As efervescências populares — de ontem e hoje –, vistas por um professor brasileiro que vivenciou o Chile pré-Allende. As promessas (ainda moderadas) de Boric. Como a nova esquerda pode evitar fracassos como os da Grécia e Espanha. Imagem: Pedro Ugarte/AFP
O candidato da esquerda, Gabriel Boric, venceu a eleição para a Presidência da República do Chile, derrotando um candidato neofascista explicitamente defensor do regime ditatorial sanguinário do General Pinochet e de políticas ultraneoliberais e admirador de Bolsonaro. Obteve 55,9% contra 44,1%. Uma grande diferença de 12%, na maior vitória eleitoral de um candidato presidencial no Chile. O comparecimento no segundo turno cresceu de 47,3% para 55,65% (8% a mais). Foi, portanto, uma histórica vitória política e eleitoral e uma importante derrota da extrema-direita no Chile e na América Latina.
Para mim, foi uma emoção especial, pois morei no Chile na adolescência, onde aprendi muito, cultural e politicamente. Por isso, esse processo, desde as grandes mobilizações, a constituinte e os resultados do primeiro turno, me traz fortes emoções.
Memórias fortes de relações políticas e afetivas de quando lá vivi, em 1965 e 1966 e tinha entre 12 a 14 anos, e meu pai esteve lá por três anos como chefe do escritório da OMS (Organização Mundial da Saúde). Lá vivi inesquecíveis momentos políticos, mas só racionalizados muito tempo depois. Assim, aquele país sempre esteve na minha memória revivida.
O contexto, a luta de massas e as eleições
Como resultado das políticas neoliberais e da profunda dependência econômica, o Chile vive hoje uma grande crise econômica, social e política que gerou potentes mobilizações desde 2006 e, principalmente, em 2011 e, mais recentemente, a partir de 2019. No caso chileno, podemos falar que, de fato, chegou a se desenvolver uma crise de hegemonia.
Foi um processo surgido dentro de uma conjuntura internacional de avanço da resistência popular, gerando uma onda de mobilizações em diversos países, de combate ao neoliberalismo e outras políticas burguesas, presente na América Latina, na Europa, nos Estados Unidos, no Oriente Médio e na Ásia. Cada qual com suas particularidades e consequências, dependendo das características nacionais e da correlação de forças concretas de cada formação social, nas quais surgiram novos sujeitos sociais e políticos.
No caso do Chile, sujeitos em grande parte nascidos por fora do Partido Socialista (OS), do Partido Comunista (PC) e da CUT (Central Unitária de Trabajadores de Chile), mesmo que o PC e outras organizações também tenham conseguido capitalizar politicamente essas mobilizações. A repressão foi muito violenta, especialmente a partir de 2019, com 26 mortos, centenas de feridos graves e mais de 10 mil presos.
Isso acabou gerando um fortalecimento dos movimentos sociais e um reposicionamento da esquerda no cenário político nacional chileno, além de um processo constituinte. Foi então eleita, em maio de 2021, a “Convención Constitucional”, com paridade de gênero e bancada eleita pelos povos indígenas, tendo uma maioria entre centro-esquerda e esquerda, ligada a partidos políticos tradicionais ou a novos movimentos políticos, entre os quais os de Gabriel Boric (Convergencia Social/Frente Amplio), cuja expressão política surgiu nas lutas estudantis de 2011/2012, quando era estudante de direito da Universidade do Chile.
Boric é uma jovem liderança política de 35 anos, do extremo sul do país, onde começou sua vida política no movimento estudantil, ainda adolescente. Liderança que se reforçou em Santiago, na Universidade do Chile, em 2011. Foi eleito presidente da FECH (Federación de Estudiantes de la Universidad de Chile) em 2012 e se tornou uma das principais expressões políticas das mobilizações da juventude e do povo nos últimos 10 anos.
Eleito para a Câmara dos Deputados do Chile em 2013, iniciou seu primeiro mandato em 2014 e o segundo em 2018, representando a província de “Magalhanes y de la Antártica”, sua região de origem.
