Os novos hábitos de consumo dos jovens chineses

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Nova geração troca marcas dos EUA por produção nacional. Fenômeno responde a tensões geopolíticas, inclusive ligadas à pandemia. Mas raízes são antigas e só podem ser compreendidas com olhar para a história e a educação

 

 

Recentemente, uma das eminentes articulistas de um jornal importante de nosso país, especialista em China, divulgou um artigo intitulado “Consumo patriótico”, no qual afirma que no momento atual os chineses jovens da área urbana estão consumindo muito mais produtos fabricados localmente do que aqueles importados de países estrangeiros.

Lembra ela que a partir da penúltima década do século passado até alguns anos atrás a situação era diferente, pois eles costumavam frequentar locais onde se encontravam instaladas empresas comerciais estadunidenses e consumir seus produtos, principalmente da rede McDonald’s. Estes comportamentos eram percebidos como símbolos de status, haja vista que predominava a ideia de que o ocidente é melhor.

Destaca que a juventude do presente, de maneira alternativa, costuma se exibir com um copo de chá gelado em uma das mãos, uma bebida tradicionalmente chinesa, e com bolinhos de tapioca da marca Heytea, produzidos na cidade de Guangdong, na outra mão, cujos elevados preços são parecidos aos produtos norte-americanos

A articulista acrescenta que o aumento da oferta de bens e serviços de alta qualidade tem contribuído para a valorização das empresas nacionais. Por sua vez, muitos produtos elaborados no país são vistos de modo tão prendado como os fabricados por estabelecimentos alóctones. Também se constata um aumento significativo da procura por vários itens produzidos localmente, tais como plantas medicinais, roupas típicas e cosméticos, uma clara predileção ao made in China. Muitos chineses já chegaram até a boicotar empresas estrangeiras que se comportaram de maneira desviante das concepções adotadas por eles.

Esta mudança na conduta sínica, segundo ela, é decorrência de um movimento intitulado Guochao, isto é, uma onda do país caracterizada pela “valorização das marcas chinesas, impulsionada pelo sentimento nacionalista entre jovens urbanos, dispostos a demonstrar orgulho do país e a responder à percepção de que o resto do mundo deseja conter a China, um momento de autoconfiança cultural”.

Embora devamos acatar a sólida argumentação exposta pela articulista, é preciso ressaltar a presença de uma explicação exígua que precisa ser complementada. Com efeito, ela se cinge a uma ocorrência que emergiu a partir do ano de 2018 quando a marca de roupas esportivas Li Ning apresentou sua coleção na Fashion Week em Paris. Como pode ser notado, este entendimento não leva em conta outras duas variáveis relevantes que são a origem e o desenvolvimento do sentimento nacionalista e a existência da educação cívica.

Em relação a elas, vale lembrar então que o Guochao não pode ser visto como um fenômeno que apareceu de modo súbito, causado por um acontecimento do passado recente originado há apenas quatro anos, ele possui raízes mais profundas. De fato, o sentimento nacionalista que lhe serve de fundamento é muito antigo na China.

A história registra que o nacionalismo, marca indelével dos chineses, começou a aparecer no século dezessete quando a China era considerada como um império celestial superior localizada no centro do universo. Assim sendo, os demais Estados eram vistos como entes subalternos obrigados a lhes prestar deferência. Nesta época ela sofreu uma derrota humilhante na primeira guerra sino-japonesa e foi devastada pela invasão e pilhagem realizada por uma aliança de várias nações. Além disso, viu-se obrigada a efetuar indenizações e conceder privilégios a estrangeiros. Consequentemente, o vigoroso sentimento de superioridade caminhou rumo ao desaparecimento.

Durante a primeira guerra mundial ela foi desconsiderada pelo Tratado de Versalhes, fato que causou a manifestação de muitos protestos em todo o território. Em decorrência, vários privilégios destinados a forasteiros foram drasticamente reduzidos. Na segunda guerra conseguiu recuperar territórios perdidos para o Japão. E após a guerra civil interna o partido comunista passou a combater todas as expressões separatistas emergentes. Também na primeira metade do século XX, o nacionalismo sínico aumentou acentuadamente em função do antimanchuísmo, do anti-imperialismo e do movimento maoísta e visou a construção de um novo sujeito nacional.

