Propaga-se a visão de que, frente ao monumental fluxo de dados de hoje, os algoritmos seriam cruciais para planejar o ensino. Mas uma Educação libertadora exige inquietude – e desafiar os consensos da Big Tech, sem cair em tecnofobias
Durante o último século o principal debate curricular esteve nos processos de seleção e organização dos conhecimentos e experiências escolares. O processo de tomada de decisão deveria estar situado no polo das disciplinas escolares, em sua solidez epistemológica e potencialidade para explicar o mundo, ou deveria estar nos sujeitos educativos e em seu universo cultural? Em torno deste debate acumulamos embates acadêmicos e controvérsias político-pedagógicas, embates fundamentais para que pudéssemos avançar na ressignificação das funções públicas da escolarização. As políticas curriculares da atualidade tomam como parâmetros para suas definições estes aspectos e, com maior ou menor intensidade, têm mobilizado novas inquietações na busca pela ambicionada multidimensionalidade formativa e do enfrentamento de nossas desigualdades educacionais.
A quem cabe a tarefa de definir o conhecimento a ser ensinado? Quem define um conhecimento como legítimo para ingressar no currículo de nossas instituições? As teorizações críticas, desde a década de 1970, têm nos auxiliado a produzir reflexões em torno dessas perguntas e, mais do que isso, favoreceram com que estes questionamentos fossem permanentemente revisitados. Ou seja, a cada período precisamos renovar estas perguntas para nos mantermos vigilantes com relação aos desafios emergentes de nosso tempo. Neste início de século XXI, precisaremos reingressar neste debate quando a definição do que conta como conhecimento não passará mais pela disciplinarização ou pelas escolhas subjetivas dos estudantes, mas pela mediação de algoritmos. A escola 4.0, atravessada pelas nuances variadas da digitalização da vida, oferece-nos como cenário uma “algoritmização curricular”.
Não resta dúvidas de que nossas sociedades produziram significativos avanços nas últimas décadas, particularmente no que se refere às tecnologias que favorecem a utilização de dados e informações capazes de qualificar a existência humana. Tais tecnologias trouxeram inúmeras possibilidades ligadas ao prolongamento da vida humana e à cura de doenças, promoveram verdadeiras revoluções nas formas de transporte e de comunicação e, talvez a mais importante dimensão, prolongaram nossas capacidades da direção de acumular conhecimentos que ampliam nossa interpretação do mundo. Por meio de tais dados, nomeados na literatura especializada como Big Data, conseguimos coletar e analisar, em alta velocidade, grandes conjuntos de informações. As tecnologias nos ofereceram um processamento cada vez mais rápido, por meio de algoritmos eficientes. A eficiência no manejo destes dados, inclusive, permite uma intensificação no retorno financeiro das organizações.
O que acontece quando o Big Data ingressa no planejamento educacional? São inúmeras as empresas, grupos de assessorias especializadas e fundações públicas e privadas que têm apregoado o potencial deste recurso para qualificar a oferta educacional. Pelo menos três justificativas têm sido levantadas para a mobilização dos algoritmos na organização pedagógica de uma rede de ensino. A primeira justificativa encontra-se nas possibilidades de monitorar e acompanhar o desenvolvimento dos estudantes. Seria possível identificar as dificuldades dos estudantes e propor planejamentos individuais. Em decorrência deste ponto, outra justificativa encontra-se nas demandas por personalização. Ou seja, torna-se possível traçar um perfil completo dos estudantes, compreendendo aspectos de sua trajetória, mas também seus gostos, preferências, opiniões, postagens recentes, etc. A terceira justificativa, cada vez mais utilizada por empresas especializadas, vincula-se às potencialidades para a promoção do desenvolvimento integral dos estudantes. A ambição pedagógica da Modernidade, a multidimensionalidade formativa, somente seria possível por meio de dados consolidados de cada estudante. A escola do futuro – do século XXI – seria aquela capaz de manejar os dados dos estudantes para mapear seu percurso, selecionar suas experiências e definir as rotas para a sua formação integral. A este conjunto de elementos que estou nomeando como algoritmização curricular.
O uso destes dados e manejo de estratégias algorítmicas para compreender e intervir em nossas vidas apresenta aspectos positivos. Na condição de pedagogo tenho estreitado o diálogo com algumas instituições que estão interessadas em ouvir a percepção dos profissionais da educação. Entretanto, mesmo reconhecendo este campo de positividade, tenho apresentado dois cuidados importantes para a condução de estudos – muitos deles ainda preliminares – sobre o tema.
O primeiro destes cuidados, com Morozov (2018), sinalizamos um cenário de uma mediação digital dos vários campos da vida humana, especialmente na interseção da política, da tecnologia e das finanças. Na era em que a Big Tech começa a se estabelecer, consolidam-se narrativas que exaltam “os heróis empreendedores ao mesmo tempo em que escondem as forças históricas mais amplas em jogo” (p. 164). A partir da possibilidade de extrair dados, com importantes consequências políticas e econômicas, proliferam-se modelos de digitalização fundamentados naquilo que Morozov nomeou como “novo consenso algorítmico”. Reconhecendo este cenário, o autor propõe quatro movimentos importantes: a) ruptura com o modelo intelectual da Big Tech; b) identificar o poder no digital; c) ampliação dos debates sobre a liberdade; d) contestação do consenso algorítmico.
O outro cuidado, proveniente de outra perspectiva, encontramos no diálogo com Harari (2016). De acordo com o autor, podemos considerar o “dataísmo” como um sistema de crenças que oferece tecnologias cada vez mais inovadoras e poderes inéditos na história da Humanidade. De acordo com o historiador, os dataístas acreditam que “os humanos não são mais capazes de lidar com enormes fluxos de dados, ou seja, não conseguem mais refiná-los para obter informação, muito menos para obter conhecimento ou sabedoria” (p. 371). Aqueles que professam tal crença depositam sua confiança em grandes conjuntos de dados e em algoritmos computacionais. Há um declínio da política acompanhado da hipótese de que os algoritmos qualificam nossos processos de tomada de decisão e que as variáveis constituintes da vida derivam-se de dados processados.
Ao longo deste texto, em caráter preliminar, procurei rastrear uma tendência na organização dos currículos escolares na atualidade. Sob esta tendência, os processos de seleção e organização dos conhecimentos e experiências na escola são conduzidos através de algoritmos. A crítica a esta algoritmização curricular, distanciando-se de uma postura tecnofóbica, propõe uma crítica política ao modelo da Big Tech e a problematização de posicionamentos dataístas, em ampla ascensão na literatura educacional. Fica o desafio, para o campo progressista, de uma renovação de nossas inquietações intelectuais, ora percorrendo o caminho do alargamento de nossos propósitos formativos, ora sintonizando nossa agenda de pesquisas aos desafios advindos deste novo século.