predominantemente anticomunista, financiado de fora pra dentro da ilha, cujo objetivo é o confronto com o sistema econômico estatal e a cultura política coletivista da revolução cubana. Aproveitam-se do caldo de insatisfação popular que se tornou mais visível nos protestos de 11 de julho (sobre a heterogeneidade do 11J, ver esse ensaio) e aproveitam-se também da legitimidade relativa de reivindicações do Manifesto 27N, relacionadas com os decretos 349 e 371 – que cerceiam a independência de atuação profissional plena no campo da cultura e da imprensa, ao executar a regulamentação “cuentapropista”.
O coletivo Archipielago, por meio do seu porta voz Yunior García, reivindica o direito constitucional ao protesto. Referem-se aos artigos 54 da Constituição de 2019, que assegura a liberdade de expressão; ao artigo 55, que garante liberdade de imprensa; e ao artigo 56, que diz: “os direitos de reunião, manifestação e associação, com fim lícitos e pacíficos, são reconhecidos pelo Estado sempre que exercidos com respeito à ordem pública e aos preceitos estabelecidos na lei”.
O Estado cubano e o Partido Comunista, contudo, alegam que Archipielago e Yunior Garcia mobilizam os artigos 54, 55 e 56 de maneira oportunista e enviesada, pois suas reais intenções coincidiriam com os grupos que o financiam, abertamente anticomunistas, e logo inconstitucionais. Para eles, por óbvio, nenhum dos artigos é válido.
Afinal, o Archipielago está dentro ou fora da Constituição socialista de Cuba? A julgar por seus aliados externos, estão fora. A julgar pelo seu discurso sobre direitos sociais e políticos coletivos, permanecem na fronteira da ambiguidade.
Em síntese, minha hipótese é que o “paro nacional” dessa semana, convocado para os dias 15 e 20 de novembro, é um desdobramento direitista do 11J. A heterogeneidade e a espontaneidade do que ocorreu em julho parece ter sido substituída por planejamento, financiamento externo e uma linha política mais homogênea: antigovernista, com objetivo de derrubar o governo – e consequentemente, o partido comunista. O mais provável é que sejam protestos menos populares e mais confrontativos. Serão reprimidos com rapidez pelo governo, pois foram desautorizados. Ou melhor, já estão sendo desativados pelos sistemas de inteligência há meses. Quanto mais intensa for a repressão física, porém, mais o discurso dos manifestantes pode ser favorecido.
Não faltam dificuldades na lida diária dos cubanos, devido ao acirramento do bloqueio por Trump e Biden, às dificuldades causadas pela pandemia e aos desajustes da política de Tarea Ordenamiento (que acelerou uma inflação galopante, corroedora do bem estar social). Mas a embocadura desse “paro nacional” em novembro está orientada para desestabilização política, e não para solução dos problemas cotidianos, populares e concretos. Mesmo que existam causas justas a serem reivindicadas por dentro da Constituição cubana, problemas econômicos do cotidiano popular que precisam ser resolvidos com rapidez e melhorias necessárias no modelo socialista cubano, a palavra de ordem que se escuta mais alto na convocatória ao “paro” é “abaixo o comunismo”. Por isso, não nos confundamos.
por Joana Salém Vasconcelos para a coluna Geografia & Guerra | Outras Palavras