A bíblia aprova relações homoafetivas?

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
A Bíblia não pode ser tomada ao pé da letra. Todo texto deve ser lido dentro de seu contexto

O Catecismo da Igreja Católica (2357/140) considera o relato de Sodoma em Gênesis 19,1-19 uma referência fundamental para a proibição absoluta de relação homossexual. Contudo, a maioria dos exegetas, especialistas em Bíblia, afirma, com base no método histórico-crítico, que aquela passagem bíblica se refere à hospitalidade e ao abuso sexual “e não tem praticamente qualquer relevância para a discussão sobre pessoas com orientação homossexual em relacionamentos amorosos monogâmicos e comprometidos” (Todd A. Salzman e Michael G. Lawter, A pessoa sexual – por uma antropologia católica renovada, São Leopoldo, Unisinos, 2012, p. 23).

Grécia e Roma antigas eram tolerantes com a homossexualidade. O casamento monogâmico era considerado a base da vida social, embora a prática sexual não ficasse restrita ao casamento. Entre homens e mulheres da elite relações eróticas podiam ser buscadas fora do casamento (Judith P. Hallett, Women’s Lives in the Ancient Mediterranean, in Women and Christian Origins, Nova York/ Oxford: Oxford University Press, 1999, pp. 13-34). Permitiam-se o concubinato, a prostituição e a relação homossexual com escravos.

Escreveu Demóstenes: “Mantemos meretrizes pelo bem do prazer; concubinas, pelo cuidado diário de nossas pessoas; e esposas para nos dar filhos legítimos e serem fieis guardiãs de nossos lares” (Against Neaera, 122; in Demosthenis orationes, Oxford/Carendon, ed. William Rennie, 1931, p. 1385).

Grécia e Roma admitiam o divórcio, e os romanos protegiam economicamente as mulheres divorciadas. Os dois impérios aprovavam o controle da natalidade, inclusive o aborto. O matrimônio não era uma questão de amor, e sim de assegurar herdeiros. O amor mais nobre consistia na relação entre homens. Eles desfrutavam de uma igualdade de direitos que as mulheres jamais alcançaram. Estas pertenciam aos pais e aos maridos, e a homossexualidade entre elas era considerada adultério. O mais comum era a relação entre homens adultos e homens jovens.

Para Platão e Aristóteles, a relação sexual era algo inferior, mais próximo do reino animal. Na visão de Platão, elevados eram o bem, a beleza e a verdade. No entanto, na República e nas Leis ele defende a igualdade entre homens e mulheres.

Já Aristóteles se opunha. Mas quem mais influiu no enfoque cristão da sexualidade, predominante ainda hoje na cultura ocidental, foram os estoicos como Musônio Rufo, em Reliquiae, e Sêneca, em Fragmentos. Alertam que o desejo e a atividade sexual são passíveis de excesso. Para eles, a relação sexual só é moral quando tem por fim procriar. É o que prescreve, ainda hoje, a doutrina oficial da Igreja Católica. Portanto, não se justificam relações homoafetivas. Os estoicos tardios condenaram o sexo fora do casamento.

A Bíblia foi escrita em um contexto patriarcal, machista, embora apresente exceções, como as parteiras hebreias que se recusaram a obedecer a ordem do faraó do Egito de matarem seus filhos do sexo masculino (Êxodo 1,15-22); duas filhas de Lot embebedaram o pai para se engravidar dele (Gênesis 19,30-38); Ruth se mostra sexualmente disponível para Boaz (Ruth 3, 1-15); a rainha Vasti se nega a obedecer o marido bêbado (Ester 1, 1-12); as atitudes de Jesus com as mulheres, sempre com alteridade; e Paulo adota uma postura ambígua, diz que as mulheres devem ser submissas a seus maridos (Efésios 5,22) e também defende a igualdade entre homens e mulheres (Gálatas 3,28 e 1 Coríntios 7,3-4). Ao contrário das culturas antigas, a hebraica não diviniza a sexualidade.

O mais erótico texto da Bíblia, o livro dos Cântico dos Cânticos, iguala homens e mulheres, pois no diálogo falam no mesmo tom, como observou Barth.

A Bíblia não pode ser tomada ao pé da letra. Todo texto deve ser lido dentro de seu contexto. Pinçar a frase de um autor para embasar uma afirmativa é correr o risco de adulterar o sentido da narrativa. Antes de fazer da frase bandeira das próprias convicções, um mínimo de honestidade intelectual exige que se pergunte qual o sentido na narrativa, o que o autor quis dizer, qual o significado das palavras.