Boric é militante do novo partido “Convergencia Social”, que faz parte da coalizão política de esquerda “Frente Amplio”. Esta fez uma coalizão com outra frente, a “Chile Digno”, que tem o PC como principal força, resultando na “Apruebo1 Dignidad”. A definição da candidatura presidencial se deu numa primária na qual Boric obteve 60% dos votos contra o candidato do PC, Daniel Jadue.
As eleições no primeiro turno apresentaram uma dispersão grande de votos entre diversos partidos, propostas e projetos políticos. De modo que acabou havendo uma polarização diferente das eleições anteriores.
Desde o fim do regime militar, a disputa acabava se concentrando entre, de um lado, uma direita liberal que evitava uma identificação mais direta com o regime militar criminoso, de outro lado estava a “Concertación” (PS, PDC-Democracia Cristã e outros). Portanto, havia uma competição limitada entre uma direita liberal e um centro com cara de centro-esquerda. Ambos mantendo as políticas neoliberais inauguradas por Pinochet (no Chile e em termos mundiais).
Desta vez, foi diferente. Houve uma maior polarização social e política devido o aprofundamento da crise e o desgaste das políticas seguidas por todos os governos anteriores e, como decorrência, uma polarização política advinda das mobilizações dos setores populares, com um grau significativo de radicalização nas reivindicações políticas e nas formas de luta e de organização.
Isso acabou provocando duas candidaturas principais: uma mais à direita, de perfil neofascista e uma mais à esquerda que as da “Concertación”, liderada por Gabriel Boric. Evidentemente, foi uma comprovação político-eleitoral do fracasso das políticas do centro e da direita.
No primeiro turno (21/11/2021), Boric obteve 25,83% dos votos e José Antonio Kast (Partido Republicano), 27,91%. Duas outras candidaturas de direita obtiveram 12,8% (Franco Parisi) e 12,78 (Sebastián Sichel). Uma de “centro”/Concertación (Yona Provoste – PDC), que recebeu 11.6%. E duas outras de “esquerda”: Enriquez Ominami e Eduardo Artés, que tiveram respectivamente 7,6% e 1,5%. Ou seja, no primeiro turno, a soma dos votos das três candidaturas da direita somaram 53,5% e a somatória das candidaturas de “esquerda” e “centro” foi de 46,5%.
No segundo turno, Boric e sua coligação realizaram alianças mais amplas, como o PS e o PDC2, forças do espectro político que havia governado como “Concertación” e aplicado políticas tipicamente social-liberais sem alterar as estruturas políticas do país. Isto levou a acordos e a uma moderação política durante o segundo turno eleitoral.
Em 19 de dezembro de 2021, 8,3 milhões de eleitores compareceram às urnas, sendo a maior participação desde a implantação do voto voluntário. Boric foi eleito com 55,8 % dos votos, sendo a maior votação na história do Chile. Ou seja, a vitória ocorreu porque Boric capitalizou o grosso dos novos votantes (cerca de 1,3 milhões a mais) e parte dos eleitores que votaram nos candidatos da direita no primeiro turno.
No primeiro turno, a abstenção foi enorme, o que reflete uma certa desilusão com as forças políticas tradicionais que governaram antes. O segundo turno mostrou uma disposição de ver mudanças, pois o aumento de votantes favoreceu principalmente a candidatura de Boric. E também, provavelmente, porque a diferença política entre os dois candidatos ficou mais clara, levando à motivação plebiscitária daqueles que se abstiveram no primeiro turno.
A vitória do mais jovem presidente na história do país foi, assim, resultado não simplesmente de um expressivo fenômeno eleitoral individual, mas fruto da polarização da luta de classes, da luta das trabalhadoras e trabalhadores e dos oprimidos em geral, com forte presença e protagonismo da juventude, das mulheres e dos povos indígenas. Além disso, por uma enorme mobilização de base no segundo turno.
Por outro lado, ela se combina com os resultados parciais que a Convenção Constitucional vem desenvolvendo e que poderão se consolidar na nova constituição.
