Se, inicialmente, a Bitcoin recebeu o apoio de quem criticava os “banqueiros gananciosos”, parece evidente, passada mais de uma década, que a tecnologia blockchain irá contribuir para fortalecer os mercados financeiros, renovando a confiança dos grandes investidores e trazendo para a sua mesa novas possibilidades de liquidez e de lucro.
Por Inês Faria
Desde o seu aparecimento, com a entrada em circulação da famigerada Bitcoin, que a tecnologia blockchain tem sido adaptada a uma série de funções, alimentando o sonho de um sistema financeiro descentralizado. Se o mundo digital pré-blockchain não oferecia segurança suficiente para movimentar valor sem ser por intermédio do sistema bancário, este novo protocolo computacional tornou possível efetuar operações na internet sem a mediação de instituições financeiras, realizando-as de forma segura, a partir de redes peer-to-peer que permitem que a informação guardada se torne publicamente acessível e de uma criptografia que garante, pelo menos em teoria, a inviolabilidade dessa informação.
Não é de estranhar, portanto, que muitas pessoas tenham aderido a esta nova tecnologia com o desejo de abandonarem o sistema financeiro convencional, nem que governos e reguladores tenham propalado os seus avisos contra os perigos do blockchain. Aos poucos, porém, o cenário começou a mudar. Sem dúvida que a narrativa que retrata a finança descentralizada como “subversiva” e “perigosa” continua presente, mas é tempo de analisá-la e refletir sobre as promessas e desconfianças suscitadas por um dos fenómenos mais marcantes da finança global pós-2008.
Desde 2010 que se assiste a uma proliferação de projetos ancorados na blockchain, acumulando investimentos astronômicos: em junho de 2021 circulavam 93 biliões só em ativos de plataformas de finança descentralizada. Para além da Bitcoin, surgiram milhares de outras criptomoedas, enquanto os movimentos especulativos em torno da volatilidade dos seus preços iam aumentando. Paralelamente, verificou-se uma intensificação das conversações entre atores privados e autoridades de supervisão financeira, com o propósito de regularizar iniciativas que pretendiam utilizar a blockchain para criar novos mercados.
Tendo em conta que esta nova tecnologia surgiu na conjuntura que se seguiu à última grande crise financeira, desde o início que o Banco Central Europeu e outras autoridades de supervisão manifestaram um cuidado particular com as experiências feitas em torno da blockchain. Entre os receios das instituições reguladoras conta-se a alegada instabilidade do valor das criptomoedas quando comparado com o valor das moedas oficiais, o qual se encontra protegido pela ação dos bancos centrais e da capacidade tributária dos Estados (de onde as propostas de alterações terminológicas que implicam a substituição do termo “criptomoeda” por “moeda digital” ou “criptoativo”, e de blockchain por distributed ledger technology).
Um segundo receio diz respeito à ausência de uma supervisão oficial que faz com que a blockchain se preste a servir mercados ilícitos e movimentações anônimas, mimetizando o fenômeno das contas offshore e facilitando a lavagem de dinheiro (como aliás aconteceu recentemente a propósito da Operação Miríade). Enfim, uma terceira preocupação tem a ver com o “vazio” tecnológico que dificulta a conexão da finança descentralizada com o mundo offchain, isto é, o mundo das moedas oficiais, da banca de retalho, da legislação e das instituições do Estado de direito.
Sem pretender descurar a relevância destas inquietações, a verdade é que qualquer uma delas poderia – qual feitiço que se vira contra o feiticeiro – aplicar-se ao sistema financeiro globalizado e hipertrofiado que tem vindo a ser construído desde os anos 1970 por agentes de mercado e reguladores provenientes das economias mais avançadas. Trata-se de um sistema onde o valor da moeda se despegou definitivamente de qualquer agente exterior minimamente estável, dispondo os bancos comerciais de uma margem de manobra apreciável para criarem dinheiro contabilisticamente com base na abertura de depósitos para fins de concessão de novos créditos.
Ao mesmo tempo, estamos perante um sistema impossível de controlar a partir de qualquer autoridade central, podendo apenas ser “supervisionado” à distância e cabendo aos reguladores negociar parâmetros que, frequentemente, acabam por impulsionar práticas de mercado potencialmente disruptivas (foi o que se passou, por exemplo, com as medidas de colateralização adotadas pelo Banco Central Europeu no período que antecedeu a crise de 2008). Em consequência, o panorama regulatório tem vindo a complexificar-se exponencialmente – o que, longe de significar um maior controle, atesta precisamente a extraordinária capacidade do sistema financeiro para se desdobrar e refundir através de práticas como a arbitragem, o shadow banking ou as contas offshore.
Tudo se passa como se, transcorrida a fase do temor inicial, em que as pessoas foram insistentemente alertadas para não investirem em Bitcoin e se manterem afastadas da blockchain, se tivesse entrado na fase da redenção, a qual foi cuidadosamente preparada por um conjunto de grandes bancos internacionais, fundos de investimento e reguladores
Porquê tanto empenho, então, em criticar a instabilidade do valor das criptomoedas e a indefinição regulatória dos mercados onde essas moedas operam? A quem interessa, realmente, a existência de ativos altamente voláteis e a possibilidade de movimentar valor de forma anônima? A resposta a estas questões é, em nosso entender, óbvia: mais do que servir para alavancar projetos supostamente “revolucionários” ou de contribuir para democratizar as finanças, tais características espelham os interesses de atores financeiros da “velha guarda” que, ao verem as suas práticas cada vez mais escrutinadas no espaço público, tentam agora expandi-las para novos territórios, necessitando para isso do beneplácito dos reguladores. Daí que, a par das experiências dos bancos centrais em torno da criação das suas próprias moedas digitais, o momento atual coincida com a autorização do acesso ao mundo da finança descentralizada por parte de megabancos de investimento como o Goldman Sachs, o Morgan Stanley, o Citigroup ou o JP Morgan, bem como de gigantes tecnológicos como a Tesla, a Amazon, a Google ou o Facebook, e até de Estados que se mostram disponíveis para aceitar a Bitcoin como moeda oficial.
Tudo se passa como se, transcorrida a fase do temor inicial, em que as pessoas foram insistentemente alertadas para não investirem em Bitcoin e se manterem afastadas da blockchain, se tivesse entrado na fase da redenção, a qual foi cuidadosamente preparada por um grupo de grandes bancos internacionais, fundos de investimento e reguladores. Através da mobilização de narrativas que legitimam a exploração da blockchain em termos de segurança, transparência e agilização de operações convencionais, percebemos que a mesma tecnologia que foi desaconselhada a pequenos investidores está prestes a ser absorvida pelas instituições too big to fail. Em suma, se a Bitcoin começou por angariar o apoio de quem criticava os “banqueiros gananciosos” e o papel destes na crise de 2008, parece evidente, passada mais de uma década, que a tecnologia blockchain acabará por contribuir para fortalecer os mercados financeiros, renovando a confiança dos grandes investidores e trazendo para a sua mesa novas possibilidades de liquidez e de lucro.
Inês Faria é antropóloga e investigadora do SOCIUS/CSG. Tem trabalhado sobre temas relacionados com saúde, tecnologia e fintech.
Sandra Faustino é investigadora do SOCIUS/CSG, estando a concluir o doutoramento em sociologia económica e das organizações, com uma tese sobre sociologia da finança.
Daniel Seabra Lopes é antropólogo, investigador do SOCIUS/CSG e professor do ISEG. A sua pesquisa incide sobre instituições financeiras e judiciais.