Nenhum livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. Para nós cristãos, judeus e muçulmanos, descontextualizar a Palavra de Deus é violá-la. Há pessoas tão apegadas à letra do texto bíblico (e não ao Espírito, como sugere o apóstolo Paulo) que, por ignorância, acreditam mesmo que toda a humanidade decorre de um casal, Adão e Eva. Não se dão conta de que a Bíblia jamais teve a pretensão de fazer ciência. É um livro religioso, escrito em diferentes épocas e à luz de distintas culturas. Adão, em hebraico, significa homem feito de barro; Eva, vida. E Gênesis quer apenas nos ensinar que, graças ao Criador, a vida humana brotou da natureza.

Ler a Bíblia fora do contexto pode induzir o fiel desavisado a odiar seu pai e sua mãe para aderir a Jesus (Lucas 14,26). Um cristão tinha por hábito sortear, toda manhã, um versículo dos evangelhos como motivação espiritual. Ao abrir o texto em “Amai o próximo como a si mesmo”, adotou, naquele dia, postura mais atenciosa com a faxineira, o ascensorista e a copeira do escritório.

Dia seguinte, caiu-lhe o versículo 5 do capítulo 27 de Mateus sobre a culpa de Judas: “E ele foi e se enforcou”. Ciente de que a vida é o dom maior de Deus, permitiu-se outra chance. Deparou-se com o último versículo da parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça o mesmo”.

Ora, como Deus não quer o mal, ele se deu uma última oportunidade. Veio-lhe este versículo da paixão de Jesus em João: “O que tem a fazer, faça depressa” (13,27)…

O teólogo e biblista Marcelo Barros conta a história de um pastor que, em Los Angeles, mantinha um programa de TV muito apreciado nas manhãs de sábado. Um dia, o pastor leu no auditório a carta que recebera:

“Caro pastor Jeffrey, me chamo Jonathan Pierce. Tenho 40 anos e frequento a Igreja Batista da North Street. Há alguns dias, ao chegar em casa, encontrei minha esposa deitada com outro homem. Rompi o casamento e abandonei o lar. Minha filha adolescente deu razão à mãe, com o pretexto de que sou muito ausente e minha esposa tem direito de ser feliz”.

“Nesse momento de grande sofrimento, recebi ajuda de um amigo de infância que é gay e sempre me quis como companheiro. Penso em fazer uma experiência nova neste caminho. No entanto, o pastor de minha Igreja avisou que eu teria de deixar a comunidade. Por isso, lhe escrevo para perguntar se o senhor receberia a mim e ao meu companheiro em sua Igreja”.

Após ler a carta, o pastor respondeu:

“Caro Jonathan. Podemos aceitá-lo em nossa Igreja se você rejeitar o pecado e renunciar ao vício. Seguimos a Bíblia Sagrada e, de acordo com Levítico 20, versículo 13, se um homem deita com outro homem ambos cometem abominação e devem ser eliminados da comunidade. Portanto, se você desistir deste mau caminho e se converter, será bem-vindo em nossa Igreja. Deus o abençoe”.

No sábado seguinte, o pastor abriu o programa com fisionomia tensa, e explicou aos telespectadores: “Meus irmãos, a Justiça do Estado da Califórnia me obriga a ler aqui esta carta:”

“Caro pastor Jeffrey, quero agradecer sinceramente ao senhor por ter me orientado e me guiado para o texto sagrado da Bíblia neste momento difícil que estou vivendo. O senhor citou o capítulo 20, versículo 13 do Levítico, para mostrar que não posso participar da Igreja se deito com outro homem, e isso me foi muito útil. Agradeço muito. Principalmente porque abri a Bíblia e li o capítulo. E descobri que o senhor tem toda razão. O versículo 13 diz que se eu dormir com outro homem devo ser morto. Mas, achei maravilhoso descobrir, no mesmo livro, capítulo 20, versículo 10, que a minha mulher e o homem que se deitou com ela devem ser apedrejados, e minha filha, que me rejeitou como pai e tomou posição contra mim, também (versículo 9). Portanto, venho com esta carta afirmar que renuncio a viver relações homoafetivas, mas faço questão de apedrejar minha mulher adúltera, o homem com o qual ela se deitou e a minha filha rebelde. Como sei que o senhor cumpre a Bíblia Sagrada ao pé da letra, então, peço que junte as pedras, porque no próximo sábado, às nove da manhã, na hora do culto, chegarei aí com minha mulher e minha filha amarradas e nuas, como manda a lei de Deus, e também com o homem pecador. E nós, crentes de Deus, vamos apedrejar os três até morrerem. E aí, sim, cumpriremos o capítulo do Levítico que o senhor me ensinou a ler. Muito obrigado. Atenciosamente, Jonathan Pierce”.  

Jesus criticou duramente os fariseus por tomarem a Bíblia ao pé de letra, como pagar o dízimo, e deixarem de lado o que importa – a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mateus 23,23).

por Frei Betto
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