Pode e precisa haver, portanto, uma sinergia, uma simbiose entre o novo governo e o processo constituinte ainda em andamento. Mas ambos, o governo e a constituinte, foram, principalmente, resultado da luta popular, do combate nas ruas, de greves gerais, de repressão violenta e resistência forte, com mortos, feridos graves, perda de olhos, presos políticos, inclusive acusados de terrorismo, que ainda estão presos.
História, memórias e emoções
Como falei no início, o Chile sempre me traz fortes emoções. Lá assisti, pela primeira vez, uma passeata de estudantes que se manifestavam na Avenida Libertador, no centro da cidade, logo que cheguei e ainda estava no hotel. Assisti os estudantes sendo reprimidos pelos “carabineros”, a polícia militar de lá, com cassetetes e usando os carros-tanque com jatos de água.
Foi também no Chile que entendi o significado do termo “imperialismo ianque”, quando, tentando mostrar um certo ufanismo nacionalista ingênuo, por conta da industrialização desenvolvimentista brasileira, um colega me disse: “mas essas empresas são americanas. Isso é o imperialismo ianque”.
As aulas de história também eram nitidamente antifascistas. Estudei num colégio de padres holandeses que, na infância, tinham vivido a ocupação alemã em seu país. O padre Pedro, professor de história, contava casos da resistência com muita emoção, expressava um sentimento fortemente antifascista e destacava o papel do exército da União Soviética na derrota do nazismo.
Era a época do governo de Eduardo Frei Montalva, da Democracia Cristã (PDC), antes do Governo da Unidade Popular, encabeçado por Allende. Frei realizava tímidas reformas sociais, pressionado pela luta de classes e pela luta popular em geral, no contexto interno e internacional.
Vivi também, dentro da escola, predominantemente com estudantes de “classe média”, a expressão da luta de classes nas posições de colegas refletindo um período de polarização social e política no país.
Não por acaso, o colega que me xingava de “despatriado de mierda”, era o mesmo que manifestava seu racismo tratando, depreciativamente, como “negros” os colegas que tinham traços indígenas e chamando os pobres de “rotos” (rasgados).
Em 1967, de volta ao Brasil e à escola pública, no quarto ano de ginásio, aos 14 anos, comecei a participar das primeiras passeatas e em 68 me somei ao coro dos que estavam gritando palavras de ordem anti-imperialistas contra o “Acordo MEC-USAID”.
O período acabou enfraquecendo a democracia-cristã governante, eleita em 1964, gerando uma polarização entre a Unidade Popular, liderada por Salvador Allende e a direita liberal conservadora do Partido Nacional, aquela que viria a ser o braço civil do golpe de estado de 1973.
Em 1970 ocorreu a vitória de Allende para presidente. Foi também quando, aos 17 anos, comecei a ter uma ação efetivamente de “militância”, numa organização revolucionária, a APMLB (Ação Popular Marxista-leninista do Brasil).
Nossa posição era um tipo de “apoio crítico”, creio que uma linha mais próxima do que eram as posições do MIR (Movimiento de Isquierda Revolucionária) do Chile, devido à perspectiva predominantemente reformista da Unidade Popular e seu governo, que acabou não conseguindo impedir o violento golpe que adveio.
Em 1971, fui preso pela primeira vez. Entre minhas coisas, o DOI-CODI achou uma caderneta com endereços de ex-colegas chilenos, que nada tinham a ver com política. Aproveitaram, então, para acrescentar uma acusação de uma suposta função minha como responsável por “contatos internacionais”. Ao ver a caderneta, um oficial do CENIMAR exclamou: “endereços de Santiago do Chile! Esse menino é de ouro”. O que acabou me levando a tomar umas porradas a mais.
O processo do golpe, a meu ver, foi razoavelmente bem analisado, de modo crítico, pelo dirigente do PS, Carlos Altamirando, no seu livro Dialética de uma derrota, assim como também no balanço crítico feito, depois do golpe militar, por Miguel Enriquez e o seu MIR. Aliás, ele, desde antes do golpe, já tinha uma análise correta sobre a tendência de desenvolvimento de um golpe que acabou trazendo muitos heróis, milhares de exilados, presos, torturados e mais três mil assassinados. Entre eles, o presidente Salvador Allende e o próprio Miguel Enriquez, um ano depois. Ao todo, calculou-se mais de 30 mil perseguidos.