Adicione-se ainda o papel da pandemia que assola o mundo atual. Muitos sabem que países ocidentais levantaram a hipótese conspiratória sobre as origens do covid-19 que coloca a China como criminosa, a qual foi interpretada pelos chineses como um ataque étnico. O aumento desta pressão ocidental possibilitou a Pequim se apresentar como a defensora de todos os interesses chineses, revigorando o sentimento nacionalista e favorecendo os laços entre a sociedade e o Estado, que passou a reagir firmemente contra a intenção humilhadora e imperialista e a estimular de modo reiterado a propagação do orgulho nacional baseado nas conquistas coletivas do país resultantes de sacrifícios coletivos e do trabalho árduo da população chinesa.

Cabe registrar que, no ano passado, o Partido Comunista Chinês realizou uma incisiva campanha nacionalista a partir do momento em que o secretário de Estado norte-americano afirmou que seu país tinha muita preocupação com a conduta da China em relação a Hong Kong e Taiwan, com a coerção econômica sobre aliados e a prática de ataques cibernéticos. Em apoio ao PCC, a Liga da Juventude comunista praticou um acalorado boicote de mercadorias estrangeiras.

Quanto à educação cívica, sabe-se que ela é bem menos idosa do que o nacionalismo, porém se encontra intimamente relacionada a ele. O ano de 1912 pode ser considerado como seu início, quando ocorreu o fim da dinastia Qing e apareceu o regime republicano. Com ele emergiu a educação cívica, a qual foi conduzida pelo ideal militar-civil e por concepções democráticas visando o fortalecimento do Estado-nação. Nas décadas de 1940 a 1970, a lealdade a Mao passou a integrá-la. A partir dos anos 1980 ela foi muito influenciada pelas campanhas políticas e pelos debates ideológicos então ocorridos.

Outra data importante foi o ano de 2001, quando emergiu uma reforma curricular que concedeu à educação cívica a finalidade de cultivar valores e atitudes positivas nos alunos, tais como a perseverança, o respeito pelos outros, a responsabilidade e principalmente a identidade nacional. Também foi proposto o uso de exemplos de eventos de vida como contextos de aprendizagem para permitir aos alunos formarem a percepção dos valores positivos.

No transcorrer dos anos, em Hong Kong, emergiram e se intensificaram movimentos de professores que expuseram divergências em relação ao ensino da educação cívica. Por força deles, em 2012, instaurou-se um processo de revisão de suas diretrizes e a mesma passou a ser ministrada de maneira interdisciplinar, bem como ocorreu a introdução dos “Estudos liberais”, posteriormente substituídos pela nova nomenclatura intitulada “Cidadania e desenvolvimento social”, e a inserção de três módulos: “Um país, dois sistemas”; “O país desde a reforma”, “Abertura e interconectividade do mundo contemporâneo”. Os dirigentes escolares disseram esperar que a reformulação ajude a incutir valores positivos nos alunos e promover um senso mais forte de identidade nacional.

Embora a formação deste sentimento seja prioritária os chineses também estão levando em conta o avanço da globalização que tem favorecido as atividades econômicas do país. Assim sendo, a educação cívica atual, praticada na China, em Hong Kong e em Macau, passou a incorporar a ideia de que a cidadania além de ser localmente ativa precisa ser internacionalizada para favorecer o afloramento de múltiplas identidades. Como pode ser inferido, apesar de as preocupações patrióticas estarem em primeiro plano, a vigorosa e recorrente competição do mundo interdependente levou as autoridades e os educadores chineses a se preocuparem com um ensino cívico favorável ao intercâmbio com outras regiões do mundo.

Note-se, portanto, que o Guochao não pode ser visto apenas como uma ocorrência que emergiu há alguns anos na forma de um momento de “autoconfiança cultural” resultante da pujança sínica atual e das reações hodiernas contrárias à nação chinesa. Conforme foi verificado, o sentimento nacionalista que lhe serve de base possui muitos séculos de existência. Por sua vez a educação cívica que o apoia vem desde os primórdios do século XX. É possível inferir também que, enquanto um fenômeno específico e singular, ele se mostra como um fato social relevante que integra a estratégia política governamental, amplamente acolhida pelo povo, cujo orgulho nacional se encontrava adormecido, destinada a conduzir o país a uma posição de liderança no concerto das nações.

Por Antonio Carlos Will Ludwig | Outras Palavras

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