Reavaliação da Lei de Cotas e democratização do ensino superior público: o que está em jogo atualmente no Brasil?

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
É essencial ressaltar que a Lei de Cotas, por si só, representa um grande avanço na luta contra o racismo e é amplamente avaliada, seja pelos dados referentes à autodeclaração de raça e cor dos(as) estudantes, seja por pesquisas acadêmicas com estudos de caso em universidades de todo país, como um política bem sucedida que possibilita a mudança no perfil discente universitário brasileiro

Nos anos iniciais da primeira década do século XXI algumas instituições de Ensino Superior, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), implantaram, de forma autônoma, o sistema de reserva de vagas para as minorias étnico-raciais em seus processos seletivos, tornando-se as primeiras universidades do país a adotarem tal tipo de política. Desse modo, tais experiências intensificariam o debate sobre a necessidade de existir uma política afirmativa a nível federal para o acesso das camadas populares ao ensino superior. O debate, de tom político e público, foi iniciado nas últimas décadas do século XX, protagonizado a partir da luta social do movimento negro, de outros movimentos sociais, dos diretórios e movimentos estudantis e de grupos acadêmicos formados por professores(as). 

Nesse contexto, a Lei Federal nº 12.711/2012, popularmente conhecida como a Lei de Cotas, representou uma vitória a nível nacional, expressão da luta popular por uma política afirmativa voltada para inserção no ensino superior público e gratuito de estudantes advindos de escolas públicas, de pessoas negras, indígenas, de baixa renda e com deficiência, historicamente excluídas do espaço universitário. 

A referida Lei, em seu artigo 7º, o processo de reavaliação da política pública no ano de 2022, todavia, existem projetos de lei em trâmite no Senado, apresentado pelo senador Paulo Paim (PT-RS) e na Câmara de Deputados, de autoria do deputado deputado Bira do Pindaré (PSB-MA),  que objetivam adiar tal processo de reavaliação, ou torná-lo periódico, a cada 10 anos, a fim de evitar uma eventual extinção da referida política, considerando os atuais retrocessos oriundos da política de desmonte orquestrada pelo bolsonarismo. Assim, tendo em vista o atual cenário político que o país está vivenciando, com ameaças aos direitos sociais e retrocessos em políticas públicas essenciais para minimização de desigualdades e violação de direitos das populações vulneráveis, se faz necessário atentar para os projetos (e o projeto mais amplo) em trânsito no Congresso Nacional. 

Por outro lado, é essencial ressaltar que a Lei de Cotas, por si só, representa um grande avanço na luta contra o racismo e é amplamente avaliada, seja pelos dados referentes à autodeclaração de raça e cor dos(as) estudantes, seja por pesquisas acadêmicas com estudos de caso em universidades de todo país, como um política bem sucedida que possibilita a mudança no perfil discente universitário brasileiro. Se antes da implementação da reserva de vagas para os grupos sociais minoritários tinha-se um perfil majoritariamente branco e elitista, após a política de cotas e uma série de outras políticas públicas, como a de expansão e interiorização das universidades federais, o público universitário passou e está passando por um amplo processo de diversificaçãoem que negros, pobres, periféricos, indígenas e deficientes fazem parte do perfil discente

É um processo de mudança que pode ser compreendido como uma ‘revolução silenciosa’, já que, na medida em que este público conclui o ensino superior, tal perfil, diverso e plural, poderá ocupar outros espaços de poder, através do exercício profissional. Assim, cada vez mais, será comum contarmos com professores(as), médicos(os), engenheiros(as), advogados(as), promotores(as), juízes(as), pesquisadores(as) e tantos(as) outros(as) profissionais negros(as), oriundos(as) da escola pública, de origem pobre e periférica, indígenas e com deficiência. 

A continuidade da política de cotas não resultará, tão-somente, em uma única história de superação, de um único médico negro em um grande hospital, de uma única juíza negra em um tribunal de justiça, de um único engenheiro indígena em uma respeitada construtora, implicará, aos poucos, em uma maior diversidade no quadro profissional que, por sua vez, refletirá na pluralidade e representatividade do povo brasileiro em espaços hegemônicos, não mais como uma exceção ao perfil majoritário, mas enquanto caminho para a equidade social. 

Todavia, a referida pluralidade profissional será imprescindível à continuidade e ao aprimoramento de ações transversais de fortalecimento da política de cotas. A inserção das camadas populares no espaço universitário é responsável pela ampliação de uma série de discussões voltadas para a permanência de estudantes cotista, quanto à necessidade de apoio estudantil, através da oferta de bolsas de pesquisa e de extensão, que propiciam condições financeiras para que o(a) aluno(a) não abandone a graduação, devido à necessidade de trabalhar para manter-se. 

Além disso, a ampliação das atividades de pesquisa e extensão, em todas as áreas de conhecimento, é uma das contribuições decisivas da universidade pública para com a sociedade. Outras questões como a elitização dos horários das graduações, o perfil docente, a valorização das pesquisas não experimentais, a consideração da diversidade temática nas matrizes curriculares dos cursos e as cotas nos programas de pós-graduação também compõem as discussões gestadas pela revolução silenciosa em andamento. 

Infelizmente, diante do atual cenário, o debate sobre o aprimoramento da política de cotas, voltado às  necessidades destacadas anteriormente, que envolvem não apenas o acesso, mas também a permanência do(a) estudante cotista, é contestado por discursos vazios e de esvaziamento das políticas afirmativas. É necessário, pois, criar uma frente ampla em defesa da universidade pública, em prol do fortalecimento da política de cotas e contrária aos cortes sucessivos de recursos financeiros destinados às instituições de ensino e às atividades de pesquisa e extensão. 

O cenário atual de temor e de recrudescimento deve ser enfrentado a fim evitar o aprofundamento de retrocessos, para possibilitar que a ‘revolução silenciosa’ continue a acontecer e a tão almejada democratização do ensino superior público e gratuito seja realidade e política de Estado, e não apenas pauta de luta dos movimentos sociais e acadêmicos(as), como fora nas últimas décadas.

FONTE: Por Lucas Manoel da Silva Couto e Fernando da Silva Cardoso, enviado ao Portal Geledés

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