No ano 2000, retornando a Santiago, tive um contato com o padre Arturo, o último dos padres que tinham convivido comigo na escola e que ainda estava vivo e morando no Chile.
Ele havia se afastado da escola onde eu havia estudado, com estudantes principalmente de classe média, para dirigir uma escola na periferia de Santiago. Conversando com ele, pude entender melhor e confirmar a perspectiva progressista e ligada a teologia da libertação, daqueles padres.
Naquela ocasião, tive também a oportunidade de assistir ao encerramento de uma conferência nacional do PS chileno. O que mais me impressionou foi o simbolismo apresentado. Hinos da época da Unidade Popular no governo, altamente combativos, anti-imperialistas, de mobilização popular e um grupo de jovens levantando uma bandeira com a imagem de Che Guevara. Para mim, foi algo muito contraditório com a prática efetiva do governo chileno, na época dirigido pelo PS em aliança com o PDC, na chamada “Concertación Democrática”, vigente desde o primeiro governo do regime liberal democrático que substituiu a ditadura em 1990, encabeçado pelo presidente Patricio Aylwin, do PDC.
Isso porque o PS/Concertación exercia um governo que nada tinha a ver com a perspectiva do governo da Unidade Popular que, mesmo sendo reformista, visava uma transição ao socialismo, com um programa de reformas radicais, por dentro das instituições e transformando estas instituições. Não era um governo de ruptura revolucionária, mas tinha sido absolutamente diferente do governo da “Concertación”, que exercia uma política macroeconômica e políticas sociais nitidamente neoliberais e a repressão do estado aos movimentos populares. O que, aliás, acabou se tornando uma espécie de política de estado, independentemente dos presidentes que se revezaram desde então: da Concertación (PS e PDC) e da direita liberal (o atual Sebastian Piñera, que está encerrando seu segundo mandato).
Não por acaso, após tantos anos da queda do General Pinochet, somente agora temos uma “Convención Constitucional”.
Entretanto, é preciso destacar que, lá, diferentemente do Brasil, centenas de torturadores e assassinos da ditadura militar acabaram sendo punidos.
As promessas de Boric
No discurso após o anúncio de sua vitória (19/12/2021), Boric retomou uma série de pontos de seu programa, especialmente naquilo veiculado na disputa do segundo turno.
Fez importantes menções simbólicas, mesmo sem apresentar de forma objetiva e concreta como vai conseguir aplicar o conjunto suas promessas.
Saudou as dezenas de milhares de presentes em praça pública em língua indígena, reafirmou compromissos com as mulheres, valorizando seu importante papel no processo político recente do Chile, a luta contra todo tipo de opressões e discriminações, a valorização identitária, o apoio aos movimentos LGBTQIA+, a defesa da educação pública e a implantação de uma previdência pública, que foi totalmente destruída desde o período do regime militar, o respeito aos idosos e às diferenças regionais.
Defendeu um desenvolvimento respeitando a natureza, o direito das mulheres decidirem sobre o próprio corpo, a assistência a todo tipo de famílias, as diversidades em geral, os direitos humanos e o objetivo de lutar por justiça e dignidade. Identificou, como grandes problemas, as consequências sociais e econômicas da pandemia.
Prometeu o combate ao narcotráfico utilizando uma combinação de métodos policiais com ações culturais e de educação nos bairros populares.
Repetiu de forma ostensiva que o governo será de “todos e todas” chilenas e chilenos, prometendo “mudanças estruturais”, de modo genérico, mas sem especificar bem do que se trata.
Se comprometeu com o respeito às instituições e com uma democracia definida como “substantiva” e de participação popular. Indicou que o caminho para resolver os problemas seria um método “passo a passo”, ouvindo o povo, e definindo prioridades, por “não ser possível resolver tudo de uma vez”.
