A autonomia relativa do Estado em Nicos Poulantzas

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
O caráter ideológico do Estado não tem existência abstrata, mas está presente na sua própria ossatura institucional

O Estado, enquanto objeto teórico, é uma preocupação de cientistas políticos, juristas, sociólogos, filósofos e outros, de modo que encontramos desde concepções formalistas até noções mais instrumentais, que abordam sua estrutura, historicidade, origem, função e institucionalidade.

Começando pelo Direito, podemos observar conceitos formalistas, que definem o Estado como poder soberano que organiza um povo presente em determinado território. Esta concepção, embora identifique elementos do Estado, cria uma noção estática do ente estatal, incapaz de identificar os seus movimentos e as disputas sociais que o atravessam.

Há concepções clássicas, como a de Weber, que o classifica como o ente que possui o monopólio do uso legítimo da força, ou ainda, noções mais instrumentalistas (vinculadas ao economicismo) que o caracteriza como um mero apêndice da estrutura econômica, sem nenhuma autonomia. No próprio marxismo, não há um consenso sobre a noção de Estado, embora uma das grandes contribuições para se pensar o político a partir do materialismo histórico tenha sido elaborada pelo pensador grego erradicado na França, Nicos Poulantzas.

Para abordar a relação entre Estado, poder político e classes sociais, Nicos Poulantzas afasta duas visões tradicionais e difundidas do ente estatal, classificadas como Estado como coisa instrumento e Estado como sujeito.

A primeira vê o Estado como um campo neutro, sem materialidade específica, podendo ser conduzido como um instrumento pelo grupo que o ocupará. Assim, o aparato estatal ocupado por conservadores, criaria políticas conservadoras e, quando ocupado por progressistas se converteria em um aparato estatal progressista. Entretanto, sabemos que o Estado continua sendo burguês mesmo se ocupado por indivíduos contra a burguesia, como Marx já havia demonstrado em O 18 brumário de Luís Bonaparte.

A segunda posição enxerga o ente estatal como o mero emanador dos interesses da burguesia, um bloco monolítico e sem fissuras, que produzirá os mesmos resultados a despeito da luta de classes. Esta concepção deve ser afastada para podermos visualizar o Estado como um campo atravessado pelas disputas sociais, pois embora ele possua uma natureza de classe, também possui contradições que abrem espaços para a luta política.

O Estado, como fator de coesão da unidade de uma formação social, é uma “estrutura na qual se condensam as contradições dos diversos níveis de uma formação”, como o nível político e o nível econômico, que possuem uma autonomia relativa, embora se influenciem reciprocamente. As contradições, por sua vez, dizem respeito aos conflitos inerentes de uma sociedade dividida em classes.

Embora o próprio Poulantzas tenha revisitado o tema posteriormente, na obra O Estado, o poder, o socialismo, dando ênfase à natureza do Estado, no presente artigo nos valemos da concepção do autor presente em Poder político e classes sociais.

Um dos conceitos elaborados por Poulantzas para compreender o Estado capitalista – considerando a cisão entre o político e o econômico neste modo de produção – é o de autonomia relativa. A perspectiva relacional adotada por Poulantzas não permite o uso de conceitos estáticos e formais, mas sim de categorias de análises que estão inseridas em totalidades mais amplas e só fazem sentido na relação que possuem com outros conceitos.

A compreensão de que as categorias de análise permitem o manuseio de diferentes níveis de abstração é essencial para se aproximar da noção de autonomia relativa do Estado. Assim, destacam-se três níveis de abstração, começando pelo mais geral e abstrato até o mais específico e concreto.

  1. I) modo de produção em geral, abarcando diferentes tipos de organização econômica existentes na história, como feudalismo, escravismo e capitalismo.

  2. II) modo de produção específico, como por exemplo, o modo de produção capitalista. Podemos perceber que esse nível de abstração já é mais concreto que o anterior.

III) formação social, que diz respeito a um Estado específico, determinado por um modo de produção específico. As lutas de classes e as contradições que a permeiam só existem, materialmente, neste último nível, que é o mais concreto de todos. O Estado Brasileiro e suas classes e frações são um exemplo de uma formação social específica.

Poulantzas cria uma “teoria regional do político no modo de produção capitalista”, utilizando a premissa de que o poder político não se encontra diluído no poder econômico, mas possui uma autonomia relativa em relação àquele. Para Poulantzas, a autonomia relativa das diversas instâncias também existia em outros modos de produção, todavia, ganha contornos específicos na sociedade capitalista.

Deste modo, a autonomia relativa apresenta-se como uma forma de não intervenção do poder político no processo de produção, já que este ocorre a partir de uma lógica própria, sem a necessidade de coerção militar do Estado, considerando que os objetivos perseguidos no âmbito da produção não são estritamente políticos. Essa não intervenção, entretanto, é apenas aparente, pois o Estado cria as condições jurídicas necessárias à reprodução do capital e lhe garante o verniz de legitimidade.

Todavia, o caráter relativo dessa autonomia significa, ao menos, dois fatores: I) o Estado e o poder político sofrem determinações do campo econômico. II) há um limite para o espaço de luta dentro do Estado, já que o arcabouço jurídico-político não permite a confrontação de algumas bases, como a extinção da propriedade privada dos meios de produção.

