Como se termina uma pandemia?

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O mundo pré-covid jamais retornará. Significa reconhecer o trauma coletivo, mas não estar à deriva: cedo ou tarde, um marco de memória se fará necessário. Sem ele, nos condenamos ao passado que não passou e o presente que não veio

Em dezembro do ano passado, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, afirmou que 2022 poderia marcar o fim da pandemia. Essa declaração vinha ao encontro da opinião de alguns epidemiologistas publicadas neste mês de janeiro. O fim da pandemia dependeria de algumas condicionantes, como a continuidade dos protocolos sanitários (lavar as mãos, utilizar máscaras, manter distanciamento social) e a universalização da vacina (não somente no interior de um mesmo país, mas também para todos os países). Isso significa que a pandemia ainda é um acontecimento atual, mas que começaríamos a vislumbrar no horizonte um limite, um término, que resultaria não na extinção do vírus da covid-19, e sim na passagem de uma pandemia para uma endemia.

De acordo com matéria publicada pela BBC no último dia 19, entretanto, Tedros Adhanom voltou atrás e informou que a pandemia não está nem perto do fim, questionando a tese de que a ameaça oferecida pela variante ômicron fosse menor. Por fim, segundo outra matéria publicada pela DW em 24 janeiro, o diretor-geral da OMS declarou que a fase aguda pode chegar ao fim neste ano, mas que é perigoso assumir “que estamos no fim do jogo da pandemia”. Apesar do balde de água fria jogado por Tedros Adhanom, podemos reconhecer que se coloca uma mesma questão em suas três declarações e nas opiniões emitidas por alguns epidemiologistas: o fim da pandemia.

O fim da pandemia, por mais que seja um evento esperado e almejado por todos, apesar de estar mais distante do que imaginávamos, levanta uma questão importante: como se termina uma pandemia? Lembro-me que, no primeiro semestre de 2020, circulava uma piada nas redes sociais, algo como “depois que o lockdown acabar, ficarei quinze dias sem voltar para casa”. Imaginava-se que a duração da pandemia seria breve e que seria possível mais ou menos indicar o momento, o dia em que seu término seria declarado. Outra piada comum naquele momento era uma crítica aos negacionistas e dizia, se eu bem lembro, que “eu vou sair de casa somente quando o Átila tocar minha campainha e dizer: ‘pode sair, querida’.” Mais uma vez, havia uma expectativa de que seria possível determinar o momento exato do fim da pandemia.

Essa segunda piada traz um elemento interessante, pois informa de que modo o término da pandemia é reconhecido. O discurso científico, representado pelo biólogo Átila Iamarino, define quando estaríamos livres das ameaças da covid-19. Essa piada realça a importância da ciência, mas ao mesmo tempo indica que essa importância é reconhecida individualmente, e não coletivamente. Apesar de não ser esse o seu intuito, podemos aproveitar esse aspecto daquela piada para pensarmos na pandemia não somente como um fenômeno biológico, mas também como um fato histórico.

Aparentemente, entender a pandemia de covid-19 como fato histórico é, como pensavam alguns grupos sociais, ideologizar um problema da natureza, pois o vírus não estaria preocupado com divergências políticas e questões sociais. Em suas redes sociais, pediam, clamavam para que não politizassem a pandemia, argumentando que de nada adiantaria fazer críticas ao governo federal. No entanto, a pandemia provou ser, desde o início, um fato histórico. As políticas sanitárias de enfrentamento, o negacionismo, a adoção ou não de medidas protetivas ao trabalhador, o cuidado com a saúde mental, enfim, todos esses eventos nos mostram que a pandemia certamente será registrada, não somente nos livros de biologia, mas também nos livros de história.

No interior do processo histórico recente, o início da pandemia foi uma ruptura. É verdade que, se chegamos até aqui, houve alguma continuidade, mas a ruptura, a descontinuidade foi a principal marca desse período. Ainda não sabemos exatamente para onde estamos indo, mas jamais retornaremos a um momento pré-pandêmico. Essa é uma das principais características do trauma: por mais que almejemos isso, não retornamos a um estado anterior ao evento traumático. Trata-se, em grande medida, em saber como lidar com o trauma e seus efeitos, em aprender a falar sobre ele, em incluí-lo em nossa própria história, ainda que, muitas vezes, esse processo não seja completo.

A impossibilidade de retornar a um estado anterior não significa que navegamos à deriva e que perdemos qualquer possibilidade de direção, mas será necessário que, em algum momento, saibamos que a pandemia findou. Aparentemente, não há nenhuma grande relevância nessa expectativa, pois frequentemente se supõe que saberemos que a pandemia acabou quando a pandemia acabar, mas todo saber a respeito do passado implica um marco. Precisaremos reconhecer, não somente individualmente, mas também coletivamente que já não estamos mais sob o jugo implacável de uma pandemia. Precisaremos estabelecer um marco de memória.

A função do marco de memória é recordar: recordar uma experiência que deve ser valorizada e estimulada, recordar uma experiência que não deve se repetir. Nesse segundo caso, recordar para nunca mais esquecer. Quando o marco de memória não é estabelecido, principalmente no segundo caso, tornamo-nos presas fáceis de um passado que não passou. Um bom exemplo foi a passagem da ditadura militar para a nova república. Interpretou-se essa passagem como uma transição entre ditadura e democracia, mas não existe transição de uma não democracia para uma democracia. O nome disso é ruptura, é descontinuidade. Ao entendermos como transição aquilo que foi uma ruptura, estamos fadados a estabelecer uma solução de compromisso entre o passado que não passou e o presente que não chegou.

Sendo assim, mesmo que retroativamente, precisaremos estabelecer um marco de memória, um reconhecimento coletivo de que aquilo que entendemos como pandemia findou. Trata-se de estabelecer um marco de memória que nos lembre os milhares de vidas perdidas e nos ajude a não repetir o genocídio bolsonarista, que nos lembre o valor do conhecimento científico e nos ajude a não repetir o negacionismo, que nos lembre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e nos ajude a impedir o seu sucateamento, que nos lembre de todos aqueles que, de um modo ou de outro, lutaram para minimizar os efeitos da pandemia e nos ajude a nos distanciarmos de um retorno à barbárie.

Pode parecer estranho tratar do fim da pandemia quando ainda nos encontramos em um momento delicado dela. Mas essa estranheza pode se dissipar se levarmos em consideração que, provavelmente, fique cada vez mais difícil falarmos sobre pandemia e seus efeitos. Cada vez mais surge um impulso para se afastar dela, para não reconhecer que um dia se esteve submetido aos seus poderes, mas é justamente essa diferença que precisa ser marcada. Distanciar-se da pandemia, almejar o seu término, ansiar por um novo momento, mas não deixar de reconhecer sua dimensão histórica. Dessa maneira, encontraremos tempo e espaço para, finalmente, celebrar o seu fim, e, ao mesmo tempo, homenagear os mortos. Em algum momento cada um e todos nós precisaremos nos implicar para então poder seguir adiante, mas não mais como antes.

Originalmente em Outras Palavras

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