Garantiu ainda o respeito a uma “imprensa livre” e a expressão das ideias diferentes e rechaçou toda violência. E agradeceu aos candidatos adversários, inclusive ao neofascista Kast, dizendo que saberá construir pontes.
Quatro pontos “seguros”
Afirmou quatro pontos sobre os quais ele “está seguro” e que foram apresentados como eixos principais a serem enfrentados.
O primeiro é que o crescimento econômico não pode se realizar com desigualdades, que precisam ser enfrentadas para garantir a coesão social.
O segundo, uma promessa de não desestabilizar as instituições e garantir uma democracia “substantiva” e de “portas abertas” do governo e do Palácio de La Moneda à participação do povo, num governo com “os pés na rua” e não entre quatro paredes.
O terceiro, a necessidade de realizar acordos amplos porque, segundo ele, sem isso não haverá durabilidade para as mudanças propostas.
E, em quarto lugar, o respeito aos direitos humanos, destacando que nunca mais teremos no Chile um presidente que faça “guerra contra seu próprio povo”. Assim, prometeu fazer a defesa da verdade, da justiça, da reparação, da não repetição do que aconteceu e disse um não à impunidade.
A partir desses quatro pontos, elencou alguns desafios, entre eles:
-O crescimento com distribuição justa da riqueza, com melhorias de salário, apoio aos camponeses, luta contra o machismo e a sociedade patriarcal e o desenvolvimento da ciência.
-Defender o processo constituinte e avançar com todos os setores dispostos a ir juntos, acenando para um governo de ampla participação e, portanto, sem uma linha de classe e político-ideológica mais definida.
-Ao mesmo tempo, expandir direitos sociais e respeitar o controle fiscal, que é um dos princípios do neoliberalismo. Pois, segundo ele, sem os controles fiscais os avanços não podem ser garantidos.
Neste sentido, disse que não veio governar para ficar “olhando no espelho para si mesmo” e que é preciso compor alianças, inclusive cooperação com os empresários.
E ecoou um slogan que já conhecemos: “La esperanza le ganó al miedo”.
O que foi silenciado
Entre tantas questões, chamou a atenção a ausência completa de qualquer referência a algumas palavras-chave, como: socialismo, imperialismo, capitalismo, monopólio, neoliberalismo, latifúndio, questão agrária, capital financeiro, soberania nacional, dependência, dívida pública, fascismo, bancos. Nada sobre unidade latino-americana e sobre política externa em geral.
Não houve também nenhuma menção a Salvador Allende e à experiência do governo da Unidade Popular do início da década de 703. Muito menos, explicitamente, ao golpe militar, ao regime militar e à corporação militar. Também não foi feita nenhuma crítica explícita aos governos anteriores e às políticas que eles desenvolveram, de modo a que o Chile chegasse na crise econômica, social e política onde chegou.
Desafios, potenciais, obstáculos e ambiguidades
Há muitos potenciais positivos, assim como obstáculos a serem enfrentados.
Positivamente, uma enorme vontade popular de grandes mudanças, as raízes da vitória nas grandes mobilizações radicais, a maior vitória eleitoral da história e um processo constituinte concomitante.
Por outro lado, um parlamento onde há uma maioria que apoia o novo governo, mas não é uma efetiva maioria de “esquerda”. O judiciário também não é de esquerda, a grande mídia é predominantemente de direita e as forças armadas mantém uma tradição conservadora e autoritária, de direita. O grande capital, nacional e estrangeiro, exercerá oposição às mudanças que atinjam seus interesses. Tudo isso, fatores fundamentais contrários à vontade popular de profundas mudanças.
As dificuldades estão vinculadas, antes de tudo, a uma grande dependência econômica do Chile, não somente em relação aos Estados Unidos e países europeus como também, na atualidade, cada vez mais em relação à China, cuja presença cresceu durante os governos do centro e da direita.