A autonomia relativa permite que o poder político se desloque do poder econômico, possuindo um campo de atuação próprio não condicionado necessariamente pelo componente econômico. Aos que acreditam que toda disputa de classes se resolve no campo da economia, basta lembrar da ditadura civil militar brasileira, cuja política econômica estava vinculada ao desenvolvimentismo – de origem tipicamente progressista – ao mesmo tempo que suas raízes políticas estavam fincadas em um autoritarismo.

Para ampliarmos nossa compreensão da autonomia do Estado, é importante nos aproximarmos de quatro conceitos que descrevem a estrutura jurídico-política estatal: direito capitalista, burocratismo, efeito de isolamento e efeito de representação da unidade. O direito capitalista, primordialmente, caracteriza todos os indivíduos como livres e iguais, atribuindo-lhes a igualdade formal e a autonomia da vontade, ou seja, todos estão em posição de igualdade para realizarem atos que são fruto de sua legítima vontade, como por exemplo, um contrato que garanta a compra e venda da sua força de trabalho. Segundo Poulantzas:

“Ademais, a superestrutura jurídico-política do Estado capitalista está em relação com essa estrutura das relações de produção; isso se torna claro tão logo nos reportamos ao direito capitalista. A separação do produtor direto dos meios de produção reflete-se aí pela fixação institucionalizada dos agentes de produção enquanto sujeitos-jurídicos, ou seja, enquanto indivíduos-pessoas políticos. Isso é verdade tanto para essa transação particular constituída pelo contrato de trabalho, a compra e a venda da força de trabalho, como para a relação de propriedade jurídica formal dos meios de produção ou as relações institucionalizadas públicas-políticas.”

O burocratismo, por sua vez, diz respeito à abertura formal das instituições para, em tese, recrutar sujeitos advindos de todas as classes sociais, que poderão integrá-la por meio de concursos públicos ou candidatando-se a cargos eletivos. É óbvio que essa abertura é apenas aparente, pois não há condições materiais similares entre os indivíduos e as classes para integrar as instituições.  A hierarquização existente dentro dos órgãos do Estado deve aparecer como uma diferenciação de competências funcionais, e não como uma subordinação de alguns sujeitos por outros.

O efeito de isolamento constitui um componente ideológico do Estado capitalista, que auxilia na reprodução do capital. O isolamento, ao caracterizar os indivíduos como sujeitos de direito em uma perspectiva individual, dificulta o reconhecimento de seus interesses de classe e seu pertencimento em um local específico no modo de produção, ocultando o antagonismo entre as classes. A venda da sua força de trabalho a um proprietário individual dos meios de produção é um mero ato de vontade. Nas palavras de Poulantzas: “Esse isolamento, efeito sobredeterminado mas real, é vivido pelos agentes no modo da concorrência e desemboca na ocultação, para esses agentes, de suas relações como relações de classe”.

Além disso, o Estado possui um efeito de representação da unidade, por se apresentar como o Estado-nação ou povo-nação. Aqui vale chamar atenção a um duplo aspecto. Ao mesmo tempo que esse Estado favorece – em virtude de sua estrutura jurídico-política – os interesses da classe dominante, ele é capaz de se apresentar como um terceiro em relação às disputas econômicas de classe, como uma entidade neutra, que não favorece nenhuma classe. Essa aparente neutralidade é visualizada por ele se apresentar como Estado-nacional-popular, representante do interesse geral. Assim, há um duplo estranhamento das classes trabalhadoras, criada pelo efeito de isolamento econômico que transforma todos em sujeitos indivíduos-pessoas-políticas e também como parte de um Estado-nação. O caráter ideológico do Estado não tem existência abstrata, mas está presente na sua própria ossatura institucional. Segundo Nicos Poulantzas:

“o poder institucionalizado do Estado capitalista de classe apresenta uma unidade própria de classe, na medida precisamente que ele pode se apresentar como um Estado-nacional-popular, como um Estado que não representa o poder de uma classe ou de classes determinadas, mas a unidade política de agentes privados, entregues a antagonismos econômicos que o Estado se atribui a função de superar, unindo esses agentes em um corpo “popular-nacional”.

Caso compreendamos os conceitos como categorias de análise úteis à apreensão da realidade, torna-se importante manuseá-los para mirar uma formação social específica, criando uma espécie de teoria com o pé no chão, que se utiliza da abstração para desvelar os movimentos concretos da nossa vida material. Partindo da possibilidade de uma teoria geral do político no modo de produção capitalista, visualizamos que certas categorias abstratas vão ganhando materialidade conforme as utilizamos para analisar uma formação social.

Se a ação coletiva é indispensável para influenciar nas dinâmicas dos processos históricos, uma teoria que alcance não só a aparência, mas também a essência do Estado – e toda complexidade que o permeia – é crucial para garantir maior precisão e eficácia às estratégias políticas.

por Matheus Silveira de Souza.

Referências


POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, Editora da Unicamp, 2019.

SAES, Décio. A questão da autonomia relativa do Estado em Poulantzas. Crítica Marxista, 1998.

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