Por outro lado, também há diversos tratados econômicos regionais, multilaterais e bilaterais que se desenvolveram nos últimos governos. Além disso, há uma direita tradicionalmente organizada no Chile, agora também se expressando na forma de uma extrema-direita que reaparece com cara própria, separada à direita liberal tradicional, e também não esconde suas preferências ao regime criminoso da ditadura militar chefiada por Augusto Pinochet.
Apesar do pronto reconhecimento de Biden à vitória de Boric, teremos ainda prováveis ações dos Estados Unidos para evitar a perda de influência política e diplomática no Chile e em relação aos posicionamentos internacionais do país, mesmo que já venha perdendo a influência econômica para a China.
Apesar de não haver sinais de uma política externa efetivamente anti-imperialista, deverá haver um esvaziamento completo do chamado “Grupo de Lima”. O Grupo, que teve esse nome por ter se reunido inicialmente na capital peruana, mas cuja iniciativa foi justamente do atual governo chileno com o apoio de Bolsonaro, no sentido de esvaziar a UNASUL e isolar a Venezuela, já sofreu diversas fragmentações a partir das subsequentes derrotas de seus fundadores no México, Argentina, Peru e Honduras.
Por outro lado, a vitória de Boric provocará também um maior isolamento internacional de Bolsonaro, particularmente na América do Sul. O próprio Piñera já evitava se identificar com Bolsonaro, mas, se Kast vencesse, Bolsonaro iria capitalizar e haveria uma simbiose entre esses dois governos para reforçar uma perspectiva mais à direita dentro do subcontinente.
Entretanto, a moderação política de Boric desde o processo constituinte evidencia um risco de transformação dessa “nova esquerda” em mais uma experiência frustrante, como a que aconteceu com o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha.
Naqueles países, forças políticas nascidas da resistência combativa e radical das massas populares em luta direta contra o endurecimento neoliberal, se apresentaram como novos sujeitos políticos e sociais que se aglutinaram e se organizaram como partido. Tiveram, em seguida, muito bons resultados eleitorais mas, no exercício dos governos, acabaram se submetendo à lógica da governabilidade, da ordem social, da União Europeia e do social-liberalismo.
No Chile, o processo foi vitorioso, sem dúvidas, antes de tudo pela derrota da extrema-direita neofascista e da direita em geral. Agora, é preciso promover reformas econômicas, sociais, políticas e culturais que melhorem as condições de vida do povo (especialmente na educação, saúde e previdência), reforce a presença do estado na economia, promova uma verdadeira soberania nacional, quebre as estruturas legais e operacionais repressivas do regime militar. Mas isso não basta.
O programa apresentado por Boric desde o primeiro turno já era mais limitado do que aquele da Unidade Popular liderada por Allende em 1970. No segundo turno, as concessões, além de pouco transparentes, foram ainda maiores, trazendo grandes dificuldades para promover transformações profundas.
Sem uma mobilização popular e uma política de governo anti-imperialista, antimonopolista, antilatifundiária e democrático-radical, não será possível promover as reformas estruturais, acabar as desigualdades e garantir os territórios dos povos indígenas. E mesmo as promessas de saúde, educação e previdência públicas de qualidade, a defesa do meio ambiente da devastação capitalista e um efetivo combate às opressões, estarão comprometidas.
Não é possível servir a dois senhores. ¿Hasta dónde llega la victoria de la esperanza sobre el miedo?
1 O nome é uma referência ao voto pela aprovação da “Convención Constituyente” no plebiscito: “Apruebo” x “Rechazo”.
2 No segundo turno, Boric recebeu o apoio do Partido Socialista, Partido Demócrata Cristiano, Partido por la Democracia, Partido Liberal, Partido Progresista, Partido Radical, Partido Ecologista Verde, Partido Igualdad, Partido Humanista, Ciudadanos e dos movimentos Nuevo Trato e Independientes No Neutrales.
3 Apesar de que, no dia seguinte, ao visitar o presidente Piñera no Palácio de La Moneda, fez uma foto ao lado do busto de Allende e publicou em sua conta no Instagram.
por Jorge Almeida na coluna Movimentos e Rebeldias | Outras Palavras
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